02 agosto 2010
saint-john perse / estreitos são os navios
fragmentos
I
…Estreitos são os navios, como estreito o nosso tálamo.
Imensa a extensão das águas, mais vasto o nosso império
Nas câmaras cerradas do desejo.
Entra o Verão, que vem do mar. Somente ao mar diremos
Os estrangeiros que fomos nas festas da Cidade, e qual o astro subindo das festas submarinas
Que veio uma noite, sobre o nosso tálamo, farejar o leito do divino.
Em vão a terra próxima nos vai traçando a sua fronteira. Uma única vaga através do mundo, uma única vaga desde Tróia
Até nós vem rolando a sua anca. No muito grande largo, ao largo, longe de nós, outrora este sopro se imprimiu...
E uma noite nas câmaras foi imenso o rumor: a própria morte, nem ao som de búzios, de modo algum aí se faria ouvir!
Amai os navios, ó pares apaixonados; e o mar alto no interior dos quartos!
Uma tarde a terra chora os seus deuses, e o homem dá caça às feras ruivas; as cidades usam-se, as mulheres sonham... Que exista sempre à nossa porta
Esta alvorada imensa chamada mar — escol de largas asas e levantamento armado, amor e mar do mesmo leito, amor e mar no mesmo leito —
e de novo este diálogo dentro dos quartos:
saint-john perse
estreitos são os navios (fragmentos)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
01 agosto 2010
fernando luís / num café de bolonha
4
De quando em quando há
um precipício, um desatino nas coisas,
encadeamentos nebulosos a que
nos levam palavras, olhares.
Nada altera a substância do mundo,
nem o acreditado sentimento nem,
em irradiado poder,
a inesperada metáfora.
Tudo está no vazio,
nesse estremecimento. Tu, mesmo
tu, levas o teu nome ao impasse,
à perda das coisas nele contidas.
É então, de quando em quando,
que voa a trave do pensamento,
a pedra da alma, o sangue,
o sangue encordoado e brilhante
e acordas impaciente,
parado, e te afundas
na ideia de morte.
fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
30 julho 2010
miguel esteves cardoso / rara
Ouço-te
a ser rara
a estrela
no espaço
onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta
Ouço-te
a virar
os paus
a comer
vestígios
importantes
e estás
em apuros
com as noites
estás em
ponta fina
de margens
dadas
os braços
pelo pó
e os olhos
por força maior
Ouço-te
ao aparecer
da vista
e do tacto
e estás incólume
de mim
das causas
disso
dos porquês
daquilo
miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979
28 julho 2010
wallace stevens / a casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão
Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.
As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,
A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem
A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.
O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.
E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo
No qual não há outro sentido, a própria verdade
Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.
wallace stevens
the house was quiet and the world was calm, transport to summer (1947)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
27 julho 2010
josé miguel silva /ao amanhecer
As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.
Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.
Agora já conheces
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.
josé miguel silva
canal revista de literatura nr.6
verão de 1999
palha de abrantes
26 julho 2010
paulo barbosa / desemprego
Tal como Rimbaud, as vozes instrutivas exiladas, a abominação a todos os
modos de vida, a inabilidade na luta
Tal como La Boétie, perfilho o “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”
Tal como o meu irmão, degrado-me na usura e sou dispensável
Tal como Belmiro, queixo-me da conjuntura e sou perverso
Agora acordo preguiçoso, sem hora nem ponto, conhecendo as mutilações
que nos aguardam, implacáveis
Tal como Ginsberg, fico sentado dias a fio a olhar as rosas na retrete
Colecciono más caras e escrevo frase sobre frase pelo cano abaixo
paulo barbosa
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002
21 julho 2010
manuel alegre / coração polar
1
Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
2
Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do quadro
é ele que vem talvez na nuvem perigosa
esse veleiro desaparecido que somos todos nós.
Da minha janela vejo-o passar no vento sul
outras vezes sentado olhando o ângulo mágico
sinto a sua presença logarítmica
vem num alexandrino de Cesário Verde
traz a ferragem e a maresia
traz o teu corpo irrepetível
o teu ventre subitamente perpendicular
à recta do horizonte e dos presságios
ou simplesmente a outra margem
o enigma cintilante a florir no cedro em frente
qual é esse país pergunto eu
qual é esse país onde tudo existe e não existe
qual é esse país de onde chega este perfume
este sabor a alga e despedida
esta lágrima só de o pensar e de o sentir.
Não é apenas um lugar físico algures no mapa
é talvez o adjectivo ocidental
o verbo ocidentir
o advérbio ocidentalmente
quem sabe se o substantivo ocidentimento.
Está na palma da mão no nervo no destino
e também no teu corpo aberto ao vento do nordeste
é talvez o teu rosto alegre e triste - esse país
que existe e não
existe.
Eu não sei de que cor são os navios
sei que por vezes
no mais recôndito recanto
no simples agitar de uma cortina
numa corrente de ar
num ritmo
há um brilho súbito de estrela e bússola
uma agulha magnética no pulso
um mar por dentro um mar de dentro um mar
no pensamento.
Há um eu errante e mareante
não mais que um signo
um batimento
um coração polar
algo que tem a cor do gelo e do antárctico
e sabe a sul a medo a tentação
uma irremediável navegação interior
um navio fantasma amor fantástico
manuel alegre
senhora das tempestades
dom quixote
1998
19 julho 2010
adonis / um espelho para o século xx
Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor
Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:
É isto
É isto o Século Vinte
adonis
a palavra interdita
trad. maria de lurdes guimarães
campo das letras
2001
15 julho 2010
e. e. cummings / pode nem sempre ser assim
[ i ]
pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;
se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.
e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & Alvim
1998
14 julho 2010
amalia bautista / xerazade
Levo já quase mil noites com fábulas
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.
amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004
12 julho 2010
gil t. sousa / do teu nome
21/
sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome
a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?
gil t. sousa
falso lugar
2004
10 julho 2010
r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono
há um pouco de vento fustigando a tarde
- mas não mais que um pouco –
e o meu corpo exposto às dunas
cai como ao princípio da noite.
hoje e ontem
escorrem-me pelos olhos
enquanto estendo as mãos
e por elas inscrevo o gosto do tacto pela areia.
disseram-me que o homem
estava escrito no homem
e o tempo dele: linhas cruzadas
ou ilhas ou maior profundidade,
nunca pude ler as tuas mãos
e das linhas apenas percebi
como pelos gestos tu me afirmavas
ou negando
me reafirmavas: dunas pelo vento
e de novo partíamos.
não posso, no entanto, pedir contas
à tua ausência. no simulacro
da coragem, quantas vezes
teremos dito o que negávamos
e a tua boca
mais perto da minha
teria, apesar
a certeza de que ninguém perde ninguém
e que os negócios do estado
apenas confirmam
entre as misérias de uns
e os ousados roubos de outros
como passa sobre essa certeza
o tempo
ao correr das sociedades
e dos impérios
no princípio desta noite.
r. lino
palavras do imperador hadriano
1984
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987
08 julho 2010
jorge reis-sá / danny boy
Vou finalmente fechar o postigo, expirar a entrada mais feliz
do meu coração. É altura, José, de deixar as flores secarem,
o poço ganhar a escuridão que vem ameaçando há anos.
Soltarei de vez os canários e os pardais que prendi
naquela gaiola, junto ao coberto. Da mesma forma
que o farei contigo – segue o teu caminho e deixa que
este pobre velho que a vida baralhou encerre os seus pulmões
e procure noutra casa entradas maiores para o maior coração.
jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008
06 julho 2010
rui lage / les baigneuses
...........................para o Agostinho Santos
nas margens do rio depois de jantar
um vulto equipado de isqueiro
e tabaco de enrolar
passa a pente fino cabelos
que as casas deitam nas águas
com fachadas anoitecidas
e postigos iluminados,
quais do banho saídas
ou das telas de Degas
níveas mulheres de robe
e turbante a fumegar.
rui lage
corvo
quasi
2008
05 julho 2010
jean daive / éden
Uma mulher a medir.
Uma mulher de braços estendidos
transfere comprimentos ou
proporções.
Ela calcula
o sono desse homem que nunca
mais dormirá.
É preciso que se saiba
que tudo começa
pela ampliação
fotográfica
de uma vírgula.
*
Isso
tece um som,
Um afrouxar
repentino,
esse líquido ladeando uma luz
para uma fotografia
em que o cinzento predomina,
Aquilo que vês é composto
de um homem e uma mulher
justamente.
Cadeirão. Sentado a um canto.
Estás sozinho na sala, Fumas
talvez, de queixo nos joelhos.
Entras
outra vez só
num
som da rua.
Vês sombras azuis
correndo
e no visor
a carne de comer.
*
Palavras penduradas
em que o cinzento predomina.
A gasolina pintada a cor-de-rosa
em redor de uma casa
aflui.
O jardim arde.
Uma pedra cai
e tu não és mais pesado.
Perfila-se um fim
como depois da história de uma paixão.
Mas evita-se um sentido cinético do mundo.
E a necessidade reencontrada
do isolamento.
Também
o teu cadeirão
se não articula
com o que o autor quer dizer?
Sorris. Apreendes uma separação.
*
Como é que se antecipa
o gaguejar,
um sistema de coordenadas?
O mundo de um filme
de longuíssima duração
não te subtrai.
Porque
este não é o mundo
que entra nos teus olhos.
É o fim do dia. É o fim das legendas.
A escuridão não tem pó
como a mulher.
Lateralmente
o fumo ondula
semelhante
a uma pulsação.
Mais tarde.
Um cansaço no quarto e na
cama o tempo é não gerado.
(de Narration d’équilibre 6, 7 8, 9)
jean daive
sud-express
poesia francesa de hoje
tradução pedro tamen
relógio d´água
1993
04 julho 2010
armando silva carvalho / a chave inglesa
Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.
Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.
Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.
armando silva carvalho
as escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
1990
03 julho 2010
yorgos seferis / a água quente…
A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.
yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
30 junho 2010
umberto saba / trabalho
Outrora
a minha vida era fácil. A terra
dava-me flores frutos abundantes
Hoje arroteio um terreno seco e duro.
A enxada
bate em pedras, em tojos. Tenho de cavar
fundo, como quem busca um tesouro.
umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992
28 junho 2010
martin earl / vinho
Quanto mais ao sul mais chegados à terra
São as culturas, dobradas como velhos japoneses
Sobre as pernas, um braço esticado, a olhar
Para trás por sobre os ombros, para as figuras
Que os outros fazem, todos assim, ou de joelhos
Pelo arame fora, enquanto vai descendo o sol:
Um Deus verde enlaçado, ao qual a mágoa
Segue a toda a parte, como por sistema –
A sua hora um copo de vinho cheio de tempo,
Onda semeada no sangue, sulco aberto
No cérebro, engenho aguçado demais:
Saem-lhe as ideias, em latim, sem rima.
Mas quando, à altura dos olhos, vejo
Jorrar a luz da janela que o atravessa,
Como se viesse de algures dentro
Do copo, ou dos olhos de quem bebe,
Eis que trespassa o coração, vai direita
Ao medo e leva tudo, eu sei que vou ficar.
martin earl
sonnets from the portuguese
trad. de manuel portela
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002
24 junho 2010
gil t. sousa / é como acordar
20/
é como acordar.
mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...
esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.
qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.
e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.
e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…
podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.
como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.
gil t. sousa
falso lugar
2004
23 junho 2010
joaquim cardoso dias / em pé sobre a visão
em pé sobre a visão submersa dos anjos
nada é tão impossível para que não me dissesses
entre um barco ou outro deves lavar
os teus olhos sempre que voltes a olhar o mar
joaquim cardoso dias
o preço das casas
entrada de emergência
gótica
2002
22 junho 2010
antónio manuel azevedo / que mal podem as palavras
1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.
Não é tudo. Imagina
A devastação.
2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.
3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.
4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.
5
Desde que o mês é este
Oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja
tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber
mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.
6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.
À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.
7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.
8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.
9
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.
Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.
Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.
10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.
Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
20 junho 2010
josé saramago / tem o relógio horas tão vazias
Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, (…), são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba.
josé saramago
o ano da morte de ricardo reis
16 junho 2010
andre breton e paul éluard / a ideia do devir
14 junho 2010
fiama hasse pais brandão / idade
Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.
fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989
13 junho 2010
amadeu baptista / estações
Miúdos de treze anos fumam erva
nas obras das traseiras,
a vizinha
recorre ao xanax e à catatua
para recuperar a adrenalina, o octogenário
dorme no cadeirão de orelhas secundado
pelo cão que a netinha
há-de supliciar até à raiva. Ronrona
a gataria pela lata de sardinha
que a louca do bairro distribui
ao final da manhã, ainda a esquina
está incandescente da matilha
que assediou o quarteirão durante a noite.
Camas desfeitas dos corpos dos amantes
lembram-me a tua ausência
incontornável.
amadeu baptista
estações
apeadeiro / revista de atitudes literárias
primavera 2002
quasi
2002
11 junho 2010
william carlos williams / pastoral
Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeiras, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.
Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
09 junho 2010
maria gabriela llansol / se eu fosse aquela em que tu
210
«Se eu fosse aquela em que tu
Pensas, a que tu tens amor», dizia
Insistente a canção, à luz daquele
Candeeiro da Belle Époque. Tinha
Oito anos e olhava para o garoto
Sobre o seu supedâneo. Estive para
Dizer «Eu sou aquela em quem tu
Pensas» e estive para não dizer. E se
Tivesse dito? Seria aquele semântico
Tu que sempre me diria. E se dito não
Tivesse? Meu Eu gramatical ficaria
Apenas meu, é certo… mas tão incerto.
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003
05 junho 2010
samuel beckett / dieppe
ainda a maré vazia
o cascalho morto
meia volta e depois os passos
em direcção às antigas luzes
1937
samuel beckett
trad. manuel portela
“relâmpago” nr.13
10/2003
04 junho 2010
gil t. sousa / passados
19
01 junho 2010
antónio josé forte / a torre de pisa
31 maio 2010
vasco ferreira campos / antes que o verão chegue
Antes que o verão chegue
e as longas tardes
se espalhem pelo coração
e te prendam ao desgaste habitual
toca uma palavra
para que permaneça
na minha boca
onde mais ninguém
possa ficar confundido.
Uma apenas.
E vê como pesa menos sobre o silêncio
a sombra que vais mover.
vasco ferreira campos
a voz à chuva
guimarães
pedra formosa
1996
30 maio 2010
vergílio ferreira / pensar o livro
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001
27 maio 2010
luís veiga leitão / corredor
Cem metros à sombra – temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.
Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.
E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.
E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha de railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes nos cais
E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.
luís veiga leitão
surrealismo abjeccionismo
antologia organizada por mário cesariny
edições salamandra
1992
25 maio 2010
alexandre nave / o cheiro dos carniceiros a tatuar palavras
3
Os pés nos campos de algodão
calcinados de sangue, abertos
descidos os buracos ao corpo
caminhamos os campos desprovidos
abrimos poços nos ouvidos,
os olhos já queimados
furamos os dedos nos umbigos
um a um num cordão a enfiar,
nascemos uns nos outros
não sabemos quem nos vem queimar.
alexandre nave
columbários & sangradouros
quasi
2003
24 maio 2010
eva gerlach / erosão
Atrás da colina havia uma espécie de vale.
Eu estava deitada, escondida até
me encontrarem. Nas copas
dos carvalhos uma inclinação
esboçou-se, os pássaros
não gostaram e levantaram voo.
Azul, o vislumbre de um desenho
desordenadamente tecido sob as asas
abriu-se, passaram tão
baixo – por cima de mim houve
um que gritou encontrei-te.
eva gerlach
alguns poemas
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994
21 maio 2010
kiki dimoulá / anúncios
Oferece-se desespero
em excelente estado,
e espaçoso beco-sem-saída.
A preços vantajosos.
Vende-se terreno
baldio e fértil
por falta de sorte e disposição.
E tempo
totalmente por utilizar.
Informações: no beco.
Horário: sempre.
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003
19 maio 2010
fiama hasse pais brandão / do amor IV
Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002
18 maio 2010
alejandra pizarnik / para lá de qualquer zona proibida
17 maio 2010
gil t. sousa / o tempo é uma armadilha
18/
o tempo é uma armadilha
na forma daqueles
que mais amamos.
gil t. sousa
falso lugar
2004
16 maio 2010
josé miguel silva / contra os optimistas
Chamam destino ao rifão do acaso
e chamam à fraude boa fortuna.
Crêem no Batman e na Virgem Maria.
Duvidam do frio, não da polícia
e nunca dão crédito àquilo que vêem.
Reservam a tempo um lugar na geral,
põem o pé entre duas ciladas
e ficam a rir-se nas fotografias.
Sujam a roupa tal como nós, mas
mandam-na sempre a lavandarias
que sabem tratar dos casos difíceis.
Nunca dão ponto sem antes o nó,
mas fazem um laço por cima do nó.
Compram revistas de aval científico
em cujos artigos se prova o seguinte:
é quase impossível determinar
se é falsa uma lágrima ou se é verdadeira.
Depois, jantam em grupo, falam dinheiro,
guiam a vida por grandes veredas e ouvem
sininhos, muitos sininhos de música sacra.
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
& etc
2002
12 maio 2010
leopoldo maria panero / quem andou na sombra
Quem andou na sombra, como o vento
descalço como se não andasse
como se sob a noite andasse
contente com as estrelas
silencioso como o milagre
de existir ainda, em frente das estrelas
e contra o milagre do ar.
leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001
10 maio 2010
rené char / folhas de hipno 16
O entendimento com o anjo, nossa primordial preocupação.
(Anjo, o que, no interior do homem, se mantém à margem do compromisso religioso, a palavra do mais alto silêncio, a significação de valor incalculável. Afinador de pulmões que doura os cachos vitaminados do impossível. Conhece o sangue, ignora o celeste. Anjo: a vela que se debruça a norte do coração.)
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000
07 maio 2010
andre breton e paul éluard / o sentimento da natureza
A grande questão seria conseguir que quando um ser enganou um outro ser, se tornasse incapaz de segurar na mão um copo que não se partisse imediatamente. Muitos inventores dedicaram o seu sono e as suas vigílias à solução deste problema, mas sem que até este momento nenhum dos vidros imaginados tivesse apresentado as qualidades requeridas. O facto está em que se é apenas a elegância do copo que permite beber e se é apenas o tremor do bebedor ou da bebedora quem comunica as suas vibrações à tempestade sempre imaginada no interior do copo vazio, a emoção de um ou da outra não pode bastar na maior parte dos casos para provocar o estilhaçamento de uma parcela de matéria transparente que faz bomba na extremidade dos dedos. Estas saraivadas que amadureceram na inconstância e no olvido não permitem àqueles que bebem tomar a atitude desligada dos amadores do ciúme.
Sob as árvores, às mãos-cheias, o cheiro de roupa queimada de velhas roseiras enche as caves do Outono. O coração da dama do lago foi perfurado por um lagarto. Está na aurora até ao coração. Existe escondido um tal movimento de estrelas que a sombra cai em flocos, um tal movimento de estrelas grandes e terríveis que a vida está em farrapos. E o eco responde: Aqui, há um cadáver.
Pouco a pouco, o cadáver pinta-se. O pó de arroz dá lugar à alvaiade, o sublimado aparece à varanda, é o rei dos cosméticos. O sulfureto de zinco comunica ao corpo bem--amado na noite aquela bela luminosidade verde--esbranquiçada, aquele clarão inteiramente enigmático na meia luz. A neve do pensamento continua a cair contendo sempre no interior dos seus cristais o pó fino do colo da janela, nascido no sangue.
Quando observamos atentamente a própria vida temos muitas vezes a impressão de que as alegrias e as dores se mantêm durante um tempo apreciável. Fomos surpreendidos, da Rua Louis-Blanc à Rua Louis-Noir, com a duração do período do fenómeno oscilatório: segundo a nossa opinião os pontos brilhantes são aqueles onde a vida é vista em ponto pequeno.
O inimigo da sua natureza assombra as fiorestas perigosas cujas grades se fecham todas as manhãs sobre a árvore dos vícios. Finda a saúde as suas geadas de malvas e as suas canículas de tigre. O inimigo da sua natureza está perdido no meio das flores salgadas e leques de gesso. Será necessário indicar-lhe a direcção do deserto? Irei voltá-lo para a estrela polar? Deseja ele que este empedrado que aí está se torne e fique constantemente paralelo ao equador infernal? Agrada-lhe que esta boca que cobiça permaneça indefinidamente à porta do primeiro palácio dos fenómenos? Que escolha! Ou prefere então ter tudo isso na abertura da sua mansarda que dá para o céu aturdido?
- Tudo, responde ele. Com isso e um sorriso do Sol, sem pôr o nariz fora da minha janela, saberei ao certo com que me contentar acerca da força incompreensível das aptérix e dos grampos de ferro dos seus hábitos crepusculares.
Saberei ao certo com que me contentar quanto ao processo empregado para guarnecer o artigo desértico preexistente no velho mundo de personagens, de aves ou de diferentes cenários em relevo, relativamente bastante bem feitos. Em presença do preço módico do conjunto — a vida — e da execução sofrível do cenário pensava que fora sem dúvida empregado um processo mecânico simples, tal como urna moldagem, mas, após exame, pareceu-me que estas ornamentações, sobretudo os pássaros, não eram de despojo e, não podendo sair de um molde vulgar, teriam exigido uma moldagem dispendiosa. Não sei se me será permitido visitar um dia as oficinas do fabricante. É provável que o artista tenha como único material e como ferramentas folhas de macieira e a matéria plástica; que seja com estas folhas de macieira que ele dá forma a esta matéria formada de céu encarneirado (muito produtivo) e de esperma ligado com gulosos de morangueiros. Teve de tirar o almíscar nas cabeças de trutas, misturá-lo com o ácido oxalo-sacárico e encerrá-lo numa primeira hóstia de cor carne. Numa segunda de cor espírito teve de guardar bicarbonato de sódio seco. Na época das chuvas, as duas hóstias misturadas deram ácido carbónoco expirável na forma de hálito.
A maldade que lança o espírito sobre a carne e a carne sobre as imagens do espírito habita as miragens da cabeça e a água gelada das cozinhas surdas. É preciso respirar este ar selvagem que estende os punhos através do apetite voraz das ruínas com cintura de vespa e cabeça de víbora. Elas sobrepõem-se gradualmente e cada um dos seus degraus está coberto de coágulos de musgo vivo que a névoa torna a cobrir de musgo morto. A atmosfera ganha então um tom amarelo mais intenso que o da crosta da aurora. A vista espraia-se sem limites e escava nas profundidades do coração humano, que sempre produziram naquele que as contemplou urna extraordinária impressão.
Gostaríamos de ilustrar este texto com urna curiosa figura representando um animal de tronco excepcionalmente bifurcado a partir do meio do seu comprimento. É assinalada a existência de seres análogos um tanto por toda a parte. Este género de divisão anormal de eixos ou de órgãos habitualmente simples conhecido das árvores com o nome de partimento, ainda não foi estudado senão pelos sexualistas. Foi em Paris, onde íamos herborizando ao longo das fortificações, que pela primeira vez fomos surpreendidos ao avistar uma, depois duas, depois mil destas excrescências lembrando, num grau muito mais avançado de deformação, esta variedade móvel da mandrágora em busca do vento na erva rasa e lamentavelmente observada pelos carrosséis de cavalinhos. A sua excitabilidade representava-nos bastante bem um quadro assaz análogo ao de um leito tal como seria se a velocidade dos movimentos executados pelos vários membros que nele se agruparam estivesse multiplicada por mil. Tudo ali está em movimento, os braços sobem, baixam, torcem as mãos, os troncos contornam em hélice a sua culminância delicada, as bocas rebentam, projectam os seus beijos ao longe, os beijos caídos sobre os olhos não ficam ali, logo partem numa outra direcção, as pernas mergulham nos lençóis transparentes, enfim tudo está cm acção, desde o grito que se abandona até aos dentes de veludo.
Os caminhos que sulcam o arrabalde, nos últimos raios da preguiça, repousam nas redes das grelhas. É difícil dispor os lugares da aldeia para não se deixar morrer de fome, à noitinha. Toda a sua puerilidade não lhe serve senão para confundir os despojos do turismo com o porte estúpido das grandes glicínias da Beauce.
O Verão, como tinta simpática, reaparece a favor de dois negativos quando não está calor não está frio, sobre o palimpsesto coberto de geada da palavra inverno.
O fogo é um amigo que nos presta serviço, é a razão por que a aliança estabelecida com ele lisonjeia tão vivamente a população terrestre. Todo o aparelho preventivo do fogo está colocado num ramo de cerejeira. O ramo de cerejeira alto, sem o botão a dominá-lo, de 0,35 .m, está fixado por quatro parafusos, também em madeira, do modelo conhecido, ao tronco da árvore. Eis-nos no meio da Primavera. Quantas transformações já se cumpriram! O preventivo é visitado por uma borboleta branca que se detém a meio da fotografia. O Outono: a maior parte das folhas caíram; o capitel de um estilo coríntio híbrido faz o regalo de uma libélula.
Um mar imenso de penca vermelha protege os instrumentos de trabalho da centelha. Em breve se dará um eclipse de coragem. As vagas de lava que se rasgam na planície e as incursões do machado inútil, o machado paternal, o machado com dentes de serra já não terão história. A centelha, sempre resplandecente, será glacial. Elevar-se-á teatral e vã, sobre um mundo demasiado afagado pelos simuladores. O monumento do dia fará os sonhos de fuligem.
Preparar-se-ão para o demolirem nos alicerces, logo que estiver saturado de sonho. Cairá enfiando-se umas partes nas outras, à maneira dos telescópios, como dizem os Ingleses, sem destroços ao longe. Então o telégrafo só aparecerá como o chapéu adornado de andorinhas de uma dama parisiense em 1889.
Entretanto, o céu e os seus derivados não fazem efeito no maciço. O sangue é mais procurado devido à sua cor complementar do verde da pele (1914-1918).
Após o sangue vem o negro da glória: peguem num livro branco, limpem-no, mergulhem-no folha a folha durante alguns minutos numa mistura pastosa formada por: 500 gramas de estrume de carneiro, uma pitada de sal, um copo de vinagre a que juntam 200 gramas de pó de bagas de sabugueiro e assinem.
As representações convencionais das origens geométricas da natureza só são sedutoras em função do seu poder de obscurecimento. O cristal é um dédalo seguido pelas toupeiras, as uvas queimam as últimas borboletas. Vista através da substância afrouxada, a paisagem seduz-nos com todas as suas masmorras. Peixes feitos de redes, pássaros de grades, mamíferos de gotas. A flecha odorífera do ar tendo-a atravessado de lado a lado faz que a nossa barca meta água num mar que se esvazia.
Que dizíamos nós? Ah! pois as ruínas empenachadas de avestruz, as ruínas continuam assaz
solidamente belas. Não existe senão um grau de calor entre a foliação do lilás e o último canto do cuco mas pode ter-se a certeza que este grau é bem empregado entre o trigésimo sétimo — daqui — e o quadragésimo segundo — ali.
andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972
04 maio 2010
adília lopes / sete rios entre campos
Preciso que
me reconheçam
que me digam Olá
e Bom dia
mais que de espelhos
preciso dos outros
para saber
que eu sou eu
adília lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004
gil t. sousa / o sopro dos anjos
17/
hoje,
o sopro dos anjos,
onde já nem
a sombra
chegava
gil t. sousa
falso lugar
2004
01 maio 2010
pier paolo pasolini / « la realtà »
21 de Junho de 1962
Trabalho o dia todo como um monge
e à noite vagueio, como um gato
à cata de amor… Vou sugerir
à Cúria que me santifique.
Com efeito, respondo à mistificação
com a mansidão. Olho com olhos
de imagem os que vão linchar-me.
Observo o meu massacre com a coragem
serena de um sábio. Pareço
sentir ódio, mas escrevo
versos cheios de amor atento.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Tenho pena dos jovens fascistas,
e aos velhos, que são para mim formas
do mais horrível mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que, voando,
tudo vê, e, no seu voo para o céu,
leva no coração a consciência
que não perdoa.
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005
30 abril 2010
giorgio caproni / tarefa cumprida
Fabro quidam tignario.
O que se cumpriu,
Cumpriu-se. Podemos
Dar repouso às algemas.
Se o desejar (se houver alguém
À sua espera) cada um
Pode partir livre para onde
Com mais força o coração o chamar.
E eu que não tenho casa alguma
A não ser entre vós,
Para quem sou o próprio Deus,
O qual existe, diz-se,
Só no acto da súplica
- de desespero, esse acto, e negação –
Eu que não tenho onde ir, prefiro
Ficar mais um pouco, aquecer
Os meus dedos ao fogo derradeiro da mentira
E expulsar das minhas mãos o tremor,
Depois, reduzido
A cinzas o tição, desaparecer
«Aproveitando as trevas».
giorgio caproni
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. ernesto sampaio
assírio & alvim
2001
27 abril 2010
paul auster / desaparecimentos
7
Está só. E a partir do momento em que começa
a respirar,
está em nenhum lugar. Morte plural, nascida
no maxilar do singular,
e a palavra que levantaria uma parede
a partir da mais íntima pedra
da vida.
Porque ele deixa de ser
por cada coisa de que fala —
e em lugar de si mesmo,
ele diz eu, como se também ele começasse
a viver em todos os outros
que não são. Porque a cidade é monstruosa,
e a sua boca não prova
matéria alguma
que não devore a palavra
de um outro.
Assim, há-as muitas,
e todas estas muitas vidas
talhadas nas pedras
de uma parede,
e aquele que começasse a respirar
aprenderia que não há outro lugar para onde ir
senão este lugar.
Por isso, ele recomeça,
como se fosse respirar
a última vez.
Porque não há outra vez. E é o fim do tempo
que começa.
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
25 abril 2010
antónio josé forte / desobediência civil
se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
«a poesia deve ser feita por todos» e
«a poesia é feita contra todos»
os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros e o único os raros
todos os nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria
Vêde
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo
eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003