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04 março 2024

fiama hasse pais brandão / do espaço-tempo?

 
 
 
Sobre o telhado, feito de espaço
que remata as paredes da casa,
as altas chaminés com o fumo desta hora
sobem no tempo, brancas e vãs.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





07 julho 2023

fiama hasse pais brandão / lisboa sob névoa

 



 
Na névoa, a cidade, ébria
oscila, tomba.
Informes, as casas
perdem o lugar e o dia.
Cravadas no nada,
as paredes são menires,
pedras antigas vagas
sem princípio, sem fim.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




06 junho 2022

fiama hasse pais brandão / a casa

 
 
Sempre se conheceu o vento de Junho
nessa orla, que regougava nas esquinas
da casa à noite e nas manhãs ansiosas
em que voltava a aragem matinal
deixava irremediavelmente os frutos
a juncar a terra e os atalhos.
 
E sempre se lamentaram as velhas pancadas
do vento, no seu ritmo marítimo, a exaltação
a que nos levava, permanentes povoadores
da costa. E para lamentar dizíamos
as palavras usuais e alguns suspiros
próprios da insónia de ouvir o vento.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989



16 novembro 2021

fiama hasse pais brandão / da fala

 
 
 
Quando ainda não sabia as palavras possíveis
para passar entre voz e silêncio dos outros,
tal como entre troncos das florestas mudas,
eu falava com as nuvens que vinham
sobre nós a cantar, de trémulas asas,
e aspergiam os aromas do extâse.
 
 

fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002








18 junho 2021

fiama hasse pais brandão / das lágrimas

 
 
A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. “Meu duplo filho,
não temas a intensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.”
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





10 novembro 2020

fiama hasse pais brandão / canto da chávena de chá

 
 
Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim de tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa se verga
gira nas grandes nebulosas.
 
15/11/93
 
 
fiama hasse pais brandão
cantos do canto
relógio d´água
1995





13 março 2020

fiama hasse pais brandão / toda a literatura está não lida



Toda a literatura está não lida.
Toda a literatura foi traída.
E, além de sua natureza sempre nula,
no futuro mais será perdida.

Também o papel, que hoje
em belíssimas folhas se folheia,
entre os dedos humanos,
será roído um dia.

Outra matéria nova e, por momentos,
não vã há-de captar as vozes
dos poetas bardos, de ouvidos
mais atentos aos sons sonoros.

Assim os meus versos são o meu pó
na poeira dos livros já delidos.



fiama hasse pais brandão
hífen 8 janeiro 1994
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994





30 março 2019

fiama hasse pais brandão / verso vão



Onda de sol, verso de ouro,
perífrase vã. Extasiar-me,
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. Ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. Respirar
na quebra da onda. Na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.



fiama hasse pais brandão
ecos
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017







04 setembro 2018

fiama hasse pais brandão / do mar




Aqueles de um país costeiro, há séculos,
contêm no tórax a grandeza
sonora das marés vivas.
Em simples forma de barco,
as palmas das mãos. Os cabelos são banais
como algas finas. O mar
está em suas vidas de tal modo
que os embebe dos vapores do sal.

Não é fácil amá-los
de um amor igual à
benignidade do mar.




fiama hasse pais brandão
as fábulas (2002)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017






10 agosto 2018

fiama hasse pais brandão / do amor II




Ver o cortejo de cedros
e acreditar que é o cenário.
Depois estender a mão
através da longa perspectiva
oblíqua e poder palpar,
na pele, que também os cedros
têm corpos húmidos, saliva,
à espera do Amor.


fiama hasse pais brandão
as fábulas (2002)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017











05 maio 2018

fiama hasse pais brandão / depois da chuva




Depois da chuva as formas
das árvores de chumbo. Demasia
do cortantes. A cor que substitui
os negros de uma tarde chuv
osa. Um azul próprio do parar
da chuva quando é súbito.

Foi estranha a desaparição
das formas no ar. A queda
dos tons. De repente esvoa
çaram as formas no ar alto.



fiama hasse pais brandão
natureza paralela (1978)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017








21 outubro 2017

fiama hasse pais brandão / o relâmpago




Sopro que me trouxe imagens lívidas
pela janela da casa
de par em par abertas ao gemido
de inesquecíveis árvores, seres terrestres
engrandecidos pelos halos
de árvores de luz celeste.




fiama hasse pais brandão
poemas galaicos (galiza 50)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017




12 setembro 2017

fiama hasse pais brandão / verso




Aqui não há a frase
do mar. Nem a metáfora
que nasce do mar. Não há,
entre a pedra lançada
e o mar, separação.




fiama hasse pais brandão
entre os âmagos (1983-1987)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017




26 agosto 2017

fiama hasse pais brandão / na terra dói



Na Terra dói
partilhar a curta eternidade,
e só no Eterno ignoto
o tempo é todo teu,
para poderes estar só.




fiama hasse pais brandão
entre os âmagos (1983-1987)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017





07 julho 2017

fiama hasse pais brandão / epístola para os amados





Ainda vos amos, porque aqui não há só tempo
e o amor, no tempo, é tão intenso e absoluto,
que transborda do tempo para o não-presente.
Havendo tempo e não-tempo, eu vos confesso agora
que em parques ao poente ainda vos estou a amar.
E não que vos ofereça hoje alucinados versos,
mas porque do meu tempo sois donos, como os poemas
que eu escrevo do tempo para o não-tempo, sempre.



fiama hasse pais brandão
epístolas e memorandos (1996)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017





27 setembro 2016

fiama hasse pais brandão / lápides


I
O mar bate como se o sopro
do separar as águas de novo
rasgasse a terra alcantilada.
Não o vejo, mas ao longe
oiço o êxtase, o rumor
das ondas infinitamente. Nós
calamo-nos, ouvindo a voz
interior apenas, e pensamos
nos livros que consubstanciam
a separação entre terra e água.



fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000



09 agosto 2016

fiama hasse pais brandão / canto da sombra



Ao Sol cada tronco cai em sombra
e, no chão, a floresta ou o pomar
mostram o duplo real que nos enfrenta.
Passamos sobre sombras entre as árvores
atentos ao desenho singular,
que não pisamos, dos intervalos da luz.
Passamos entre as sombras e não lançamos
os braços em redor de cada árvore,
ávidos da suave escuridão pisamos
os troncos que tombaram junto à sombra.
Se vou ao pomar das árvores cítricas
escolher o fruto que nos dá o aroma,
aí, ao lado década tronco, eu vejo
a umbela de sombra que nos impele
para o desejo desse fruto duplo.
E a memória retém o objecto e o Outro,
tronco de choupo ou copa de limoeiro;
conhecermo-nos, como diz Sócrates,
é conhecermos no Outro quem nós somos.
A sombra serve ao Canteiro para o traço
da infinita recta, que se torna curva
e lhe dá a forma ideal que reúne
o recto e o curvo, o perto e o além.
No frontão do Pórtico inscreveu
na medida da sombra a esfera do Sol.
Cada dia temos as mínimas sombras
de tudo o que recolhe a mão,
e as nossas casas jazem diante de si mesmas
e vão rodando no seu eixo de sombra.
O cone escuro da nossa própria Terra
escurece a luz do luar branco.
Na geometria dos vultos planetários
por fim ficamos, na escurecida Terra,
predizendo o sentido do futuro.

30/11/93


fiama hasse pais brandão
cantos do canto
relógio d´água
1995



13 janeiro 2016

fiama hasse pais brandão / a folha viva



Mantêm-se o ramo vivo
da verdura. A folha
cai, repõe-se, a copa reverdece,
o seu volume sobe.
Nada é efémero
sob o tom da luz. Tudo
retoma a folha, tem recorte,
o seu pecíolo verde ou outra forma.

Cai a folhagem, tinge todo o chão.
Ou, possuída a terra, ela persiste
e é perene a queda
de uma árvore,
depois o surto,
e tudo convergente, se mantém.



fiama hasse pais brandão
o texto de João zorro
pungente o verde
editorial inova
1974





18 novembro 2015

fiama hasse pais brandão / novembro também


Novembro também na Europa
tão soalheiro, tão cheio
de memórias amargas,
forçado Estio,
aziago e malsão mês,
que nos prediz os séculos
de Caos novo.

Nov. 95

  
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




17 julho 2015

fiama hasse pais brandão / quando eu vir vaguear por dentro da casa



Quando eu vir vaguear por dentro da casa
o abeto que cresceu no bosque, hei-de
ajoelhar no soalho. Todas as coisas
comunicam entre si a totalidade das suas formas.
A mão que vai surgir do abeto apontará para mim.

Tenho de despir as tiras de brocado que envolvem as veias,
as cadeias de ouro dos rins. Deixar
que as unhas longas da árvore passem
entre mim e o imo dos quartos interiores da casa.

Se essa figura imponente, a árvore, me reconhecer,
vou interromper o que escrevo, esperar ansiosa
atracção que a insónia desse vulto
há - de exercer sobre mim. Rodo
até à tontura da morte.
           Torturo-me
até à alegria. Encontro na casa
o tema da despossuição e a agonia.

A pobreza antiga com que o corpo cai
para uma vala. Preso apenas às pérolas
que tinem nas orelhas. Dante deixou-nos resvalar,
com os cânones clássicos, como se o poema
fosse uma escada. É-o, quando as figuras austeras
da Natureza perseguem os mortais. Querem confirmar
a sua configuração. Querem ser
reais, quando se aproximam.
Vai para diante da minha face, ao fundo.
Vem dos recantos, onde já não é a silhueta volúvel
enovelada pelo vento, à janela. Com lentidão
arrasta a forma táctil até à passagem do poema.

Sou eu que me vergo ao domínio.
Que me poise a marca incandescente na testa.
Tocará na meninge como num cofre.
Aceito coroas para depor sobre mim.
Deixo os pés do abeto empurrar
com a biqueira violetas. A fragrância
delas leva-me a imaginar poemas
em branco. Depois de percorrer um longo encadeamento
de sílabas sou outra. Vejo assomar a natureza nua.



fiama hasse pais brandão
área branca
1978