31 agosto 2013

fernando pessoa / sorriso audível das folhas



Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?



fernando pessoa
27-11-1930, cancioneiro



30 agosto 2013

josé tolentino mendonça / o último dia do verão



Pois às vezes me falta a quem contar
certo dia passado do princípio ao fim
o encanto que tenha realmente
a insistência do vento ao longo da Foz
aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão

Nascemos e vivemos só algum tempo
não temos nada
não podemos mesmo na penumbra
decidir a atenção ou o esquecimento
as forças soçobram como vagos motivos
em público
e em qualquer lugar

Por isso sei tão bem o valor
da natureza indiscutível dos teus olhos
onde a luz anota seus aspectos
teus olhos impacientes e irrealizáveis
que me acompanham
agora que sozinho danço
pela cidade vazia



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001


29 agosto 2013

alexandre o'neill / daqui, desta lisboa compassiva



Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...



alexandre o'neill
atrás dos tempos vêm tempos
1996



28 agosto 2013

guillevic / elegia




Bebemos às escondidas
Em copos intactos
Vinho que talvez
Fosse para nós.

Bebemos às escondidas
Por entre as turbas
Que se moviam para o sol.

Era à saída dos nossos labirintos
E faltava-nos firmeza nas mãos.

As delícias do azul reservavam-se para a colina,
o cimo das árvores
E o ocioso gavião.

Tivemos a nossa hora e julgámos possível
Proteger as planícies e o próprio espaço.

Amámos às escondidas
E soubemos que não pode curar-se
Em pouco tempo alegria excessiva.




guillevic
élégie, fxécutoire (1947)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003


27 agosto 2013

robert schindel / noite alta



Noite alta, eu, fechado em mim
E o planeta a esbarrar no meu nariz
Frio de rachar, lá fora sopra o vento oeste. Em mim
Há um oceano, formado
Por milhões de corpúsculos
Do Fecha-te-Sésamo e esses milhões
Inundam-me enquanto
Fico ali deitado no meu abrigo
Deitado de costas
De barriga, quando
O vendaval do sonho me dá a volta.


robert schindel
telhados de vidro nr. 11
tradução de joão barrento
averno
2008



26 agosto 2013

enrique lihn / retrato



Poeta dos pés à cabeça,
homem de poucas unhas, convulsivo,
neurótico,
órfão de águias, pai do seu próprio
crescimento,
obscuro, manchado por um anjo morto,
dono do seu desterrado domínio,
flagelo de si mesmo,
viúvo de todas as criaturas,
muitas vezes com cabeça de gigante,
com a alma acanhada outras vezes,
visível desaparecendo,
furioso na sua alegria, alegre na sua tristeza,
aborto do seu orgasmo imensamente casto,
cão de jardineiro,
trabalhador a prazo, profeta de pequena duração,
sobrinho louco, ovelha negra,
convidado especial, suspeito,
saudável às dez da manhã,
morto por uma enxaqueca sem trelho nem trambelho,
distinto bailarino do passo lento,
amante das flores, assassino de pássaros,
abstracto por instinto,
concreto se oculto debaixo de um cântaro,
secreto tornado à força transparente,
obscuro de desígnios convergentes.

  

enrique lihn
tradução rui manuel amaral



25 agosto 2013

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


I

Não é de Maio este ar impuro
que torna o jardim sombrio e estrangeiro
ainda mais obscuro, ou o ofusca

com réstias de luz alucinadas… este céu
de baba sobre as mansardas amarelas
que em semicírculos velam como véus

os meandros do Tibre, os montes
turquesa do Lácio… É uma paz mortal,
resignada como os nossos destinos,

a que derrama sobre estes velhos muros
o outonal Maio. Há nele o cinzento do mundo
o fim do decénio em que nos parece

que as ruínas engoliram o profundo
e ingénuo esforço para recriar a vida:
o silêncio, húmido e infecundo…

Tu, jovem, naquele Maio em que errar
era ainda viver, naquele Maio italiano
que à vida ao menos acrescenta ardor,

muito menos descuidado e impuramente são
do que os nossos pais ─ não pai, mas humilde
irmão ─ já com a tua magra mão

delineavas o ideal que ilumina
(mas não para nós, que tu estás morto, e nós
Estamos mortos, contigo, no húmido

jardim) este silêncio. Não vês que só
podes repousar em terra
estranha, ainda desterrado? Um tédio

patrício reina à tua volta. E só te chega
um rumor abafado de bigorna
nas oficinas do Testaccio, adormecido

ao anoitecer: por entre míseros telhados,
nus montões de lata, ferro-velho, onde, vicioso,
um operário cantando dá por terminado

o seu dia, e em redor deixa de chover.

  


pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



24 agosto 2013

e e cummings / já que sentir é primeiro



[vi]

já que sentir é primeiro
quem presta alguma atenção
à sintaxe das coisas
nunca há-de beijar-te por inteiro;

por inteiro ensandecer
enquanto a primavera está no mundo
o meu sangue aprova,
e beijos são melhor fado
que sabedoria
senhora eu juro por toda a flor. Não chores
- o melhor movimento do meu cérebro vale menos que
o teu palpitar de pálpebras que diz

somos um para o outro: então
ri, reclinada nos meus braços
que a vida não é um parágrafo

e a morte julgo nenhum parêntesis



e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998



23 agosto 2013

mário cesariny / you are welcome to elsinore



Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



22 agosto 2013

maria gabriela llansol / quando a recordação dói



186

---------------------------------------quando a recordação dói,
As memórias movem-se, a nostalgia cai, e tu surges do
Passado pronto para me ferir
----------------------------quando o vento sopra de verdade,
As folhas movem-se, a chuva cai, e eu não sei se do chão
Te levanto ou te deixo para biodegradado. Mário,
É instantânea a translação entre frases textuantes.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003



21 agosto 2013

sylvia plath / as túlipas




As túlipas são demasiado sensíveis; é inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apercebendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
                                                                   [nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
                                                        [enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo aos
                                                        [cirurgiões.

Apoiaram-me a cabeça entre as almofadas e a dobra do lençol
como um olho entre duas pálpebras brancas que jamais
                                                               [se fecham.
Estúpida pupila, ela que tem de estar atenta tudo.
As enfermeiras vão e vêm, não perturbam,
passam com as suas toucas brancas como gaivotas voando
                                                                     [para terra,
com as mãos sempre ocupadas, todas idênticas,
sendo assim impossível dizer quantas são.

Para elas o meu corpo é um seixo, tratam-no como a água
trata os seixos sobre os quais corre, polindo-os suavemente.
Trazem-me o torpor nas suas agulhas reluzentes,
                                          [trazem-me o sono.
Neste momento perdi-me, estou cansada das minhas bagagens...
A minha maleta de couro como uma caixa de pílulas
                                                                [negra,
o marido e a filha sorrindo-me do retrato de família;
os seus sorrisos penetram-me na pele, como pequenos
                                                   [anzóis sorridentes.

Deixei a vida correr, um velho cargueiro com trinta anos
agarrando-se obstinadamente ao meu nome e endereço.
Limparam-me de todas as minhas associações afectivas.
Aterrada e nua sobre a maca acolchoada de plástico
                                                                 [verde
vi o meu serviço de chá, as minhas cómodas de roupa
                                            [branca, os meus livros
afundarem-se até os perder de vista, e a água cobriu-me
                                                                   [a cabeça.
Sou uma freira agora, nunca fui tão pura.

Não queria flores, apenas queria
estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
                                                                   [toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
                                                       [libertação...
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
                                                                  [bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram; imagino-os
introduzindo-as na boca como se fossem hóstias.

Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
                                                         [bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,
perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do
                                                             [meu corpo.

Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim como a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
                                                   [lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
                                                            [recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.

Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
                                                                    [ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.

Também as paredes parecem animar-se.
 As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
                                                             [perigosos;
abrem-se como a boca de um felino africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
                                                                      [me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de um país tão longínquo como a saúde.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990



20 agosto 2013

wallace stevens / o lugar dos solitários



Que o lugar dos solitários
Seja um lugar de ondulação perpétua.

Quer seja em pleno mar
Na negra e verde nora
Ou nas praias.
Que nunca cesse
O movimento, ou o ruído do movimento,
O renovar do ruído
E múltiplos prolongamentos;

E, sobretudo, do movimento das ideias
E da sua incansável iteração.

No lugar dos solitários,
Que há-de ser um lugar de ondulação perpétua.



wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



19 agosto 2013

henri michaux / encontro na floresta



Ele começa a espiá-la através dos ramos.
Cheirula-a de longe, sacabéstia que é, nescional.
Ela: uma loira distraída um pouco sensaborida.

Aquilo coiceja-o, põe-o logo a babamar-se
Sacode-o todinho, por baixo, por cima, a tresfolegar.
Solusufoca. Não aguenta mais.

Aproxima-se pois à relucapa,
arraganha-a, e com violência e terror a derriba
no chão de folhas frias da floresta muda.

Dessaia-a; e já à vontade merexe-lhe,
apalpilha-a, enodoa-a e morteia-a
(tesa-lhe as unhas na varte, que martira).

Ébrio de imundo, doido pelo corpo doce,
sobre ele se zantira e o tramata.
Transpirando desvairado em grunhal derronco
— ronca! e treguincho —
ranhodeia-a e enrulha-a,
besbesunta-a, mordalha-a, reconcobrea-a e ferina-a.
E por fim, triunfante, enceleira-a!
Imensa cuba de um instante!
Floresta, mulher, terra, céu animal dos recônditos!
Beatamente ele lamafurda.

Ela ergue-se, esgazeada. Sórdido sonho, bem pior que
                                                           um sonho!
«Já passou, não tenha medo, sumiu-se já o vagabundo...
e leve como uma pena, minha senhora.»



henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999



18 agosto 2013

dinis moura / atestado médico




Cursei medicina, aprofundei a anatomia,
Especializei-me em fisiologia.
Depois, meu adorado organismo
Composto de devaneios de primavera, conheci-te.
Deslumbrou-se o meu encéfalo,
O meu sistema endócrino desregulou-se de todo.
Resultado: tu bem sabes:
apaixonei-me por ti, desmedidamente,
O que mostra perfeitamente a medida
Daquilo que me é impossível medir.
Só para teres uma ideia, a admirável pigmentação
Das tuas íris de tal modo contaminou as minhas,
Que durante cinco dias tudo, tudo em meu redor
Ganhou tons de pôr de sol outonal.
Um daltonismo esplêndido.
Entretanto o meu coração, órgão vital
Com as suas duas válvulas, os seus dois ventrículos
E as suas duas aurículas,
Passou a contrair e a distender os seus compartimentos
De maneira mirífica, mais intensa, mais exaltada.
Nunca este músculo me tangeu assim tão irrequieto.
Perplexo, decidi analisar o inesperado fenómeno.
Não muito tempo depois, esbarrei,
Espanto de fogueira, com uma estranheza anatómica:
Ao contrário do que a medicina me ensinou,
Revelaram-me as minhas examinações, pasmei,
Que possuo um órgão vital a mais. Não quis crer.
Decidi reexaminar. Tal-qualmente o mesmo resultado:
No interior da minha cavidade torácica,
Os meus mestres não iriam acreditar,
Com um outro coração me deparei : o teu.
O teu, o teu colorido coração, meu adorado
organismo composto de devaneios de primavera.
Nas minhas artérias e nas minhas veias
Circula também o teu sangue,
Líquido vermelho e viscoso que nutre
Esse extraordinário órgão
Segregante de espantosas e eufóricas auroras,
Tão vital para mim quanto
Os demais órgãos do corpo humano.
Falo obviamente do amor,
Um órgão totalmente alheio à medicina.
De acordo com o mencionado,
Mais o quadro clínico apresentado,
Atesto que sou portador
De uma prodigiosa síndrome,
Vendaval vivificante, confluência de encantamentos,
O que me confere uma capacidade permanecente
De manobrar o leme da burocracia das estrelas,
As rédeas do canto das aves, a alavanca das ambições das flores.



dinis moura



17 agosto 2013

fiama hasse pais brandão / o podador



Devagar a tesoura poda o arbusto
tornando-o de realidade em desejo
da forma. O que me atrai, a flor,
a folha de fuligem, os troncos curvos
para  os pardais escuros e ocultos.

Devagar os ramos caem e os que o
podador despreza vão entrar na gé-
nesse da nova terra. É inevitável
que tudo isto me crie nostalgia.
Não há um estalido simples, corte só,

nem morte só, a morte daqueles
ramos estendidos pelo gradeamento
a viver naturalmente entretanto.
O podador escolhe assim a aparên-
cia da obra que devagar executa,

na ordem e no capricho da folhagem
para sempre jovem e ágil.



fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989