31 janeiro 2021

marguerite duras / escrevi durante uma vida inteira

  
13 de abril
 
Escrevi durante uma vida inteira.
Como uma imbecil, fiz isso.
Também não é mau ser assim.
Nunca fui pretensiosa.
Escrever durante uma vida inteira ensina a escrever.
Não salva de nada.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999






30 janeiro 2021

wallace stevens / conversa de café

 
 
 
Claro, morremos para sempre.
A vida, então, é em grande parte uma coisa
De acontecer gostar-se, não de ter de.
 
E isso, também, claro, porque é que
Acontece eu gostar de arbustos vermelhos,
Relva cinzenta e céu cinzento-esverdeado?
 
Que mais resta? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê essas de entre todas?
Isso não é o que eu disse:
 
Não essas de entre todas. Mas essas.
Gosta-se do que acontece gostar-se.
Gosta-se do modo como o vermelho cresce.
 
Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar-se é um
Dos modos como as coisas acontecem calhar.
 
 
 
wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

 




29 janeiro 2021

josé saramago / poema para luís de camões

 
 
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho para,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas fontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
 
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987




28 janeiro 2021

nuno júdice / como aves, cuja passagem

 
 
Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que então correspondia
a um acto heróico, nada significa
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo «conheci-o»,
ou «há tanto tempo, falei com ele». Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.
 

 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




 

27 janeiro 2021

joão almeida / castelos perigosos

 
 
Sistemas completos
Acordam as coisas
De noite e de dia
 
Não sei quem vive
E quem morre
O vento
E os rafeiros que me guardam
Desfazem as notícias
No perímetro de segurança
 
Vieste de longe para me visitar
E será a última
 
Por isso a nossa mesa é uma encruzilhada
Aberta no canto mais luminoso do quarto
 
E tudo o que dissermos
Será definitivo
 
Sopro
De um deserto inteiro
Um grão de trigo comum.
 
 
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019

 



26 janeiro 2021

henrique risques pereira / amanhã vamos todos chorar

 
 
Amanhã vamos todos chorar
e muito depressa
porque temos pressa de chegar ao fim depressa.
 
Hoje falamos
Amanhã viveremos
Hoje lutamos
Amanhã descansaremos
Hoje amamos
Amanhã desculparemos.
 
Amanhã é hoje pensado para além de hoje
Amanhã é a manhã que segue à noite
E a noite faz medos
e tristezas
e lembra velhas melodias
como uma mulher escandalosamente vestida
de vermelho cingido.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003





25 janeiro 2021

m.ª eloy-garcía / rumor

 
 
O rumor de uma cidade não tem forma de nada
ainda que o vento traga até aqui data e anos
e milhões de palavras
que foram ditas / de ruídos que foram feitos
por outros e se condensaram no ar /
chovem assim verbosgotas de passado acumulado
nucleares presentes que mesmo ao dizer mesmo
disfarçam o seu sentido de passado /
o rumor de uma cidade não tem corpo de soluço
o rumor é a própria cidade acendendo-se
o rumor são milhares de pègadas ao mesmo tempo sobre a erva
e oito milhões e quinhentas mil folhas tocando o chão
 
 
 
 
m.ª eloy-garcía
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



 

24 janeiro 2021

carlos drummond de andrade / mãos dadas

 
 
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
 
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
 
 
 
 
carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
o jornal
1989





 

23 janeiro 2021

adília lopes / é preciso pensar

 
 
                         «But I didn’t know to cook, and babies depressed me.»
 
                                                            Sylvia Plath, «The babysitters»
 
 
 
É preciso pensar
em tudo
dos preservativos
às panelas
e há mesmo quem
nos preservativos
veja já as panelas
pensa-se de mais
e não se pensa
de facto.
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004



22 janeiro 2021

daniel faria / costumo poisar os dedos, tactear

  
 
Costumo poisar os dedos, tactear
Até ser o homem que volta para casa
 
Costumo abrir as mãos com o ferrolho da porta
Costumo estendê-las continuamente
 
A rua também passa à minha frente
Cada dia e não sabe quando vens
 
 
 
daniel faria
das inúmeras águas
poesia
quasi
2003




21 janeiro 2021

ibn 'abdûn / regaram-no as chuvas da abastança

 
 
 
regaram-no as chuvas da abastança:
e saudosas frases me vêm à lembrança.
 
cumes cobertos de moitas floridas
de bordados mantos, sendas não esquecidas.
 
como esquecer-me das horas passadas
no tropel louco de ingénuas cavalgadas?
 
ai como era doce esse meu folguedo,
passarinho à toa esvoaçando ledo.
 
dias tão felizes, bordados em flor,
vento em minhas vestes murmurando amor.
 
  
 
ibn 'abdûn
o meu coração é árabe - a poesia luso-árabe
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
1999

 



 

20 janeiro 2021

artur do cruzeiro seixas / andam descalços os peixes

 
 
Andam descalços os peixes
circulam dentro do seu mar interior
vestidos de brocados
agitando no ar campainhas de oiro.
 
Não mais haverá teatro
quando os guindastes
descobrirem o seu próprio sexo
de aço.
 
Atravessem embora os namorados os aquedutos,
sejam ainda cinzentas as nuvens no ventre das águias
navios líquidos se reproduzirão
por toda a parte.
E por sobre as tempestades
navegarão
rumo ao porto mais distante
indestrutíveis palavras sem nexo.
  
 
Áfricas 60
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002



 

19 janeiro 2021

rené char / folhas de hipno

 
 
29
Este tempo, devido ao seu aleitamento muito especial, acelera a prosperidade dos canalhas que transpõem facilmente as barreiras outrora erguidas pela sociedade contra eles. Quem sabe se, despedaçando-se, essa mesma mecânica que os estimula não os despedaçará também a eles, quando se esgotarem as suas hediondas provisões?
 
(E o menos possível de sobreviventes do alto mal.)
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




18 janeiro 2021

fernando alves dos santos / somos o que somos

 
 
Somos o que somos.
Uma caravela retórica
ou os noivos coibidos de fazer amor,
o verão onde os ciganos se aquecem
e os homens coxeiam conforme as raças,
os joelhos e as coxas torneadas
dos artistas e dos visitantes
dos ritos religiosos,
as crianças que brincam nas lixeiras
controladas pelas forças policiais.
Somos o que somos:
um destino a escassas dezenas de metros do mar.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005




 


17 janeiro 2021

mário cesariny / soneto 2

 
 
 
não nenhum fim em vista justifica
esta hora de carne de compêndio
de tudo o que sonhei o grito fica
em bailundos que atacam o incêndio
 
um homem impassível verifica
ponto por ponto o nível da cascata
que foi de quartzo feldspato e mica
agora espanto pénis pus e pata
 
nem um rato que fosse   nem um verme
nem um   no hemiciclo sopra e geme
aqui ou no rossio ou na avenida de berne
 
quem não deve não teme
devoremos o cherne
com dvorjak ao creme
 
 
 
 
mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980





16 janeiro 2021

mário-henrique leiria / mulher fantasma

 
 
Mulher fantasma
chapéu flor
corola pétala
 
Ventre oco
antro réptil
estrela sismo
forma irreal
 
minha flor mulher
meu brinquedo infante
minha cadeira vento
meu cristal encanto.
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018

 




15 janeiro 2021

henrique risques pereira / envelhecer

 
 
Envelhecer
é estar suspenso
entre dois hemisférios eternos
um a vida outro a morte
 
Tudo de uma mesma esfera
duas passagens
uma curta e a outra imensa
 
Para que serviram as tristezas e alegrias
e o saber e a ignorância
e o ser e o estar para além.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003




14 janeiro 2021

fernando lemos / o mar cresceu

 
 
I
 
o mar cresceu
dois dias
todos os barcos
foram poucos
para transportar a dúvida
 
 
II
 
a morte ouviu
toda a nossa conversa
 
 
III
 
esta minha viagem não passa de mim
o cenário repete-se
nesta minha viagem
cenário não passa de mim
 
esta ideia fica
dói-me
não passa de mim
há uma viagem
em volta de mim
estou acordado
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




13 janeiro 2021

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

 
 
1
 
Nós aqui, diz ela, só temos um sol por mês, e por pouco tempo. Esfregamos os olhos com vários dias de antecedência. Mas em vão. Tempo inexorável. O sol só chega à sua hora.
 
Depois, temos uma data de coisas a fazer, enquanto dura a claridade, apesar de mal termos tempo para nos olharmos um pouco.
 
O que nos aborrece na noite é quando é preciso trabalhar, e é preciso: nascem anões constantemente.
 
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999




 

12 janeiro 2021

ron padgett / poema de amor

 
 
 
Temos bastantes fósforos em casa.
Deixamo-los sempre à mão.
De momento a nossa marca favorita é Ohio Blue Tip,
antigamente preferíamos a marca Diamond.
Isto foi antes de descobrirmos os fósforos Ohio Blue Tip.
Estão maravilhosamente embalados em caixinhas resistentes
com etiquetas azul-claras, azul-escuras e brancas,
e as palavras dispostas em forma de megafone,
como se anunciassem ao mundo, ainda mais alto:
«Aqui está o fósforo mais lindo do mundo,
são três-centímetros-e-meio de pinho macio,
encapuçado por uma granulosa cabeça roxa sóbria e furiosa,
teimosamente pronta a rebentar numa chama,
acendendo, talvez, o cigarro da mulher que amas,
pela primeira vez, e nada voltou a ser o mesmo
depois disso. Tudo isto lhe oferecemos.»
é isto que me deste, eu
tornei-me o cigarro e tu o fósforo, ou eu
o fósforo e o tu o cigarro, ardendo
em beijos que se esvanecem direito aos céus.
 
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018

 



11 janeiro 2021

gösta ågren / vigília de verão

 
 
Um incandescente pulmão
espera no Norte pelo
cigarro do sol. O teu
rosto adormecido parece
uma mensagem. Mas quem
a envia? Muito caminhámos
lado a lado
no inclinado caminho dos anos.
Por fim as pedras tornaram-se
em escuridão, mas o rosto
de um homem é mais claro que
o seu pensamento, o seu nome
mais profundo que a escuridão
dos sentimentos onde
está fechado. Agora
a noite é insensível ao dia.
Agora o teu sono é todo o crepúsculo
que resta.
 
 
gösta ågren
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé agostinho baptista 
assírio & alvim
2001
 



10 janeiro 2021

luís vaz de camões / eu cantarei de amor tão docemente

 
 
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
 
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
 
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
 
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
 
 
luís vaz de camões
sonetos




09 janeiro 2021

jesús lizano / ela e só ela

 
 
ela e só ela é a nossa essência.
Quando a tua mente é tua
e o teu sentir é teu e te libertas
da Razão compreendes
e a inocência conquista-te.
Companheiros, companheiros:
nascemos e vivemos
para que a inocência nos conquiste.
Para morrer no seu silêncio.
 
 
jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019




08 janeiro 2021

joão camilo / e voltaste

 
 
Pela janela vêem-se as mesmas árvores,
há uma planta no rebordo com folhas secas.
Passou o tempo e K. voltou
ao lugar do incêndio, à adolescência
que se prolongava, ao lugar
que vira nascer as ilusões e o amor.
De que lhe servira ter acreditado?
O destino do homem é-lhe inacessível.
Queima-o ainda, durante um longo instante,
a paixão que teve por essa mulher,
a memória do amor veemente.
Ali sentado, há tantos anos já,
lia e ouvia música.
Mas todo o amor é impossível.
Tremem-lhe as pernas,
é como se estivesse
à beira de um precipício.
Lá fora o silêncio
e a paz são intensos.
 
 
 
joão camilo
hífen 7 abril, 1992
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992




 


07 janeiro 2021

mbella sonne dipoko / exílio

 
 
Em silêncio
A canoa sobrecarregada deixa as nossas costas
 
Mas quem são estes soldados de camuflado,
Estas nuvens que irão chover em terras estranhas?
 
A noite está a perder os seus tesouros
O futuro parece um mito
Urdido num tear manejado por mãos indolentes.
 
Mas talvez nem tudo seja mau para nós
Como da porta de uma cabana a mil quilómetros de distância
A mão esquálida de uma criança cumprimenta
Os dedos compridos e ossudos da chuva,
 
 
 
mbella sonne dipoko
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé alberto oliveira 
assírio & alvim
2001

 
 


 

06 janeiro 2021

isabel de sá / o riso

  
 
     O pensamento transforma a imprecisão de um verso. Pode torna-lo rígido, esplendoroso ou simplesmente fazer que a loucura o contamine. Se o riso alastra no poema e não para de crescer sabemos que a perturbação atingirá toda a página. O verso é uma sombra, um fio errante e solitário sem identidade. O poeta terá o mesmo destino, uma vez que corpo e alma são a textura de um único universo.
     No perfil do meu rosto a luz provoca e anula o grito. Ao lembrar Edvard Munch, a treva das cores, também eu sou a cinza do que escrevo.
 
29.11.89
 
 
isabel de sá
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991



 

05 janeiro 2021

vergílio ferreira / o ponto mais alto

 
 
 
158 – O ponto mais alto a que se pode ascender para daí olhar o mundo e a vida é a sabedoria que Sócrates recomendava e dizia não se poder definir ou explicar. Mas nada é explicável quando investido da sensibilidade humana, ou seja do mistério que é o próprio homem. Amor, alegria, riso e o mais, com a massa enorme de reflexão quem é que jamais os explicou? A sabedoria é incerta porque a dúvida prévia em que se dilui o seu saber, adia-lhe para sempre a definitividade do que é. Não é o «só sei que nada sei» porque aí não há saber algum. É o saber que o seu limite está no sem fim. E para essa viagem interminável ter um coração sossegado e um sorriso a acompanhar-lhe o sossego.
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001

 



04 janeiro 2021

herberto helder / lugar

 
 
VI
 
Às vezes penso: o lugar é tremendo.
É sobre os mortos, além da linguagem.
Lugar que se transforma rodando contra a boca.
Em certos dias, habitado por crianças
de uma infelicidade obscura, sobre
o verão. Por duros e belos
peixes entre as mãos perfurando
o sono de Deus.
E eu trago uma criança com um ombro
mergulhado no sangue, e o outro
ombro metido no sono triste.
Que pensa sempre, dentro de suas águas,
e é ameaçada por uma intraduzível beleza.
Muitas crianças caminham para o silêncio
de uma semana ambígua, quando
o verão anda de um lado para outro
e se desarruma por dentro.
O verão começa pelas partes mortas.
Ao longe, nas fronteiras da ilusão.
Crianças básicas fazem de mim uma rosa
iracunda, e atiram-na
contra a boca de Deus.
Para diante, através das águas estivais.
 
Não queiram viver em mim, quando entram
como espelhos as vozes virgens.
Ou morrer, se as colinas se aproximam
tão perto do rosto, e estremecendo
com muitas vozes.
Tão respirando, as colinas que se toldam
como povos embriagados.
Eu digo: não desejem amar-me, morrer
de mim. Porque destruo com a boca
o beijo transformado.
Morro em todas as pessoas que a delicadeza consome.
Digam-me devagar quais os vocábulos alarmantes.
 
Uma história de crianças com folhas
dispersas é sempre
uma história de morte. Embora a doçura
levede sua alma cega, crianças, eis como digo:
são uma musa devoradora.
Estão ligadas a toda a grande idade,
à terrífica fantasia do tempo.
Porque falam no esgotamento e, enquanto dormem,
sonham com seu ombro fendendo o sangue,
entrando no poder de Deus.
Tenho uma criança profunda em todos os lugares.
 
Desabitai-me a beleza que bati na pedra,
abaixado e louco.
E que a mulher se desabite da solidão que tive,
enquanto falei ao alto, inspirado
pelo assassínio do amor.
Desabitem-me da minha fome e da neve
onde fui brilhante brilhante.
Brilhante como o trigo escorrido nos dedos.
Como os pés sugeridos em volta da cinza.
 
A tristeza do verão é um modo de saber.
Ou ser puro. Ou estar afastado.
É preciso abandonar-se no meio da tarefa,
enquanto o crime é o autor, embebido.
Conheço crianças esgotantes pelo sono
onde acordam.
É preciso que Deus se liberte dos meus dons.
Que se não perca em minha fabulosa
ironia.
 
Também vi crianças empurradas nos meses.
Pela leveza da luz, empurradas
crianças supremas. Vi-as da mais subtil
matéria, com cerejas, com mãos.
Porque Deus é tão leve como a água atravessada.
Água que iracundos peixes rompem em todos os lugares.
Porque um poema alude ao mistério.
E eu ia pelo ar
de um canto de devotamento, eu
amava e amava.
E então levanto de mim próprio, contra
a inspiradora confusão,
as mãos de crianças preciosas caídas em sangue.
Mãos que Deus exerce no sono.
 
Deixai às crianças minhas zonas primitivas.
Minha terna loucura.
Deixai-as virar a alma para o lado,
de cara contra uma fria onda.
Em mim é que nascem e vivem com nomes
castos, e esquecem.
E de repente se lembram, e se esquecem
de tudo.
Porque são delicadíssimas.
E verdadeiras.
 
Abandonai-me no mês de Deus aberto,
com as crianças sorrindo com grãos de sal.
Esse Deus sobre as patas ao lado
de catedrais difusas.
Onde encosto meu rosto cor de neve lilás,
da cor assaltada das lágrimas.
Cor de quando tudo pára.
É a minha voz que se ouve para diante da noite,
voz tremente e limpa.
Voz acocorada depois numa obra obscura,
mais morosa do que a ambiguidade.
Voz bebida em si própria.
 
Meu sangue percorre os mortos
que me beijam no escuro com sua boca
de barro fechado.
O sangue passa por toda a doçura.
Os mortos tremem, luzem com o dom
em mim voltado para a sua solidão.
E criam, em cadeia, a mãe
descida em silêncio, mais remota
por detrás dos dons.
 
Um galho de sangue bate contra seus ouvidos.
Mãe afogada em poeiras interiores.
E chegada, então ao cimo da escada.
Olhando pelos meus dons dentro, olhando
o meu dom.
Olhando toda a minha força, ela
ao cimo de uma escada terrível, olhando
dentro de uma doçura mortal
a solidão dos meus dons. Olhando
inteiramente.
 
Deixai-me em todos os lugares, em cada
mês que principia.
Violinos e campânulas são imagens rarefeitas.
Peixes, casulos, pepitas misturadas.
Sobre o nocturno tema de Deus, despeço-me de todos.
Não me sabem as crianças, e eu sei
todas as crianças num poema prédio em chamas.
Nos meus dons.
 
E então penso: o lugar é terrível.
 
 


herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996