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20 fevereiro 2024

marguerite duras / paris, 25 de dezembro de 1994

 
 
 
A chuva das crianças caiu no sol.
Com a felicidade.
Fui ver.
Depois foi preciso explicar-lhes que era normal.
Há séculos.
Porque as crianças não compreendiam, não podiam ainda compreender a inteligência dos deuses.
Depois foi necessário continuar a caminhar na floresta.
E cantar com os adultos, os cães, os gatos.
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999




06 dezembro 2022

marguerite duras / vaidade das vaidades

 




 

 
10 de fevereiro, depois, na mesma tarde

 
Vaidade das vaidades.
Tudo é verdade e perseguição do vento.
Estas duas frases dão toda a literatura da terra.
Vaidade das vaidades, sim.
Estas frases só por si abrem o mundo: as coisas,
os ventos, os gritos das crianças, o sol morto durante
estes gritos.
Que o mundo se precipite para a sua perda.
Vaidade das vaidades.
Tudo é vaidade e perseguição do vento.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999




31 janeiro 2021

marguerite duras / escrevi durante uma vida inteira

  
13 de abril
 
Escrevi durante uma vida inteira.
Como uma imbecil, fiz isso.
Também não é mau ser assim.
Nunca fui pretensiosa.
Escrever durante uma vida inteira ensina a escrever.
Não salva de nada.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999






03 agosto 2020

marguerite duras / noutro dia




     Ele não voltou a aparecer no quarto.
     Nunca.
     Era inútil aguardar o seu canto, às vezes ridente,
ás vezes triste, às vezes fúnebre.
     Tornou-se de novo muito depressa o pássaro que
eu tinha conhecido nos campos.



marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999










02 fevereiro 2019

marguerite duras / textos secretos




Vais pensar que fui eu que te escolhi. Eu. Tu.
Tu que és a cada instante o todo de ti mesmo em
relação mim, e é assim seja o que for que fize-
res, por mais longe ou perto que estejas da minha
esperança.



marguerite duras
textos secretos
o homem atlântico
trad. tereza coelho
quetzal
1999







19 maio 2018

marguerite duras / textos secretos




Dizem que o tempo do pleno verão já se anun-
cia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão,
no fundo do parque. Que às vezes não são vistas
por ninguém durante o tempo da sua vida e que
ficam  assim ali no seu perfume esquartejadas
durante alguns dias e que depois se deixam cair.
Nunca vistas por esta mulher solitária que
esquece. Nunca vistas por mim, morrem.



marguerite duras
textos secretos
o homem atlântico
trad. tereza coelho
quetzal
1999








21 abril 2017

marguerite duras / textos secretos



É sempre quase madrugada. São horas tão
extensas como espaços de céu. É excessivo, o
tempo já não sabe por onde há-de passar.
O tempo já não passa. Dizes para ti próprio que
se agora àquela hora da noite ela morresse, seria
mais fácil, queres dizer certamente: para ti, mas
não acabas a frase.



marguerite duras
textos secretos
a doença da morte
trad. tereza coelho
quetzal
1999



06 abril 2017

marguerite duras / textos secretos




Ela mexe-se, os olhos entreabrem-se. Pergunta: Quantas noites estão ainda pagas? Dizes: Três.
                Ela pergunta: Nunca amou uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Nunca desejou uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Nem uma só vez, por um instante? Dizes que não, nunca.
                Ela diz: Nunca? Nunca? Repetes: Nunca.
                Ela sorri, e diz: É curioso um morto.
                E recomeça: E olhar para uma mulher, nunca olhou para uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Olha para onde? Tu dizes: Para tudo o resto.
                Ela espreguiça-se, cala-se. Sorri e volta a adormecer.
                Voltas ao quarto. Ela não se mexeu na mancha branca dos lençóis. Olhas para aquela que nunca tinhas abordado, nunca, nem através das suas semelhantes nem através dela própria.
                Olhas para a forma suspeitada desde há séculos. Desistes.



marguerite duras
textos secretos
a doença da morte
trad. tereza coelho
quetzal
1999




25 maio 2007

marguerite duras / textos secretos (1)





Ontem à noite, depois da sua partida definitiva,
fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque,
fui para ali onde fico sempre no mês de junho,
esse mês que inaugura o Inverno.


Tinha varrido a casa,
tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral.

Estava tudo depurado de vida,
isento,
vazio de sinais, e depois disse para comigo:
vou começar a escrever
para me curar da mentira de um amor que acaba.


Tinha lavado as minhas coisas,
quatro coisas,
estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa,
e também aquilo que encerrava o todo,
o corpo e a roupa,
estes quartos,
esta casa,
este parque.



E depois comecei a escrever...







marguerite durastextos secretos
trad. tereza coelho
quetzal
1999












03 março 2007

marguerite duras / textos secretos (2)




Já não te amo como no primeiro dia. Já não te
amo.


No entanto continuam em volta dos teus
olhos, sempre, estas imensidades que rodeiam o
olhar e esta existência que te anima no sono.


Continua também esta exaltação que me vem
por não saber o que fazer disto, deste conheci-
mento que tenho dos teus olhos, das imensidades
que os teus olhos exploram, por não saber o que
escrever sobre isso, o que dizer, e o que mostrar
da sua insignificância original. Disso, sei apenas o
seguinte: que já não posso fazer nada a não ser
suportar esta exaltação a propósito de alguém
que estava ali, de alguém que não sabia que vivia
e de quem eu não sabia que vivia, de alguém que
não sabia viver dizia-te eu, e de mim que o sabia
e que não sabia que fazer disso, desse conhe-
cimento da vida que ele vivia, e que também não
sabia que fazer de mim.


Dizem que o tempo do pleno verão já se anun-
cia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão,
no fundo do parque. Que às vezes não são vistas
por ninguém durante o tempo da sua vida e que
ficam assim ali no seu perfume esquartejadas
durante alguns dias e que depois se deixam cair.
Nunca vistas por esta mulher solitária que
esquece. Nunca vistas por mim, morrem.


Estou num amor entre viver e morrer. É atra-
vés desta ausência do teu sentimento que reen-
contro a tua qualidade, essa, precisamente, de me
agradares. Penso que apenas me interessa que a
vida não te deixe, outra coisa não, o desenvolvi-
mento da tua vida deixa-me indiferente, não
pode ensinar-me nada sobre ti, só pode tornar-
-me a morte mais próxima, mais admissível, sim,
desejável. É assim que permaneces face a mim, na
doçura, numa provocação constante, inocente,
impenetrável.


E tu não sabes.








marguerite duras
textos secretos
trad. tereza coelho
quetzal
1999