30 abril 2020

diogo vaz pinto / que queres que te diga?



para o David


Que queres que te diga?
Não estamos velhos, se isso te consola.
Mas também já soa mais a conversa.
Uns passos fora e as paisagens
já nos arreganham os dentes.

Entre fósforos apagados e calcanhares de Aquiles,
eriçaram-se flores na carcaça do animal
que ia levar-nos daqui.

Baixou uma névoa não sei de onde,
e ando há semanas fodido
com os correios que já não asseguram
serviço de e para Pasárgada.

Ouve o que te digo: esta coisa
da realidade
está a meter água por todos os lados
e quem não se mandar agora
já não sai.

Qual poesia, qual caralho!
Depois de bater tudo, de ver os magrelas
dos cães a guerrearem por côdeas
entre os sacos de lixo da morte,
o que te digo é: nem faças as malas.
Onde quer que a gente venha
a fincar a bandeira dos ossos,
o passado só irá atrapalhar.



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020






29 abril 2020

vergílio ferreira / não é nada, é um novo dia que começa



259 – Não é nada, é um novo dia que começa. O sol ergueu-se pela ésima, ésima vez. Há luz no ar. Os pinheiros inundam-se dela, acenam na aragem a uma voz que vem de longe. Um cão ladra excitado à alegria da vida, há sinais longínquos do trabalho dos homens. Reconheço-me eu vivo também e recolho em mim o universo inteiro. Tudo se recompõe na vida que se suspendeu, as flores voltam a ter razão de ser à luz. E há por cima de tudo um céu azul. Não é nada. É um novo dia que começa.



vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004











28 abril 2020

inês lourenço / sala provisória


Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015









27 abril 2020

mário-henrique leiria / três quadras patrióticas para boa edificação da juventude



Na linda praia de Fão,
a mais bonita do Minho,
os homens vão de roupão
só D. Fuas, de roupinho…

Neste frio que nos trama
e gela até uma santa,
o que é bom é ter na cama
uma Duquesa de Mântua

Naquela batalha ímpar
Foi uma coisa de má nota
Ver todos em bem trajar
… e a padeira em aljubarrota.
 
                   BASTA!



mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018









26 abril 2020

natália correia / au petit riche



Não morrerei em paris numa quinta-feira cadente
Deixo a hiena de zinco que vem sobre os telhados
aos que no último andaime da chuva executam o número
do suicídio que se incuba nos corações molhados

cedo a nossa senhora dos espasmos ao corcunda
o sena à açucena insolúvel na máscara da afogada
a mona lisa ao vitríolo dos olhos roubadores
que até agradeço que seja para sempre roubada

Cedo a ópera ao degas das bailarinas póstumas
o accordéon à valsa dos desaparecidos canalhas
e napoleão que era cornudo cedo à córnea
que só deixa passar o infravermelho das batalhas

Cedo o sagrado coração à sacarina
Cedo o sorriso ao cheque e o cheque ao mate
a taquicardia aos directores o zola às usinas
a métrica ao metrô trianon ao esmalte

Cedo a Dada as tampas das retretes
públicas pálpebras da república francesa
e a Toulouse-lautrec cedo o cancã pintado
por um gesto obsceno debaixo de uma mesa

Cedo aos cais uns restos de sonho embutidos na noite
jean cocteau ao croissant versalhes ao bibelô
e seja sartre em molho de manteiga
o peixe mais comido no bistrô

O que eu não cedo num nicho deste itinerário
varrido por um simum de telexes e ascensores
está numa tapeçaria: é a dama do licorne
cada vez mais remota pronunciando flores


natália correia
o anjo do ocidente à entrada do ferro
antologia poética
dom quixote
2018






25 abril 2020

josé gomes ferreira / a palavra revolução


III

A palavra Revolução.

Encontrei-a anónima nos olhos dos pobres,
nas barricadas dos livros,
no ódio à palavra guilhotina
– sim, havemos de arrombar as portas que só nós vemos nos
                                                                                              [ muros.

A palavra Revolução.

Encontre-a no salto fértil da morte para o sonho,
na manhã arrancada com mãos de sangue da noite,
na sensação de que tudo nos sai dos dedos
– até a dinamite do luar.


Encontrei-a
na esperança dos homens
a construírem novos segredos
com lágrimas e areia
– para a palavra Deus decifrar.



josé gomes ferreira
poesia V
memória – II 1959
portugália
1973








maria helena vieira da silva / 25 de abril de 1974







maria helena vieira-da-silva
a poesia está na rua II, 1975
cartaz editado pela @fcgulbenkian para comemoração do 25 de abril 1974



24 abril 2020

luís veiga leitão / o silêncio



É mais de terra feito
que doutra matéria e matizes:
Pesa na fronte e no peito
sobre o tumulto das raízes…

E as raízes deitam fora
dedos, mãos, braços,
de plantas plantadas na hora
dos passos longos, dos longos passos…

E das plantas
há tantas
que mal ou bem
ficam no gesto de quem plantou,
à espera do sol que não vem
ou tardiamente chegou.



luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012






23 abril 2020

ana hatherly / falas-me em asas



Falas-me em asas,
Em voar…

Não vês que eu não sou nada,
Nem anjo nem pessoa,
Nem ave nem engenho,
Que é totalmente outra
A minha definição?

Eu não sou mais do que o próprio chão…



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







22 abril 2020

diogo alcoforado / díptico



1
É tarde e a pele diz o fundo
instante onde somos, o avesso
do trânsito comum, - quase regresso
a quanto, espelhando, é segundo

feroz proposição, risco e fim.
E em nós, sem suporte, vamos indo
no sulco disponível; se, partindo,
por dentro do excesso só assim

havemos nosso nomes, ou nossa parte.
Nem canto nem imagem são bastantes
a quem supôs haver, embora incerta,

verdade que se queira ter por arte.
E o medo persiste onde, errantes,
os pés tocam o chão, a descoberta


2
passagem por que vivos renascemos:
subindo, na confrontação do lume,
escarpas e desvios, - esse cume
mais alto que a nós mesmos o demos,

exacto, como construção secreta.
Por ele nos mudamos; e depressa
a voz fere a noite, atravessa
a boca e a mão que vai directa

ao cimo ou ao corpo mais preciso.
Inesperado dom! e só aí
a perna e a luz correm a par

ou formam novo trilho, indiviso.
E o passo aumenta onde o vi-
tal sopro dá ao termo seu lugar.



diogo alcoforado
hífen 11 maio 1998
o sitio das nascentes
cadernos semestrais de poesia
1998





21 abril 2020

joão almeida / passeio a pé



primeiro a criação
de porcos ao ar livre

depois a barragem
e vacas a pastar

descubro na bosta antiga
esporos vermelhos
e flores muito finas



joão almeida
canto skin
língua morta
2019








20 abril 2020

luís filipe parrado / brecht no exílio



Trago um cajado, precipito um cão grego
pelas ravinas da história.
Conheço quem se dê mal com a vida
e não encontro a entrada do pomar,
a razão do vermelho da maçã.
Mas nem assim estou disposto a entregar
a minha dor à vossa trela.



luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019









19 abril 2020

ruy belo / poema quotidiano



É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro, porém, senhor administrador,
goza de tão eficiente serviço de sol.
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua.
O senhor não calcula, todo o dia,
que festa de luz proporcionou a todos.
Nunca vi – e já tenho os meus anos –
lavar a gente as mãos no sol como hoje

Donas de casa vieram encher de sol
Cântaros, alguidares e mais vasos domésticos.
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou.
Orientou – diz-se até – os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais.
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca,  misturou-o no pão.
Chegaram a tratá-lo por vizinho.
Por este andar... Foi uma autêntica loucura.
O astro-rei tornado acessível a todos,
ele, que ninguém habitualmente saudava.
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados.
Íamos, vínhamos, entrávamos, não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida, iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós.
Ficou tão triste a gente destes sítios.
Nunca foi tão depressa noite neste bairro.



ruy belo
aquele grande rio eufrates
1961






18 abril 2020

egito gonçalves / o progresso das ciências



Conseguiram encerrar o vento,
retirar a pouco e pouco o ar
e – maravilha – o povo
resiste ainda e vive.

A asfixia é lenta e os que morrem
parecem ir de morte natural.

Hoje porém os sábios consideram
enganosa essa fórmula que reduz
o paciente à condição de peixe triste.

Pois no repouso fictício a onda
aguarda o luar da maré cheia.

Nas manhãs da terra
as manchas de sangue ganham punhos;
a viva carne cobre o inesperado.



egito gonçalves
os arquivos do silêncio
1963





17 abril 2020

albano martins / no centro da volúpia



No centro da volúpia, como essência
e forma, como adorno,
contorno e cerne, é que o voo
se fixa, é que a ave
reside e o canto mora


e morre.



albano martins
a margem do azul
1982









16 abril 2020

elio pecora / a pier paolo pasolini



Ainda a vida
como se fosse um alhures
a habitar no sonho
e esta – de raivas, de esperas,
ainda assim, querida, procurada –
a porta a transpor,
uma véspera, uma paragem.

Ainda a ânsia,
como escura semente
a estrumar, a regar,
e nela o mapa
para seguir viagem.

(Uma tarde, em Sabaudia,
no teu último Verão
– da varanda a tua mãe
chama o mar que avança –
maldizes o alcatrão
dentro da areia, ao longo da ressaca,
e espantas-te com o azeite
que tira as nódoas).



elio pecora
poemas escolhidos
interlúdio (1987)
tradução de simoneta neto
quasi
2008







15 abril 2020

paul éluard / aqui



Uma rua abandonada
Uma rua profunda e nua
Onde os loucos têm menos dificuldade
Que os sensatos a safar-se
Nos dias sem broa e sem carvão

É uma questão de dimensão
N sensatos para um louco
E nada mais para lá da imensa
Maioria do bom senso
Um dia cru sem proporções

A rua tal uma ferida
Que não voltará a fechar-se
Que o domingo torna ainda maior
O céu é um céu de outro lugar
Senhor de uma terra estranha

Um céu cor-de-rosa um céu bem-disposto
A transpirar beleza e saúde
Sobre a rua sem perspectiva
Que me corta o coração em dois
Que me priva de mim próprio

Na rua não se passa nada nem ninguém.



paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar  1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002






14 abril 2020

marta navarro; paola d´agostino / os verões hão-de durar de novo três meses




os verões hão-de durar de novo três meses
os lanches hão-de vir com desenhos animados
a morte há-de ser coisa do primeiro de novembro
as ruas hão-de ser nossas depois da escola
os joelhos hão-de ser tecidos de esfolar
as bicicletas hão-de deixar de precisar de descanso
mãe há-de querer dizer mãos de veludo
e como antigamente há-de ser um lugar vazio de novo



marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014






13 abril 2020

heiner müller / o anjo sem sorte



O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.


heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







12 abril 2020

herberto helder / lenha, legna





Lenha – e a extracção de pequenos astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro, a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados,
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

Abril, 1980




Legna – e l´estrazione di piccoli astri,
scintile da poro a poro,
gli elettoni delle corolle. Solamente nel più buio
non c´è nulla. Nel buio, la carne è un buco
cieco, e quel che arde è il pane
nello stomaco, e nei bronchi
tagliatamente
l´aria. E il carbónio divora sonno a sonno l´innocenza
delle immagini. Quel che tocca l´organo più profondo
del soffio non è musica
né fiamma: soltanto un dito di marmo tra
le temple come
una pallottola. E mentre punte di fuoco segnano
la bocca, moriamo affogati,
nello specchio, nel viso. E se la follia per un istante
alza le palpebre.
La grande valvola del corpo.
L´oscurità, la terra.


Aprile, 1980



herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987