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18 agosto 2022

diogo vaz pinto / dois anos já

 
 
Dois anos já que espero me arrefeça o café
frente a lentíssimas cenas de caça
a rotina dos astros sobre umas poucas vidas
o laranjal incendiado e toda essa dança corrosiva
um fio de pesca nas mãos para que esquecido peixe?
e a frase com ela no meio indo à fonte
encher-se até cima
trabalhada como por um sonho
 
por ser doloroso o seu nome
vi-o espalhado, séculos antes lia-se em cântaros
neste vi-o marcado nas árvores
ali estava como um vestido a florir na corda
e o sol cheio de vagar a compor os ossos debaixo
tigres atravessando o selvagem estampado
a frágil fúria colorida num suave impasse
enquanto eu amestrava todos os tiques a solidão
e a escrita como uma forma de modéstia
o sentido estrito das aventuras
os mais ínfimos relatos e de costas
a antiguidade abanando a cabeça
 
a vida mal nos toca no meio dos bocejadores
desluzida mão-de-obra em transe
com as insistentes dívidas aos gatos
pássaros, cinzas assim
cansados uniformes adormecidos nos telhados
aquele mar moribundo atrás da casa
para quem gosta de afogar-se escutando os remadores
toda essa água ajuda-os lá com as coisas deles
uma última intimidade com o mundo
uma cobardia, uma fábula
algum outro assunto
 
mas ainda há um caroço poisado
sobre o muro, sobre o pior dos cansaços
há quem sopre a poeira dos colibris de biblioteca
quem exume corpos entre o veneno das gavetas
quem atravesse a manhã peneirando a neblina
e com passos iguais outros
tiram as medidas ao inferno
 
então perdoa-me, velho, se te deixo
se me falta o pudor e antes prefiro
o carnívoro talento mais sem vergonha
sorrindo sujo da mão ao cotovelo
entre as mais baixas das partes, quentes
eu a inspiro, esteja fresca ou podre
carne com um cheiro a tangerinas ao fundo
da língua faço um teatro romano
entrego o pescoço, deixo rolar a cabeça
por um enredo escabroso, do céu às fossas
que sangre e chame a si os elementos
 
e se das maiores inanidades esperei muito
dobrado hoje sinto-o nas costas
como se uma estrela pudesse esculpir ombros brutais
a pupila dilatada de assombro à sua luz
atiro a pedra arfante
e cruzo a vida breve das paisagens
o som de um coração trepando um susto
até à morte, o frescor silencioso que está lá
no início de todas as histórias
 
 
 
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020



08 fevereiro 2021

diogo vaz pinto / caídos, acordamos sempre estranhos

 
 
Caídos, acordamos sempre estranhos,
como quem dormiu ao relento,
pasto de estrelas,
e demora mais a fazer a infeliz conta.
 
À volta: coisas longínquas,
mordes o reflexo na maçã,
gosto que dirá à carne
o que d enoite apodreceu.
 
Caroços de violino, dentes
de leite, a roupa usada pelas silvas;
uma outra idade.
O que da infância a colher susteve,
como um gesto para explicar a boca.
 
Um interesse por mais e outra gente.
Puxar a mesa que faz a fama dos cafés
onde venham e falem como no sono,
façam a vida parecer algo menos ordinária
por uma hora ou duas.
 
Perceber por que a noite vê mais que o dia,
como no vidro dos corpos cada um escolhe e protege
o seu reflexo,
fazendo de umas poucas ruas de encanto duvidoso
o que Kaváfis fez por Alexandria.
 
Foi fácil alguma vez?
Para mim foi. Tinha outras armas,
outra inocência.
 
Entendo-me com o silêncio
e a eterna demora.
Não quis o inferno na gaiola
e à janela, para assustar ou comover
a vizinhança.
Ainda prefiro o passo à palavra,
e ter-me perdido,
agarrado um erro, estúpido e doce,
grosseiro do seu bem,
sua escusada graça, como uma doida
bendição entre estes talentos.
 
 
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020





21 setembro 2020

diogo vaz pinto / posso aprendê-lo


Posso aprendê-lo,
se chove e oiço sem me mexer tanto
ou me dá a sede do que é bebido na terra,
vertido por uma longa memória
até que a sílaba se derrama,
se derreta o ouro com o que num pote fervi
acabando sobre a forma que me apeteça
vivida a sua breve estação, resta
deitar-se como a outro, e aconchegá-lo
com algum veneno no ouvido,
estar a sós, ruindo, num gozo indecente
como o degolado que arrastasse pelos cabelos
a própria cabeça, e esta lhe fosse
lambendo da mão, chupando-lhe dos dedos
o sangue ainda quente leitoso doce



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020





06 agosto 2020

diogo vaz pinto / alguma coisa deve arder em nome desses



Alguma coisa deve arder em nome desses
a quem faltam os céus,
se despenham e na rede nada lhes deixam,
nem um astro duro, ou sequer uma bota
mas um brilho louco talvez te fixe os olhos no tecto
no tanto que ouvirias
se em cima se despisse outra mulher,
no ritmo de uma história andando de boca em boca
a roupa caindo
e o próprio golpe se abre e floresce
seco e doce de tão vasta madurez
a música se descesse às regiões inferiores
cada peça abalando a vida no quarto
enreda-me então e cerco-lhe a sombra
como se pingasse, chovendo no balde
nesse pobre piano da espera

queima-me a boca um gomo só
e da fome de o ter escrito o sumo escorre
entre o sono,
a sede mistura as memórias
demora-se a gota na pétala mais escura
cresce e bebo o gosto cansado deste mundo
rasgo a garganta dessa toada antiga
uma vida grega que ouvi cantada
como a trazia um pássaro
a quem estendia grainhas num prato
e um resto de água e tinta
e este reflexo como receita de veneno
pedi-lhe ajuda, um rumo entre os papéis,
e a noite e o seu soluço nalgum jardim quebrado
o fio que o ligasse ou a poeira de algo mais,
um contorno mesmo se escapasse
num tão veloz e desatado juízo
deixando marcas de batom ou sangue

nem acho que me faça hoje tanta falta
podia acabar-me devagar espaçando duas notas
com a navalha de abrir ostras nos dentes
devorando o grito dos demais
comendo com eles no chão
o que o céu deixa quando avança
mas se nem chega para todos
e logo esfria o cadáver da época
se o tumulto se acaba mais cedo agora,
em vez da morte, eu nascia
se então me tocasse enfim um lugar
mais lavado na graça sem sentido das coisas
e assim por muito tempo a música subisse
para não se lhe ouvirem os gritos



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020







30 abril 2020

diogo vaz pinto / que queres que te diga?



para o David


Que queres que te diga?
Não estamos velhos, se isso te consola.
Mas também já soa mais a conversa.
Uns passos fora e as paisagens
já nos arreganham os dentes.

Entre fósforos apagados e calcanhares de Aquiles,
eriçaram-se flores na carcaça do animal
que ia levar-nos daqui.

Baixou uma névoa não sei de onde,
e ando há semanas fodido
com os correios que já não asseguram
serviço de e para Pasárgada.

Ouve o que te digo: esta coisa
da realidade
está a meter água por todos os lados
e quem não se mandar agora
já não sai.

Qual poesia, qual caralho!
Depois de bater tudo, de ver os magrelas
dos cães a guerrearem por côdeas
entre os sacos de lixo da morte,
o que te digo é: nem faças as malas.
Onde quer que a gente venha
a fincar a bandeira dos ossos,
o passado só irá atrapalhar.



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020






15 junho 2019

diogo vaz pinto / sub-pop

                       
                          We’re plastic
              but we still have fun

                                Lady Gaga


Desliga o motor, deixa só os faróis.
Quietos, à beira de um descampado
respiramos pela boca debaixo
de um silêncio de chuva e vê-se
o escuro afrouxar alguns nós, sombras
encarnando lentamente
como numa pintura. Corvos, parecia,
debicando uns frutos caídos
que não conhecemos nem vimos antes.

O vinho verde deu para tudo, o ritmo
fez o que quis de nós. Agora
a fúria que nos divertiu corrige-se
com a manhã até uma pequena náusea
de boca entreaberta e seca. Divide-se
entre todos uma difusa sensação
da noite, do fim, e a luz molhada
dos últimos candeeiros sai vencida
por um tumulto natural.
Assobia-se nas ruas, há entre elas
um vento retido que leva o eco
de canções já sem ninguém,
arrastos comovidos com quase nada.

Dos domingos, quando ainda damos
por eles, fica só um registo junto
à pulsação. O sol levanta-se a custo
e larga alguns em casa, de resto
não quer saber que porra fizemos
na sua ausência.

Deixam-me em casa e ponho-me
à janela a comer cereais, e vejo-os dali,
abrigados sob um telheiro,
uns pássaros em filinha e trrrcht, um
e outro logo, fodidos de chumbo –
o impacto caramba, que delícia!
Mesmo por mal, uns putos num quinto
andar com uma pressão de ar, o riso
e os disparos, cá em baixo aquele
estrago todo. Pequenos gestos assim,
destrutivos, abrindo a maldade
como uma flor, babando-se de luz
e lambendo os lábios. Lembra-me

que o que morre
nasce para uma certa beleza.
penso calçar-me, meter o casaco
sobre o pijama, ir à varanda e fazer
umas chamadas, fundar um partido,
ver no calendário se ainda demora
o inverno e planear a invasão
duma Polónia, a ocupação dalguma
França, mas pelas duas da tarde
caminho aos ziguezagues até à cama
e adormeço simplesmente.


diogo vaz pinto
criatura
n.º 5 outubro 2010






20 julho 2016

diogo vaz pinto / que espécie de anjo


A carne é triste, e eu
já li todos os livros.

Mallarmé


Para o Jorge e o Manuel


Neste vazio, simples, directo, ficamos
como possuídos, amaldiçoando o mundo
em voz baixa, nestes apartamentos minúsculos.
Lâmpadas fundidas, lençóis sujos,
esse colchão cansado e a janela segurando
um copo de chuva.

Recebemos estranhos. Tenho um ali
com a cabeça metida na penumbra,
extraindo a claridade de alguma veia.
(Não sei que espécie de anjo desce
tão baixo.) Os infelizes que se enforcam
neste meu quarto de que a cabra da lua
tanto gosta, e vem vê-los baloiçar.

A minha voz muda a noite inteira,
rindo nuns tropeções de choro,
amargo deslize entre música e sono
derramado. Ando de punhos cerrados
e boca aberta que vai
ler nos lábios de um reflexo
uma descrição absurda. Olha para ti:
de roupão, saco de plástico, lembras
um vagabundo, para cá e para lá,
dentro de casa. Escuta,

o sol já se deixa ouvir nos fundos,
mas perdeste a nitidez. Objectos, imagens.
A luz, por aqui, mal pousa nas coisas.
Não reconheço o céu, não entendo
onde nos levam as distâncias
lá fora, como se fossem caminhos.
Nem banho, nem pente, só o cachecol
e um rumor de sementes nos bolsos.
Sigo-o, embalado pelo vento
até jardins incertos onde engrossa a raiz
dos pássaros. Nas traseiras do mundo,
os quintais do abandono. Um inventário
difícil, a inútil perfeição que regressa
de certas imagens. Um quadro
de bicicleta e um sofá esventrado, telhas
quebradas, flores das que cantam
à beira de precipícios e uma gaiola
envolvida na recordação de qualquer
coisa que nos fugiu. A tarde ali
de gatas, lavada de uma luz magra,
luz de desterro onde a chuva cai num
tom respeitoso e estende a sua rima
subtil entre estas ruínas d´eco.

Não deixes que anoiteça tão cedo.
Sem dares por isso, as mães chamam
os miúdos, os cães perdem os donos,
as ruas precipitam-se como rios
arrastados pelo bulício, e, enfim,
lá está aquilo a que não querias voltar.
Enfiados nas noites uns dos outros,
bares, carrosséis medonhos onde
cada um de nós vai sendo, à vez,
o eixo fixo da mais triste e precária
constelação.

O monstruoso esgar de uns, o frágil
sorriso de outros e a tua cara,
esse olhar de imbecil curiosidade
pactuando com esta fé terrível,
culto de uma raça sem profundidade
a que assistes, desviando o coração.

Horas em que o mundo faz demasiado
sentido e se torna simplesmente
cruel. Mesmo se tudo em nós
pede pátria, continuamos sozinhos.
Seduzimo-nos, fodemos maravilhosamente
como só os desesperados, mas acordamos
a meio da noite com a ansiedade
da lua, à espera denos ver baloiçar.



diogo vaz pinto
ladrador
averno
2012



05 julho 2012

diogo vaz pinto / estávamos a esquecer-nos tão depressa…






Estávamos a esquecer-nos tão depressa porque é
que a morte era uma ideia assim
tão triste, quando apagámos um nome
da lista de contactos
no telemóvel e nos tentámos lembrar
de coisas como o som da sua voz, ou de como
gostaria de ser recordado,
aliás, (a palavra certa é outra) esquecido.

Então Abril chega e é só mais um mês,
e a primavera rebenta cada vez mais distante
dos nossos gestos. Não contamos os cabelos,
mas vê-se bem que são cada vez menos
e a juventude, essa foi uma piada que na altura
não entendemos, e agora é já um pouco tarde
para nos começarmos a rir.

A manhã abre um parêntesis enquanto ponho
a cha1eira ao lume, pego num livro
que larguei ali. Aborreço-me
com os temas elevados e o modo inspirado
como trocam impressões as personagens
deste escritor.
Gostava que Deus existisse e nos visse assim,
de pijama na cozinha, remelosos e vazios,
à espera da primeira chávena de café
e de algum twist no enredo dos dias
que vieram até aqui.

De volta ao quarto onde dorme ainda
a cinderela da noite passada,
vou rabiscando umas linhas, uma metáfora
 molengona, a ver se colo duas estrofes
que não se entendem entre elas.
Por motivos óbvios penso na mão
que subiu pela saia da Mona Lisa
e lhe ensinou aquele sorriso.
É necessário ter tacto com coisas destas.

A gata borralheira finalmente acorda.
Falamos durante alguns minutos que
não consigo passar para aqui
e, depois de umas tiradas
dessas que vêm nos manuais, deixei-me des-
contrair, e vindo de uma rápida associação de ideias
fui meter o pé numa piada de mau gosto,
um parque de infância com muitas crianças,
todas tão indesejáveis, e uma recomendação
relativa ao uso de contraceptivos.

Ela demorou algum tempo a organizar-se,
deixou-me um olhar cheio de barcos a afundar
e foi-se, à procura de outra cama e de um príncipe
mais inclinado para finais felizes, ainda que
de curtíssima duração.

Estas coisas acontecem por uma boa razão,
acho eu. Mas o meu timing continua a não ser
dos melhores. Até por aí
me achego mais a versos, nestes cadernos
de exercícios onde marcamos encontros às cegas,
em lugares onde às tantas até é indiferente
se mais a1guém virá ou não.

Em que é que estás a pensar?
Tira uma nota mental, espera, tenta enviar
por telepatia. Ou trauteia uma canção qualquer,
uma fácil e pode ser que me fique no ouvido.
Sabes que dizem que é preciso matar o autor
para que o leitor possa nascer. Anda,
mata-me um pouco mais...
De qualquer modo não tenho já
muito por onde ir. Agora estou para aqui,
com este coração meio-deixa-andar,
lambido por suores frios, entre esperma e cinzas
nestes lençóis, nas gengivas deste fim de manhã,
escrevendo, passeando, como quem assobia
e tem agarrado pela trela algum abismo,
um desses animais que apanham o que atiramos
e vão suportando a nossa companhia.





diogo vaz pinto
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012