31 julho 2015

pascalle monnier / the murphy bed (excerto)



Olharei
o mar
das
janelas da minha casa
como
hoje vejo
os automóveis
e
adivinharei
as trovoadas
as tempestades
e
outra vez o sol
e
verei
nas noites de lua cheia
dentro do quarto
como
em pleno dia
e
nesses dias
mesmo
se
não conseguir dormir
eu
ficarei contente
porque
esperarei
então
sentada
diante
da janela
sobre
o mar
que
a luz do dia
venha
e fique
em vez
da luz da Lua
e
quando
o dia tiver sucedido à noite
adormecerei
enfim
sem recear
que a luz do Sol
do dia
seja demasiado
clara
e demasiado violenta
como
receio
que seja hoje
porque
tenho
sempre medo
quando o sol
é muito forte
gosto
da luz
suave
da manhã
da luz
suave da noite
mas
não
da luz
vertical
e
violenta
do sol
no zénite
E conhecerei cada tremular de uma folha sob
o efeito do vento.
Um suspiro, um grito, uma palavra.


pascalle monnier
tradução de miguel serras pereira
sud-express, poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993



30 julho 2015

charles simic / adensam-se as nuvens



Parecia o género de vida que queríamos.
Morangos silvestres com natas pela manhã.
Em todos os quartos a luz do sol.
Nós os dois a passear nus na praia.

Certas noites, porém, descobríamo-nos
Incertos do que viria a seguir.
Como actores de um drama num teatro em chamas,
As aves volteando por cima de nós.
Os pinheiros escuros estranhamente quietos,
Todas as pedras em que tropeçávamos
Ensanguentadas pelo sol poente.

E voltávamos para o terraço a beber vinho.
De onde nos vinha este pressentimento de um final infeliz?
Nuvens de aparência quase humana
Adensavam-se no horizonte, mas tudo o resto tão lindo
O ar tão brando e o mar tão manso.

A noite caía subitamente sobre nós, uma noite sem estrelas.
Acendias uma vela, levava-la nua
Para o nosso quarto e apagáva-la depressa com um sopro.
Os pinheiros escuros e os arbustos estranhamente quietos.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2





29 julho 2015

alda merini / e mais fácil ainda



E mais fácil ainda me seria
descer a ti plas mais sombrias escadas,
aquelas do desejo que me assalta
como lobo infecundo noite adentro.

Sei que tu colherias dos meus livros
com as mãos sabedoras do perdão…

E também sei que me amas de um amor
casto, infindável, reino de tristeza…

Mas eu pra ti o pranto o alisei
dia após dia como luz repleta
e mando-o de volta tácita aos meus
olhos, que, se te olho, vivem de estrelas.

(de  Tu és Pedro, Scheiwiller, 1961)



alda merini
tradução de marco bruno
relâmpago
revista de poesia, nr. 17 10/2005
fundação luís miguel nava
outubro de 2005



28 julho 2015

antónio barbedo / praia do cais

  

Depois do asfalto é areia. A seguir
o cais. Encontras o trilho, carris velhos.
Um comboio ao entardecer, Senhora da
Hora, Trindade. Foi outro verão, não sei porque
te lembro agora. O vento solta os toldos
desertos. A pequena  luz do navio esmorece. Um cão
corre na praia  com o livro nos dentes.


antónio barbedo  
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003



27 julho 2015

luís miguel nava / paisagem citadina



A pele por fulgurantes
Instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.

Não temos então delas senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração, se cruzam solitários
e agrestes, reflectidos

por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas no terraço.

A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002




26 julho 2015

teixeira de pascoaes / e a noite, onde murmura a nossa origem,



E a noite, onde murmura a nossa origem,
Subiu comigo aos cerros do Marão.
E a estrela virgem
Da Anunciação,
Dos seus lábios, cantando e rindo nasce:
Um áureo beijo, a arder e a iluminar...
Seu cabelo aloirava; e à sua face,
Viam-se as lindas cores aflorar.

Brumas, sombras nocturnas, brandamente,
Sumiram-se, no ar...
                           E seu formoso
Corpo cruel de deusa omnipotente,
Voluptuoso,
De pé, naquela altiva soledade,
Como enlevado, extático, sorrindo,
Domina a planetária imensidade
E o céu infindo...
E aquele riso,
Doirando a serra,
É um anjo que nos mostra o Paraíso,
Além da terra.

Alto sorriso lúcido, escultura
Em luz marmórea...
O busto da esperança que fulgura,
Dentro de nós, no escuro da memória...
Ó riso, árvore de luz, solta folhagem
De azul tremente!
Ó rosto alegre, outeiro em flor, paisagem...
Idílica frescura, água corrente...
[...]



teixeira de pascoaes
1877-1952
senhora da noite



24 julho 2015

almada negreiros / civilização e cultura




Uma mesa cheia de feijões.
O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão.
O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo.
Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas.
O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território, é o processo de CIVILIZAÇÃO.
O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA.
É mais difícil a passagem de civilização para cultura do que a formação da civilização.
A civilização é um fenómeno colectivo.
A cultura é um fenómeno individual.
Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.

(Aqui há uma ilustração cujo desenho representa uma balança perfeitamente equilibrada com a civilização num dos pratos e a cultura no outro).

FIM

Justaposição disto mesmo a Portugal: uma civilização sem cultura.
As excepções, inclusive as geniais, não fazem senão confirma-lo.



josé de almada negreiros
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




23 julho 2015

wallace stevens / chá



Quando a orelha-de-elefante do parque
Se engelhava de frio,
E as folhas nas veredas
Corriam como ratos,
O teu candeeiro tombava
Em almofadas cintilantes,
De tons de mar e tons de céu,
Como sombrinhas em Java.



wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



22 julho 2015

gil t. sousa / onde mora o coração



ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração


gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014


21 julho 2015

vergílio ferreira / que é que muda em nós quando mudamos?



99 – Que é que se muda em nós quando mudamos? De idade, de uma condição, às vezes mesmo de um local? Podem manter-se os mesmos valores, ideologia, relação com a vida. e todavia, aí mesmo, alguma coisa pode mudar. É a mudança que se opera no indizível de nós, onde mora a organização disso tudo, ou seja, o equilíbrio disso tudo. Os valores reordenam-se numa outra ordenação, num outro escalonamento, num modo diverso de os perspectivarmos. Os valores podem permanecer, mas não na face que era a sua ou o lugar que era o seu. E com isso em nós a porção de alma que lhes démos. Ou a aceleração do ritmo da nossa excitação. Não se entenderá assim que a mesma obra seja diferente como a arrumação diferente dos móveis de uma sala? Porque uma obra é o que é, mais o modo de a fazermos ser o que nela somos nós. Mas esse modo é o que ela é afinal. Que é que muda em nós quando mudamos? Uma forma diferente de sermos o mesmo. As vagas do mar. Um céu que se descobre. A pele que se enruga. O ângulo do olhar.

  

vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




20 julho 2015

agustina bessa-luís / emigrar



Às vezes penso em emigrar. É uma tendência fatal dos Portugueses que se manifesta desde o primeiro bocejo; só que um é de fome e outro de puro aborrecimento: um sugere-o a contracção do estômago onde se digerem côdeas e couve galega; outro, a mente em que se arrefecem pensamentos e suas consolações. Por isso, por esta inclinação movediça, a nossa cultura é estrangeirada; não se recorre ao sabor pátrio, de tanto que ele se traduz em humilhação e impedimento. Mas vai eu, em tentação de romper com muitas amizades, que em serem inimigas me dariam mais proveito, estabeleço planos tão bem gizados que, a traduzirem estratégia guerreira, já tinha por camaradas Aníbal e Alexandre. Todavia, há sempre um nada que me assombra e imobiliza. Não é o respeito por coisas famosas, a História e os grandes cá da terra. São coisas pequenas, devoradoras da paz se as temos por distantes: um dia de chuva na Primavera, com aqueles campos acima do Ave, crivados de malmequer amarelo, desse de que se faziam colares, com cheiro ácido, de botica. […] Às vezes penso, é certo, em emigrar. Entre os que se entendem há demasiada claridade. E preferimos incertezas vulgares a tácitas indiscrições, de gente vizinha e, no geral, amiga. Mas depois mudamos de ideia.


agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008



19 julho 2015

herberto helder / ciclo



V

Uma noite acordarei junto ao corpo infindável
da amada, e meu sangue não se encantará.
Então, rosa a rosa murcharão meus ombros.
Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos
de distância, como se tudo fosse cheiro
que as ervas pungentemente perdem
através do silêncio.
Plácido chegarei à mesa, e de súbito
o coração se atravessará de gelo puro.
O vinho? perguntarei. Flores de sal cobrirão
a luz poderosa do meu olhar.
Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente
pasmo da carne: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.

Então lembrarei a vermelha resina, o espesso
murmúrio do sangue,
o acre e sobrenatural aroma das acácias.
Tentarei encontrar uma forma.
Com beijos antigos um momento ainda queimarei
o corpo solitário da amada, direi palavras
de uma ternura de azebre.
E uma vez mais perderei, dizendo: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.


herberto helder
ciclo, poema V
poesia toda
assírio & alvim
1996




18 julho 2015

ruy belo / lugar onde


Neste país sem olhos e sem boca
hábito dos rios castanheiros costumados
país palavra húmida e translúcida
palavra tensa e densa com certa espessura
(pátria, de palavra apenas tem a superfície)
os comboios são mansos têm dorsos alvos
engolem povoados limpamente
tiram gente de aqui põem-na ali
retalham os campos congregam-se
dividem-se nas várias direcções
e os homens dão-lhes boas digestões:
cordeiros de metal ou talvez grilos
que mãe aperta ao peito os filhos ao ouvi-los?
Neste país do espaço raso do silêncio e solidão
Solidão da vidraça solidão da chuva
país natal dos barcos e do mar
do preto como cor profissional
dos templos onde a devoção se multiplica em luzes
do natal que há no mar da póvoa de varzim
país do sino objecto inútil
única coisa a mais sobre estes dias
Aqui é que eu coisa feita de dias única razão
vou polindo o poema sensação de segurança
com a saúde de um grito ao sol
combalido tirito imito a dor
de se poder estar só e haver casas
cuidados mastigados coisas sérias
o bafo sobre o aço como o vento na água
País poema homem
matéria para mais esquecimento
do fundo deste dia solitário e triste
após as sucessivas quebras de calor
antes da morte pequenina celular e muito pessoal
natural como descer da camioneta ao fim da rua
neste país sem olhos e sem boca



ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004



17 julho 2015

fiama hasse pais brandão / quando eu vir vaguear por dentro da casa



Quando eu vir vaguear por dentro da casa
o abeto que cresceu no bosque, hei-de
ajoelhar no soalho. Todas as coisas
comunicam entre si a totalidade das suas formas.
A mão que vai surgir do abeto apontará para mim.

Tenho de despir as tiras de brocado que envolvem as veias,
as cadeias de ouro dos rins. Deixar
que as unhas longas da árvore passem
entre mim e o imo dos quartos interiores da casa.

Se essa figura imponente, a árvore, me reconhecer,
vou interromper o que escrevo, esperar ansiosa
atracção que a insónia desse vulto
há - de exercer sobre mim. Rodo
até à tontura da morte.
           Torturo-me
até à alegria. Encontro na casa
o tema da despossuição e a agonia.

A pobreza antiga com que o corpo cai
para uma vala. Preso apenas às pérolas
que tinem nas orelhas. Dante deixou-nos resvalar,
com os cânones clássicos, como se o poema
fosse uma escada. É-o, quando as figuras austeras
da Natureza perseguem os mortais. Querem confirmar
a sua configuração. Querem ser
reais, quando se aproximam.
Vai para diante da minha face, ao fundo.
Vem dos recantos, onde já não é a silhueta volúvel
enovelada pelo vento, à janela. Com lentidão
arrasta a forma táctil até à passagem do poema.

Sou eu que me vergo ao domínio.
Que me poise a marca incandescente na testa.
Tocará na meninge como num cofre.
Aceito coroas para depor sobre mim.
Deixo os pés do abeto empurrar
com a biqueira violetas. A fragrância
delas leva-me a imaginar poemas
em branco. Depois de percorrer um longo encadeamento
de sílabas sou outra. Vejo assomar a natureza nua.



fiama hasse pais brandão
área branca
1978



16 julho 2015

eugénio de andrade / a paixão



Levanto a custo os olhos da página;
ardem;
ardem cegos de tanta neve.
Faz dó esta paixão pelo silêncio,
pelo sussurro do silêncio,
pelo ardor
do silêncio que só os dedos adivinham.
Cegos, também.


eugénio de andrade




15 julho 2015

robert creeley / bailarinos imóveis



Lanço o tema
com uma cadência
de velha e doce
canção de amor ─

Não há mal
na emoção
nem em recordar tudo
o que se pode ou quer.

Deixa que a música frágil, abafada
derrame o seu fascínio
e enfeitice quem quiser,
bailarinos imóveis à lua.


robert creeley
poesia do mundo
tradução de graça capinha
afrontamento
1995




14 julho 2015

sebastião da gama / cansaço



Não quero amar nem ser amado…
Quero ficar estúpido e cansado
a este canto, e só.

Batido pelo Vento,
sem conforto, sem pão, sem alegria.

E se eu chamar não venhas.
(Que eu não hei-de chamar-te…)

No entanto, Amor, não saias para longe.
É que eu posso, apesar de tudo quanto digo,
chamar por ti.
E era tão bom saber que me escutavas!...
E era tão bom sentir que perdoavas!...



sebastião da gama
cabo da boa esperança
pecado original
ed. ática
1959



13 julho 2015

charles simic / história verdadeira



Que não se pode contar em palavras
Como uma mosca no mapa do mundo
Na montra da agência de viagens.

Aquela rua no calor da tarde
Sem ninguém a não ser meu idoso pai
De cabeça encostada ao vidro
Para a ver melhor
Enquanto ela arrasta a sua sombra filiforme
De Nova Iorque até Xangai.

Nem sabe se há-de acordar o amigo,
O barbeiro, que dormita ali ao lado
Com um lenço a tapar-lhe a cara.

  

charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2




12 julho 2015

al berto / noutros tempos



noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenámo-nos boca a boca com vidro moído
pelas salivas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras



al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997




11 julho 2015

ruy cinatti / algures na beira



A paz das aldeias entre montanhas…
Casa agranitadas, telhados de ardósia,
ruas de terra e de pedra solta,
videiras alçadas em árvores de limo…
Passear por estes campos à beira das coisas
é um supremo bem que não de alcança
senão a caminho do nosso destino.

6/12/76


ruy cinatti
56 poemas
de «paisagens»
relógio d´água
1992



10 julho 2015

josé gomes ferreira / as crianças



XIII

As crianças
atiravam o Sol umas às outras
a brincarem no pátio
entre gritos alegres de poeira.

Não percebo porque os deuses
em vez de viverem com os homens
nos esperam na sombra
com caveiras de incenso
e invenção de pequenos enredos na morte
para entreter o silêncio.


josé gomes ferreira
memória I 1957-1958
poesia V
portugália
1973



09 julho 2015

antónio gedeão / poema da malta das naus



Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
Com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

  

antónio gedeão