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05 junho 2024

luís miguel nava / em sintra

 
 
 
As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 



17 abril 2024

luís miguel nava / manuel

 
 
 
Fui ter com ele à Feira Popular, donde minutos
depois partimos para Sintra. Lembro-me
de o carro avançar à velocidade do meu sangue.
No Guincho, onde momentos antes
de o sol se pôr parámos, vi o mar
ganhar no espírito dele outra ondulação.
De nós, assim o soube, erguem paisagens
as viagens. Entre a pele e o coração alçam-se pontes.
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002





03 janeiro 2024

luís miguel nava / a roupa

 
 
Entre o meu corpo e a roupa que o reveste há uma distância enorme. Dir-se-ia que a roupa está nas insondáveis profundezas dum abismo em torno de cuja protecção os meus órgãos se expusessem aos caprichos do céu. Bloqueiam-me as vértebras palavras de cujo sentido o próprio sol precisa para brilhar. Sai-me do corpo o tempo num só vómito, o que torna transparente todos os meus órgãos. A roupa é uma incógnita, esmagada assim entre a esperança e as torrentes.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020
 



30 maio 2023

luís miguel nava / os nervos

 



 
Começaram-se-lhe os nervos, um dia, a reproduzir com uma violência inusitada, abrindo-lhe por fim a pele, por fora da qual, como a hera nas paredes, rapidamente se espalharam, sobrepondo-se aqui e acolá à própria roupa, com que deixou de poder dissimular o acontecido. Não havia, além disso, peça de vestuário que, depois de a ter vestido há algumas horas, o seu espírito já quase não houvesse totalmente devorado. O mesmo sucedia com os óculos. À nudez que o espírito lhe impunha, vinha-se juntar assim uma espécie de cegueira, entre as quais não tardou a haver quem encontrasse afinidades.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




24 dezembro 2022

luís miguel nava / em entrelinhas

 
 
Tem furos na consciência, este rapaz. Tem a memória em cacos. Que fará da minha infância quando entrar no rasgão com que deu a todo o comprimento dela? Que sabe ele do labirinto onde uma letra se extravia ou do horizonte em que pressinto um sublinhado? Ignoro o que ele fará, bem como o que dirá ao ver num poema o céu em entrelinhas.
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 




01 novembro 2022

luís miguel nava / transparência

 



 

Momentos há em que a toda a nossa volta os objectos se tornam insuportáveis como se nos roubassem o ar, como se neles houvesse uma respiração onde o ar e a luz interviessem simultaneamente. Entre os sabores que tocam no meu espírito procuro então o que melhor me possa devolver à transparência, não a dos espelhos ou dos vidros, que a literalidade impregna, mas a abrupta transparência dos sentidos.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




 


03 junho 2022

luís miguel nava / ainda às vezes

 
 
Avanço devagar, vão-se os amigos na ressaca
de cujo amor avanço assim deixando
ficar contudo aos poucos para trás, embora o mar
lhes sobre ainda às vezes do sorriso.
 
Procuro esses amigos. É possível
atar-lhes o horizonte entre o cabelo e acaricia-los
ainda uma vez mais. fazer-lhes através
das mãos passar o sopro das pedreiras.
 
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 



23 dezembro 2021

luís miguel nava / retrato

 
 
A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurava protecção.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




 

11 novembro 2021

luís miguel nava / o céu agrada-me pensar

 
 
O céu agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos. Aqueles contra cujos lábios a partir de dentro empurraremos docemente os nossos nomes e que, quando levam comida à boca, sabem que é a nós que estão a alimentar. São dois ou três amigos, aqueles só em cujos corações enfiamos achas, o clarão atinge-lhes os olhos, pensarão: hoje a memória é como se a trouxéssemos em braços. Não sei se quando o mar lhes vier ao espírito o ouviremos rebentar, o certo é que por ele às vezes sobem marés. Há ondas que se vê terem por ele passado antes de contra os nossos corpos deflagrarem.
 

 
luís miguel nava
rebentação
poesia
assírio & alvim
2020







 

25 agosto 2021

luís miguel nava / o azul do mar

 
 
O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar se alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020








11 junho 2021

luís miguel nava / no fogo da memória

 
 
Começa-se o silêncio a desenhar
nos interstícios da carne, a que se prendem
imagens que no fogo
lento da memória se apuraram
de dia para dia e que o passado
nos serve agora como uma iguaria.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




 

23 março 2021

luís miguel nava / sem outro intuito

 
 
Atirávamos pedras
à agua para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificavam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
 
 

luís miguel nava
vulcão
poesia
assírio & alvim
2020




14 novembro 2020

luís miguel nava / uma candeia

 
 
 
       Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras e que, contrariamente às aparências, não está na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os contornos dos banhistas.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020







18 setembro 2020

luís miguel nava / mergulho



O céu mal se equilibra, do mar, dele
no corpo os corações sendo embaixadas,
irrompem as falésias e nós, como
se as víssemos
melhor quando sobre elas o mar poisa numa das asas,
entramos por nós dentro até de nós
nem mesmo a mais pequena marca subsistir na água.


luís miguel nava
rebentação
poesia
assírio & alvim
2020









11 maio 2020

luís miguel nava / o céu



Assoam-se-me à alma, quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.



luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982












06 abril 2020

luís miguel nava / nos teus ouvidos



Nos teus ouvidos isto explode
de amor, palavra ampola sob
os astros funcionando abril à boca das cidades, dos
imperturbáveis muros aos quais as crianças
que de cristais nos punhos acontecem passam,
seus chapéus brevíssimos, os indícios
de nada, o modo de ler, de acender um texto
de amor nos ouvidos, isto explode e entra
nesta página o mar da minha infância, meigo
no modo de lembrá-lo, lê-lo, de acender
de carícias um texto na memória. De astros
as ruas eram cheias que os cuspiam hoje
na minha mãe de outrora, nas crianças de água, nos
pensamentos nenhuns que eu punha em seus joelhos, em
seus amáveis joelhos a que os astros acorriam,
minha mãe que arranco ao sono, às areias virgens
das palavras, que amanhecido eu gero, as mãos
tão de repente em pânico nos muros.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
películas
publicações dom quixote
2002





01 agosto 2019

luís miguel nava / a bem dizer



O céu desembaraça-se do sangue, espalha-nos
agora a solidão ervas nos rostos.

O mar vai pelos ares.
Não há, a bem dizer, forma
nenhuma de o coser com a esperança.


luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982










03 junho 2019

luís miguel nava / basalto




Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.


luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982







02 abril 2019

luís miguel nava / já nem sequer




As ondas que se encontram
ainda agora em formação no espírito
dele já não vêm rebentar ao meu.

Por mim não volto a vê-lo, encontros houve
com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.

Já nem sequer dele quero ouvir falar,
saber que se ele
fosse uma cama estaria por fazer nada me traz
agora além de desconforto.



luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982






11 fevereiro 2019

luís miguel nava / rapazes




Foi há cerca de um ano que eu
os vi, onde o granito e a luz são consanguíneos.

Seguiam abraçados um
ao outro, o pensamento posto no amoroso
lençol de que era na mão deles
o guarda-chuva uma antecipação.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002