28 fevereiro 2021

ahmad ‘abd al-mu ‘ti hijazi / morte súbita

 
 
trago comigo o meu número de telefone
o meu nome e endereço
e assim se de súbito cair morto
podereis identificar-me
e meus amigos virão
 
Fancy, aconteça o que acontecer
não venhas.
ficarei na morgue duas longas noites
frios fios de telefone agitar-se-ão na noite.
a campainha começará.
sem resposta… uma vez… duas.
 
alguém irá ter com a minha mãe
e lhe dirá que eu morri
minha mãe essa triste camponesa
como caminhará só pela cidade
levando o meu endereço!
como passará a noite a meu lado
no átrio completamente mudo
subjugada pela solidão
confortada pelo seu recolhimento em dor
quando pondera só
por sobre as suas penas secretas
em tecer a minha mortalha das suas negras lágrimas
 
quem dera que a minha mãe tivesse
tatuado o meu braço de rapaz
assim não me perderia
assim não trairia meu pai
assim o meu primeiro rosto
não se perderia sob o meu segundo rosto.
quando vejo homens e mulheres saindo em silêncio
depois de terem passado duas horas diante de mim
durante as quais não trocámos olhares
ou vimos diferentes cenários
quando vi que a vida não tem loucura
e o pássaro da quietude se alvoroça sobre todos
sinto como se estivesse realmente morto
jazendo silenciosamente
contemplando este mundo agonizante.
 
 

ahmad ‘abd al-mu ‘ti hijazi
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalberto alves 
assírio & alvim
2001





27 fevereiro 2021

rui caeiro / na minha terra

 
 
Na minha terra, no capítulo das figuras típicas, havia muitos velhos, alguns deles muito velhos mesmo. A maior parte sentados, imóveis, pelos cafés, pelas tascas, pelos bancos de pedra da praça. Concentrados na sua solidão, no seu silêncio teimoso, com a pirisca já consumida a pender dos lábios…
 
Ainda me lembro de um ou outro desses magníficos velhos, por os considerar autênticos filósofos. Partidários talvez de uma filosofia concisa, meio empírica e meio pragmática, ou tão-só de uma filosofia calada, de um género não consagrado ainda.
 
 
 
rui caeiro
pranto por vila viçosa
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




26 fevereiro 2021

jorge luís borges / uma rosa e milton

  
De tantas gerações de inúmeras rosas
Que se perderam no fundo do tempo
Quero roubar só uma ao esquecimento,
Uma sem marca ou sinal entre as coisas
Que existiram. Oferece-me o destino
O dom de nomear pla vez primeira
Essa flor silenciosa, a derradeira
Rosa que Milton do rosto aproxima
Sem ver. Ó amarela ou tu, vermelha,
Branca rosa de um jardim apagado,
Deixa magicamente o teu passado
Imemorial, e neste verso brilha,
Oiro, sangue ou marfim ou tenebrosa
Como nas suas mãos, oculta rosa.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





25 fevereiro 2021

sophia de mello breyner andresen / inverno

 
 
Este Inverno é longo gélido
E confuso
Na varanda só o vento passa
E o vento olha-nos de esguelha quando passa
 
Nenhum poema aflora
Entre as linhas finas e aéreas
Da página em branco
 
 
Inverno de 1999
 
 

 
sophia de mello breyner andresen
poemas dispersos
obra poética
assírio & alvim
2015





 

24 fevereiro 2021

arthur rimbaud / a minha boémia

 (Devaneio)
 
 
Assim ia eu, com os punhos nos bolsos rotos;
E o meu casaco que também se tornara ideal;
A cabeça descoberta, Musa!, e a ti sempre fiel;
Ah! Com que esplêndidos amores não sonhei!
 
As minhas únicas calças tinham um enorme buraco.
– Polegarzinho sonhador, pelos caminhos desfiava
As minhas rimas. O meu albergue era a Ursa Maior.
– As minhas estrelas faziam no céu um suave frufru.
 
Ficava a ouvi-las, sentado à beira dos caminhos,
Nessas belas noites de Setembro em que sentia no rosto
Como um vinho retemperante, as gotas do orvalho;
 
Quando, rimando no meio das sombras fantásticas,
Como as cordas de uma lira, puxava os atacadores
Dos meus sapatos feridos, um pé junto do coração!
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018





 

23 fevereiro 2021

paul celan / nas estrias

 
 
NAS ESTRIAS
de moeda celeste pela fenda da porta,
forças tu a palavra
fora da qual rolei,
quando meus punhos trémulos
o tecto sobre nós
quebravam – ardósia por ardósia,
sílaba a sílaba – pelo amor
de um brilho
cobre, no prato do mendigo,
la em cima.
 
 
 
 
paul celan
trad. antónio magalhães
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990






22 fevereiro 2021

konstantinos kaváfis / a mesa do lado

 
 
Terá apenas vinte anos.
E, no entanto, estou certo de que, quase os mesmos
anos antes, gozei desse mesmo corpo.
 
Não é de modo algum excitação erótica.
Há pouco tempo que entrei neste casino:
nem sequer tive tempo de beber demais.
Esse mesmo corpo gozei-o eu.
 
Se não recordo onde – não importa o ter esquecido.
 
Ah, e agora, ei-lo que está sentado na mesa do lado,
reconheço cada gesto seu – e sob a roupa
volto a ver os amados membros nus.
 
1918
 
 
 
konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





21 fevereiro 2021

antónio maria lisboa / rêve oublié

 
 
Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
 
Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
 
Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
 
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
 
Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro
 
E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995
 




20 fevereiro 2021

josé tolentino mendonça / a estrada branca

 
 
Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto
 
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
 
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate
 
 
 
 
josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005

 





19 fevereiro 2021

manuel antónio pina / a quarta porta

 
 
É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?
 
Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regressarei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está atrás de ti
 
é a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.
 
 
 
 
manuel antónio pina
o que está atrás de ti
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012

 





18 fevereiro 2021

ruy belo / o portugal futuro

 
 
0 portugal  futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
 
 
ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004





17 fevereiro 2021

albano martins / compromisso

 
 
Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999






 

16 fevereiro 2021

amalia bautista / ondas

  
Sei que me estou a afogar, mas ao menos
consigo manter de fora a cabeça.
De modo que, por favor,
não venhas tu fazer ondas.
 
 
 
amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013







15 fevereiro 2021

claudio rodríguez / nunca será meu amigo

 
 
Nunca será meu amigo quem na Primavera
vai para o campo e esquece entre os azuis festejos
os homens que ama, e não vê o couro velho
por sob a nova pelagem, mas tu, verdadeira
 
amizade, pão celeste, tu, que no Inverno
na clara alvorada sais de casa e começas
a andar, e no nosso frio achas refúgio eterno
e na nossa seca profunda a voz das safras.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

14 fevereiro 2021

jorge de sena / baptismo

 
 
Os mais difíceis poemas onde falo de amor
são aqueles em que o amor contempla.
 
O amor esquece ao contemplar,
esquece que não existe e encantado olha
um raio anónimo sob o vento mais leve.
 
Contempla, amor, contempla.
 
E vai criando o nome que darás ao raio.
 
 
jorge de sena
coroa da terra  (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




13 fevereiro 2021

reinaldo ferreira / que estranha, a nossa verdade!

 
 
Que estranha, a nossa verdade!
Às vezes, partida a meio,
Minha ilusória unidade,
Pensando, sinto, pensei-o.
 
Mas quando penso que o penso
Estou-o pensando também.
Na vertigem, não me venço
E recuo e vou além
 
Daquilo p’ra que há defesa.
Feliz quem pode parar
Onde a certeza é certeza
E pensar é só pensar!
 
 
reinaldo ferreira
um voo cego a nada (Livro I)
poemas
vega
1998





 

12 fevereiro 2021

paul éluard / eu falo em sonho

 
 
Nos veios da nossa cidade
Estendiam-se os homens pobres diabos
Um rosário de amores infantis
E bem comportados como cristais
 
Sobre todos os caminhos dos nossos olhos
Pavoneavam-se mulheres sagradas
Como véus de mulheres casadas
Intactos ou remendados pesados ou luzidios
 
Estou a falar em sonho e transmito
O curto instante do grande repouso
O momento em que nada é impossível
Um pouco mais de carne e mel a mais
Estar enlevado é uma forma de realidade.
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
corpo memorável 1948
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002





11 fevereiro 2021

charles simic / o maluco

 
 
O mesmo floco de neve
Caiu continuamente do céu cinzento
A tarde toda,
Caía, caía
E levantava-se
Do chão,
Para voltar a cair.
Mas agora, quando a noite veio dar uma volta
Para ver o que se passa,
Mais disfarçada
E cuidadosamente.
 
  
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





10 fevereiro 2021

bernardo soares / agir é intervir. um braço que se estende ocupa espaço...

 
 
Agir é intervir. Um braço que se estende ocupa espaço e torna-se, assim, uma escultura metafísica. Nunca pude deixar de dar a este facto insignificante uma importância alada sobre o quotidiano.
 
Nunca vi em mim senão uma romaria de inconsciências para o outono das minhas intenções. As longas horas que tenho passado à beira do meu correr têm-me [...] rios sobre a existência.
 
Com os meus passos treme a luz das estrelas. Um gesto da minha mão, que me oculta a lua um momento, mostra, com este meu assombro, quanto pode realmente significar. Destes pensamentos, tornados domésticos e quotidianos ao meu escrúpulo, adveio ao meu instinto que ele naufragava no porto.
 
Pareceu-me sempre que ser era ousar; que querer era aventurar-se. Inércia soube-me a santidade, e não-querer a ter bons costumes. Construí assim uma moral burguesa do pensamento, um cuidado da comodidade e da decência através do respeito do mistério. A exagerada consciência, que sempre tive, dos meus momentos, doeu-me sempre a mistério e a divino. Nunca me compreendi sobretudo quando me surpreendi a viver as inconsciências dos meus instintos e a vulgar correcção dos meus reflexos nervosos.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990
 




09 fevereiro 2021

josé miguel silva / estela funerária

 
 
Era um rapaz sem vocação para o caminho,
um arco sem arqueiro.
Chamava-se Elpenor.
 
Mais do que a palavra preocupava-o a lama
na sandália do poeta,
a mancha no tapete.
 
Movia-o a coragem de estar só,
divisão dos que celebram
o massacre da esperança.
 
Caiu a sua casa, vendeu as suas veias,
partiu para o desastre,
 chegou à nossa frente.
 
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014





08 fevereiro 2021

diogo vaz pinto / caídos, acordamos sempre estranhos

 
 
Caídos, acordamos sempre estranhos,
como quem dormiu ao relento,
pasto de estrelas,
e demora mais a fazer a infeliz conta.
 
À volta: coisas longínquas,
mordes o reflexo na maçã,
gosto que dirá à carne
o que d enoite apodreceu.
 
Caroços de violino, dentes
de leite, a roupa usada pelas silvas;
uma outra idade.
O que da infância a colher susteve,
como um gesto para explicar a boca.
 
Um interesse por mais e outra gente.
Puxar a mesa que faz a fama dos cafés
onde venham e falem como no sono,
façam a vida parecer algo menos ordinária
por uma hora ou duas.
 
Perceber por que a noite vê mais que o dia,
como no vidro dos corpos cada um escolhe e protege
o seu reflexo,
fazendo de umas poucas ruas de encanto duvidoso
o que Kaváfis fez por Alexandria.
 
Foi fácil alguma vez?
Para mim foi. Tinha outras armas,
outra inocência.
 
Entendo-me com o silêncio
e a eterna demora.
Não quis o inferno na gaiola
e à janela, para assustar ou comover
a vizinhança.
Ainda prefiro o passo à palavra,
e ter-me perdido,
agarrado um erro, estúpido e doce,
grosseiro do seu bem,
sua escusada graça, como uma doida
bendição entre estes talentos.
 
 
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020





07 fevereiro 2021

claudio damiani / é uma guerra onde não se combate

 
 
É uma guerra onde não se combate,
caem bombas, e chega,
apanham-te na rua, na frutaria,
nos cinemas, nos supermercados, nos lugares de trabalho,
também em casa: entram pela janela
e explodem-te na cara.
Mesmo se construísses um bunker
cem metros debaixo da terra,
com paredes de aço, com portas de diamante,
mesmo assim as bombas haviam de te alcançar ali.
E as pessoas não vão para os refúgios,
nem ficam em casa, nem procuram esconder-se,
na verdade fazem todas as coisas como se tudo fosse normal,
saem do trabalho vão ao bar divertem-se
como se tudo fosse normal
como se tudo fosse como era dantes.
 
 
 
claudio damiani
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020

 



06 fevereiro 2021

nicolás arnedo marañon / amargura

 
 
Há dias em que qualquer um
deitaria fogo a uma floresta
para ver arder nela
a raiz da sua tristeza.
Dias em que qualquer um participaria
de uma guerra com a condição de merecer
a explicação da sua derrota. Dias
em que a estupidez
é uma vingança astuta,
enteada do ressentimento para consigo mesmo.
Dias em que compreendes
que é demasiado tarde
para esquivar do olho de um revólver
tanta amargura a sós.
 
 
 
nicolás arnedo marañon
(espanha, 1950-1991)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 




 

05 fevereiro 2021

fernando luís sampaio / cinco portas fechadas

 



 
1.
 
Desceu as pálpebras
Como quem sacode
Uma toalha –
Não havia vinho na mesa
E pão a servir de faqueiro.
 
 
2.
 
O teu nome aparelha
A paisagem percorrida,
Deixa entrelaçada a respiração
E mãos e boca
Desacompanham-se
Quando te vejo às compras
No mercado.
 
E não sabes que no saco
Dos legumes e fruta levas
A luz já extinta
Da minha juventude.
 
Nenhum caminho é
Para depois.
 
 
3.
 
O mundo falha em mim
Porque a noite
É maior do que a língua
Em que falas –
 
Nela misturas escórias
E o laço artilheiro
Que nos serve de fantasia.
 
 
4.
 
A casa como resto da rua – vazia.
No sentido inverso de tudo
Digo o que vai a par
De coisas imaginadas,
E se calha falar da fresca
porcelana é para reter
A luz das mãos do oleiro.
 
 
5.
 
O coração é um detrito da língua.
 
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/10
colectivo de poesia
janeiro/abril 2021




04 fevereiro 2021

miguel-manso / estoril, hotel do parque

 
(com a voz de Alexander Alekhine)
 
 
o mar vem pôr seus dedos
escuma de café
sobre a rocha e o cimento
enquanto um peixe
trépido nada por dentro de um copo
 
ouvem-se passos no corredor
uma colher sobre a toalha
reflecte um incêndio de consumadas
luminâncias
 
roda a toda a lentidão a maçaneta
e a lembrança desse abeto coberto de neve
tantos quilómetros ao fundo
amenizou o corado enxovalho deste
hesitar com o rei encurralado
 
Morte, é a tua vez de jogar
 
 
 
miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018

 




03 fevereiro 2021

paulo da costa domingos / cais das colunas

 
 
Fui ali sentir uma aragem no rosto e
pedir a mim mesmo somente um pouco
de sossego, mas eu era um peão
do poema a rugir de encontro
à muralha dos ministérios.
 
E as mulheres que ali vinham
lutavam… íó como lutavam elas!
por sapatos de salto e lingerie
para melhor saltarem no vazio
dos mistérios ocultos no rio.
 
(E não sendo assim, é cinza
que se acumula nas pestanas
de gente de barbatanas munida
para a travessia do denso
negrume das avenidas.)
 
Os meus olhos choraram sal
sobre a nefasta semente desse
trabalho assalariado, cansado,
com o rosto de encontro à pedra
como um miúdo no quarto escuro.
 
 
 
paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017