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03 dezembro 2025

arthur rimbaud / um sonho para o inverno

  
 
                                                          Para ***Ela.
 


Este Inverno partiremos num pequeno vagão rosa
          Com almofadas azuis.
Que acolhedor. Espera-nos um ninho de beijos loucos
          Em cada recanto macio.
 
Fecharás os olhos para não veres pela janela
          As carrancas das sombras da noite,
Essas monstruosidades enraivecidas, chusma
          De demónios negros e de lobos negros.
 
Depois, sentirás a bochecha arranhada…
Um beijo ao d eleve, como uma aranha tonta,
          Descer-te-á pelo pescoço…
 
Então dir-me-ás: «Procura!», inclinando a cabeça:
–  E levaremos muito tempo à procura do insecto
       - Que tanto viaja…
 
 
Na carruagem, 7 de Outubro de 70

 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018




 

20 março 2024

jean-arthur rimbaud / frases

 



 
 
Quando o mundo estiver reduzido a um só bosque negro para os nossos quatro olhos espantados – a uma praia para duas crianças fiéis – a uma casa musical para a nossa clara simpatia – encontrar-vos-ei.
 
Quando só haja aqui um velho solitário, belo e calmo, rodeado de um «luxo inaudito» - a vossos pés estarei.
 
Quando eu assumir a vossa ânsia toda – seja eu aquela que vos estrangula – e estrangular-vos-ei.
 
 
 
jean-arthur rimbaud
iluminações / uma cerveja no inferno
trad. de mário cesariny
estúdios cor
1972
 



01 setembro 2023

arthur rimbaud / uma temporada no inferno



 
«Outrora, se bem me lembro, a minha vida era um festim em que todos os corações se abriam, em que corriam todos os vinhos.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E achei-a amarga. – E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, é a vós que foi confiado o meu tesouro!
Alcancei que se desvanecesse do meu espírito toda a esperança humana. Sobre toda a alegria para estrangular lancei o salto surdo do animal feroz.
Convoquei os carrascos para lhes morder, perecendo, a coronha dos fuzis. Convoquei os flagelos, para me sufocar com a areia, o sangue. A desgraça foi o meu deus. Deitei-me ao comprido na lama. Sequei ao ar do crime. E preguei boas partidas à loucura.
E a Primavera trouxe-me o horrível riso do idiota.
Ora, bem recentemente, vendo-me prestes a soltar o último pio, ocorreu-me procurar a chave do antigo festim, que me devolveria talvez o apetite.
Esta chave é a caridade. – Esta inspiração prova que sonhei!
«Hiena hás-de ser sempre, etc…», proclama o demónio que me coroou de tão amáveis papoulas. «Arriba à morte com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais.»
Ah! Disso já fiz bem mais do que a conta: - Mas, conjuro-vos, meu caro Satã, uma pupila menos irritada! E enquanto aguardais umas tantas ou quantas pequenas cobardias em atraso, aqui tendes, vós que apreciais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, algumas horríveis folhas do meu caderno danado.
 
 
 
jean-arthur rimbaud
une saison en enfer
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018
 
 


19 junho 2021

arthur rimbaud / sensação

 
 
 
Pelas tardes azuis de Estio, irei pelos trilhos,
Picado pelas espigas, calcar a erva miúda:
Sonhador, sentirei o frescor que os pés pisam.
Virá banhar o vento a minha fronte nua.
 
Irei sem dizer nada, sem pensar em nada:
Mas o amor infinito subirá no meu ser,
– Boémio, pela Natureza, de bem longa jornada,
Feliz, como se fosse comigo uma mulher.
 
Março de 1870
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






 

24 fevereiro 2021

arthur rimbaud / a minha boémia

 (Devaneio)
 
 
Assim ia eu, com os punhos nos bolsos rotos;
E o meu casaco que também se tornara ideal;
A cabeça descoberta, Musa!, e a ti sempre fiel;
Ah! Com que esplêndidos amores não sonhei!
 
As minhas únicas calças tinham um enorme buraco.
– Polegarzinho sonhador, pelos caminhos desfiava
As minhas rimas. O meu albergue era a Ursa Maior.
– As minhas estrelas faziam no céu um suave frufru.
 
Ficava a ouvi-las, sentado à beira dos caminhos,
Nessas belas noites de Setembro em que sentia no rosto
Como um vinho retemperante, as gotas do orvalho;
 
Quando, rimando no meio das sombras fantásticas,
Como as cordas de uma lira, puxava os atacadores
Dos meus sapatos feridos, um pé junto do coração!
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018





 

05 dezembro 2019

arthur rimbaud / digo que é preciso ser-se vidente



carta para Paul Demeny, Charleville, 15 de Maio de 1871
(excerto)


[…]

          Digo que é preciso ser-se vidente, tornar-se vidente.
          O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura-se a si mesmo, ele esgota em si todos os venenos para ficar apenas com as quintessências. Inefável tortura para a qual ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual ele se torna entre todos o grande demente, o grande criminoso, o grande maldito – e o Sábio supremo! – Porque ele alcançou o desconhecido! Porque ele cultivou a sua alma, já de si rica, mais do que ninguém! Ele alcança o desconhecido, e quando, aterrorizado, acabar por perder a inteligência das suas visões, ele tê-las-á visto! Que ele rebente no seu salto pelas coisas inauditas e infindáveis: outros horríveis trabalhadores virão; e começarão pelos horizontes nos quais o outro vergou!

[…]


jean-arthur rimbaud
cartas e documentos
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






25 março 2015

arthur rimbaud / meditações




Beijei a madrugada. Era Verão.
Diante do palácio, nada estremecia. A água estava parada. Os maciços de sombra não deixavam os caminhos dos bosques. Caminhei, acordando os hálitos tépidos e vivos; as pedras preciosas olharam, como asas levantaram-se no maior dos silêncios.



arthur rimbaud
meditações
tradução de madalena silva
alma azul
2009




11 julho 2014

jean-arthur rimbaud / meditações



Eu sou o peão da estrada larga através
dos bosques; abafa-me os passos o rumor
das comportas.

Durante muito tempo, permanece no meu
olhar a melancólica limpeza do oiro do
poente.


jean-arthur rimbaud
meditações
alma azul
2007




26 maio 2014

jean-arthur rimbaud / frases



Lancei cordas de campanário a campanário; guirlandas de janela a janela; cadeias de ouro de estrela a estrela, e danço.



jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



09 junho 2012

jean-arthur rimbaud / depois do dilúvio III






No bosque há uma ave, o seu canto
detém-vos e faz-vos corar.

Há um relógio que não toca.

Há uma lixeira com um ninho de
bichos brancos.

Há uma catedral que desce e um lago
que sobe.

Há um carrinho abandonado nas moitas,
ou descendo a vereda em correria,
engalanado.

Há uma troupe de pequenos cómicos
com os seus fatos, visíveis sobre a estrada
através da orla do bosque.

Há, enfim, quando tens fome e sede,
alguém que te enxota.




jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



14 março 2012

jean-arthur rimbaud / bárbara






Muito depois dos dias e das estações,
dos seres e dos países.

O estandarte de carne sangrando sobre
a seda dos mares e das flores árcticas
(que não existem).

Liberto das velhas fanfarras de he-
roísmo ─  que ainda nos assaltam o co-
ração e a mente ─  longe dos antigos
assassinos ─

Oh! O estandarte de carne sangrando
sobre a seda dos mares e das flores
árcticas (que não existem).

Os braseiros, chovendo em bátegas de
gelo ─  Doçuras! ─  os revérberos da chuva
de diamantes vindos do coração terres-
tre para nós eternamente carbonizado.
─  Ó mundo! ─

(longe das antigas retiradas e dos
velhos incêndios que ainda sentimos,
ainda ouvimos),

Braseiros e espumas. E música, revirar
de abismos e impacto de flocos de neve
nos astros.

Ó Doçuras, ó mundo, ó música! For-
Mas, suores, cabelos e olhos, flutuando.
E as lágrimas brancas, ferventes ─  ó do-
çuras! ─ e a voz feminina chegando ao
fundo dos vulcões e das grutas árcticas.


O estandarte…



   


jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



  

21 julho 2009

jean-arthur rimbaud / depois do dilúvio








Mal se aquietou a ideia de Dilúvio,

Uma lebre parou entre os sanfenos e
nas ondulantes campânulas e fez a sua
prece ao arco-íris através da teia da
aranha.

Oh! as pedras preciosas que se escon-
diam — as flores que já olhavam.

Na grande rua suja reapareceram as
tendas, e as barcas foram atiradas ao mar,
que era em degraus, e em cima, como
nas gravuras.

Correu o sangue, nas terras de Barba-
-Azul. Nos matadouros, nos circos, onde
o selo de Deus enlividecia as janelas.
O sangue e o leite correram.

Os castores construíram. Os mazagrãs
fumegaram nos estaminés.

Na grande casa vidrada ainda rumo-
rejante as crianças de luto olharam as
maravilhosas imagens.

Uma porta bateu — e no centro do
povoado o menino girou os braços arre-
batando os cata-ventos e os galos de todos
os campanários, sob o cintilante agua-
ceiro.

A Senhora *** instituiu um piano nos
Alpes. A missa e as primeiras comunhões
foram confiadas aos cem mil altares
da catedral.

As caravanas partiram. E o Esplêndido
Hotel foi construído sobre o caos de gelos
e de noite dos pólos.

Desde então, a Lua ouviu o uivo dos
chacais nos desertos de timo — e as églo-
gas sabias grunhindo ao vergel. Depois,
na mata violeta, sussurrante, Eucaris
disse-me que era primavera.

Irrompe, charco — Espuma, rola sobre
a ponte e por cima das árvores. Velos
negros e órgãos; raios e trovão — vinde
e rolai! — Águas e tristezas, crescei e
restabelecei os Dilúvios.

Pois, desde que eles se foram — oh as
pedras preciosas aluindo, e as flores aber-
tas! — é o tédio! e a Rainha, a Feiticeira
que acende o seu lume na frágua de barro,
nunca quererá contar-nos o que sabe e
nós ignoramos.








jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972







22 setembro 2008

jean-arthur rimbaud / vidas








I

Oh as avenidas imensas da Terra
Santa, os terraços do templo! Que fizeram
do brâmane que me explicava os Provér-
bios? De então, de aí, até as velhas vejo
ainda! Recordo as horas de prata e de
sol em direcção aos rios, a mão da terra
em cima do meu ombro e as nossas carí-
cias trocadas de pé na planície odo-
rante. — Uma revoada de pombos escar-
lates estala em torno do meu pensamento.
— Aqui exilado, tive um palco para repre-
sentar as obras-primas dramáticas de to-
das as literaturas. Ter-vos-ia mostrado
riqueza inaudita. Observo a história dos
vossos tesouros. Vejo a continuação! Para
vós, a minha sabedoria é tão desprezível
como o caos. Que é o meu nada, com-
parado ao horror que vos espera?



II

Sou um inventor muito mais meritório
do que qualquer dos meus predecessores;
um músico que descobriu algo como a
clave do amor. Agora, gentil-homem de
província pobre e céu austero, procuro
enternecer-me com a recordação da infân-
cia mendiga, a aprendizagem ou o regresso
em farrapos, as querelas, as cinco ou as
seis vezes em que fiquei viúvo, e as algu-
mas bodas em que a minha testa de ferro
me não deixou seguir o diapasão dos
camaradas. Não choro o meu velho qui-
nhão de alegria divina: o ar austero desta
terra pouca alimenta muito activamente
o meu atroz cepticismo. Mas como o meu
cepticismo deixou de ser manobrável e
me votei a uma ânsia nova fico à espera
de ser um louco muito perigoso.



III

Num esconso onde me fecharam aos
doze anos conheci o mundo, ilustrei a
comédia humana. Num celeiro aprendi
história. Em qualquer festa nocturna
duma cidade do Norte, encontrei todas
as mulheres dos antigos pintores. Numa
velha arcada de Paris ensinaram-me as
ciências clássicas. Numa incursão magní-
fica, assistido por todo o Oriente, com-
pletei minha obra imensa e fiz a minha
insigne retirada. Fermentei o meu sangue.
Fui-me restituído. Há que deixar de, se-
quer, pensar nisso. Sou realmente de
além-túmulo, e nada de comissões.











jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno

trad. mário cesariny
estúdios cor
1972







29 junho 2008

manhã





Abracei a aurora de verão.


Ainda nada movia a entrada dos palácios. A água estava morta. As sombras não deixavam a estrada do bosque. Caminhei, acordando os hálitos vivos e tépidos, e as pedrarias olharam, e as asas ergueram-se sem ruído.

A primeira aventura foi, no caminho já pleno de frescos e lívidos clarões, uma flor que me disse o seu nome.

Ri-me para a wasserfall loura que se encaracolou através dos abetos: no cimo prateado estava a deusa.

Então, um a um, tirei-lhe os véus. Na alameda, agitando os braços. Através da planície, onde a denunciei ao galo. Ela fugia para a grande cidade, entre as torres e as cúpulas; correndo como um mendigo sobre os cais de mármore, persegui-a.

No alto da estrada, junto a um bosque de loureiros, cobri-a com os véus desordenadamente recuperados, e senti um pouco seu imenso corpo. A manhã e o menino tombaram na orla do bosque.


Ao acordar era meio-dia.









jean-arthur rimbaud
iluminações / uma cerveja no inferno
trad. de mário cesariny
estúdios cor
1972




06 janeiro 2007

jean-arthur rimbaud


frases


lancei cordas de campanário a campanário; grinaldas de janela a janela; cadeias de ouro de estrela a estrela, e danço.







jean-arthur rimbaud
“iluminações / uma cerveja no inferno”
trad. de mário cesariny
estúdios cor
1972

31 outubro 2004

book zapping #003 henry miller


O Tempo dos Assassinos
Um estudo sobre Rimbaud



“Diz-se que Rimbaud, no tempo em que escrevia o seu “livro negro” (Une Saison en Enfer), terá afirmado: “O meu destino depende deste livro!” Nem o próprio Rimbaud sabia como era profundamente verdadeira essa afirmação. À medida que começamos a compreender o nosso próprio destino trágico, começamos também a perceber o que ele queria dizer. Tinha identificado o seu destino com o da época mais crucial de que o homem tinha conhecimento. Das duas uma, ou, como Rimbaud, renunciamos a tudo aquilo que a nossa civilização tem representado até aos nossos dias, e procuramos construir desde o princípio, ou destruímo-la com as nossas próprias mãos. Quando o poeta está no nadir, então não há dúvida de que o mundo está de pernas para o ar. Se o poeta já não pode falar em nome da sociedade, mas apenas em seu próprio nome, então é porque estamos encurralados na última trincheira. Sobre o cadáver poético de Rimbaud, começámos a levantar uma torre de Babel. Nada significa o facto de ainda haver poetas e de alguns deles ainda serem inteligíveis, capazes de comunicar com a multidão. Qual é o rumo da poesia e onde reside o elo entre o poeta e a sua audiência? Qual é a mensagem? Esta é a pergunta mais importante. Qual é a voz que hoje em dia se faz ouvir, a do poeta ou a do cientista? Andamos a pensar na Beleza, por amarga que seja, ou anda mos a pensar na energia atómica? E qual é a principal emoção que as nossas grandes descobertas inspiram? Pavor! Temos saber e não temos sabedoria, temos conforto e não temos segurança, acreditamos mas não temos fé. A poesia da vida expressa-se apenas em termos matemáticos, físicos, químicos. O poeta é um pária, uma anomalia. Caminha para a extinção. Quem é que hoje se preocupa com o facto de o poeta se tornar a si próprio monstruoso? O monstro anda à solta. Passeia-se pelo mundo. Fugiu do laboratório e está ao serviço de seja quem for que tenha coragem suficiente para lhe dar emprego. Na verdade, o mundo tornou-se número. A dicotomia moral, como todas as dicotomias, sofreu um colapso. Atravessamos uma era em que uma grande maré tudo arrasta ao acaso. Começou a grande deriva.
E os loucos falam de reparações, inquisições, retribuições, de alinhamentos e coligações, de comércio livre e de estabilidade e revitalização económicas. Nenhum deles acredita, no fundo, que a situação mundial possa ser regulada. Todos aguardam o grande acontecimento, o único acontecimento que nos preocupa dia e noite: a próxima guerra. Pusemos tudo em total desordem e ninguém sabe nem como nem onde procurar os meios de a controlar. Os travões ainda estão no sítio, mas será que funcionam? Sabemos que não. O demónio anda à solta. A era da electricidade já lá vai há tanto tempo como a Idade da Pedra. Esta é a Idade do Poder, do poder puro e simples. Agora a escolha é entre céu e inferno; já não é possível meio termo. E tudo indica que vamos escolher o inferno. Se o poeta vive o seu inferno, já não é possível ao homem comum escapar dele. Terei eu dito que Rimbaud era um renegado? Todos somos renegados. Desde o alvorecer dos tempos que andamos a renegar. Finalmente, o destino consegue andar a par connosco. Todos, homens, mulheres e crianças, identificados com esta civilização, vamos entrar na nossa Estação no Inferno. É isso que temos andado a pedir; cá está. Aden ainda nos há-de parecer um local confortável. No tempo de Rimbaud ainda era possível deixar Aden e partir para Harare, mas daqui por cinquenta anos o mundo há-de parecer uma vasta cratera. Apesar do que em contrário possam dizer os cientistas, o poder que o homem tem hoje nas mãos é radioactivo, é permanentemente destrutivo. E nunca pensámos no poder em. termos de bem; apenas em termos de mal. Nada existe de misterioso no que toca à energia do átomo; o mistério reside no coração dos homens. A descoberta da energia atómica ocorre em sincronia com a descoberta de que nunca mais podemos confiar uns nos outros. Aqui, neste medo capaz de se multiplicar como as cabeças da Hidra, medo que nenhuma bomba consegue destruir, aqui é que reside a nossa fatalidade. O verdadeiro renegado é o homem que perdeu a fé no seu semelhante. E a perda da fé, hoje, é universal. Aqui, neste ponto, o próprio Deus é impotente. A nossa fé transpôs-se para a bomba e será a bomba a responder às nossas orações.”



O Tempo dos Assassinos
Henry Miller
Hiena Editora, 1983
Colecção Cão Vagabundo 8