«Outrora, se bem me lembro, a minha vida era um
festim em que todos os corações se abriam, em que corriam todos os vinhos.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E
achei-a amarga. – E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, é a vós que
foi confiado o meu tesouro!
Alcancei que se desvanecesse do meu espírito toda a
esperança humana. Sobre toda a alegria para estrangular lancei o salto surdo do
animal feroz.
Convoquei os carrascos para lhes morder, perecendo,
a coronha dos fuzis. Convoquei os flagelos, para me sufocar com a areia, o
sangue. A desgraça foi o meu deus. Deitei-me ao comprido na lama. Sequei ao ar
do crime. E preguei boas partidas à loucura.
E a Primavera trouxe-me o horrível riso do idiota.
Ora, bem recentemente, vendo-me prestes a soltar o
último pio, ocorreu-me procurar a chave do antigo festim, que me devolveria
talvez o apetite.
Esta chave é a caridade. – Esta inspiração prova
que sonhei!
«Hiena hás-de ser sempre, etc…», proclama o demónio
que me coroou de tão amáveis papoulas. «Arriba à morte com todos os teus
apetites, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais.»
Ah! Disso já fiz bem mais do que a conta: - Mas,
conjuro-vos, meu caro Satã, uma pupila menos irritada! E enquanto aguardais
umas tantas ou quantas pequenas cobardias em atraso, aqui tendes, vós que
apreciais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas,
algumas horríveis folhas do meu caderno danado.
jean-arthur rimbaud
une saison en enfer
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018
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