29 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno




automatic winter

quem se importa se não vens pela estrada, ou se o teu nome é muito longe como a sombra? hoje abri as mãos enquanto o sul me fugia em pássaros sob a lua. há árvores tão lentas neste Inverno e passos mudos, água nos caminhos do espelho.

tu não estás, não estás lentamente, nem sobre os telhados, nem mais longe como o forte querer que a neve caia e tudo apague como se apagava o mundo quando docemente um beijo nos explodia no meio da solidão.



gil t sousa

18 janeiro 2005

book zapping #004 henri michaux


(...)

Mais tarde, procurados em todos os pon-
tos do Império do Meio, os caracteres de
outrora, cuidadosamente reunidos, recopia-
dos, foram interpretados pelos letrados.
Surgia um inventário, um dicionário dos si-
nais de origem.

Recuperados!
e recuperava-se ao mesmo tempo a emoção
das calmas e serenas e ternas primeiras cali-
grafias.

Os caracteres ressuscitados na sua inten-
ção primeira reviviam.


A essa luz qualquer página escrita, qual-
quer superfície coberta de caracteres, torna-
-se fervilhante e transbordante... cheia de
coisas, de vidas, de tudo o que há no mun-
do... no mundo da China


cheia de luas, cheia de corações, cheia de
portas
cheia de homens que se inclinam
que se retiram, que se querem mal, que fazem
a paz
cheia de obstáculos
cheia de mãos direitas, de mãos esquerdas
de mãos que se apertam, que se respondem,
que se ligam para sempre
cheia de mãos frente a frente,
de mãos na defensiva, de mãos ocupadas
cheia de manhãs
cheia de portas
cheia de água caindo gota a gota das nuvens
cheia de barcas que atravessam de uma mar-
gem à outra
cheia de aterros
cheia de forjas
e d’arcos e de fugitivos
e cheia de calamidades
e cheia de ladrões levando debaixo do braço
os objectos roubados
e cheia de cobiças
e cheia de nuvens
e cheia também de palavras sinceras
e cheia de reuniões
e cheia de crianças que nascem penteadas
e cheia de buracos na terra
e de umbigos no corpo
e cheia de crâneos
e cheia de fossas
e cheia de aves migratórias,
e cheia de recém-nascidos — quantos re-
cém-nascidos! —
e cheia de metais nas profundezas do solo
e cheia de terras virgens
e de vapores que sobem dos prados e dos
pântanos
e cheia de dragões
cheia de demónios que vagueiam pelos
campos
e cheia de tudo o que existe no universo
tal qual ou disposto de outra maneira
escolhido de propósito pelo inventor de si-
nais para estar junto
cenas para fazer pensar
cenas de toda a espécie
cenas para oferecer um sentido, para ofere-
cer vários,
para propô-los ao espírito
para deixá-los emanar
grupos para resultar em ideias
ou para se resolver em poesia.



Ideogramas na China
Henri Michaux
Trad. Ernesto Sampaio
Cotovia / Fundação Oriente
1999

12 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno



Amontoamo-nos de frio


Amontoamo-nos de frio.
O frio das casas, o frio das camas vazias
das mãos, o frio das vozes ausentes.
O frio que nos toma nas margens inacessíveis
de nós próprios, o frio que vem cuspir-nos
apedrejar-nos, o frio da morte.
O frio do corpo que não encontra
o lugar na casa, o frio inabitável
de algumas palavras.
O frio de que não saberei salvar-nos.



diogo m. silva

11 janeiro 2005

citações



“Acontece na vida de toda a gente. De repente, a porta que se fechou entreabre-se, a grade que se acabou de descer volta a erguer-se, o não definitivo já não é senão um talvez, o mundo transfigura-se, um sangue novo corre-nos nas veias. É a esperança. Pena suspensa. O veredicto de um juiz, de um médico, de um cônsul fica adiado. Uma voz anuncia-nos que nem tudo está perdido. Trémulos, com lágrimas de gratidão nos olhos, passamos para o aposento seguinte, onde nos pedem para esperarmos, antes de nos lançarem no abismo.”
Nina Berberova, Terra de Ninguém

10 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno


Brueghel, provérbios populares flamengos



Lua em escorpião


É Natal e tenho os pés frios,
não genialmente frios como Pessoa,
apenas uns vulgares pés frios.
*
*
Nesta época há uma vontade especial
de desfigurar a cidade...
*
*
Belém seria um imenso tabuleiro de xadrez
só com peças pretas
exceptuando dois cavalos,
seriam de mármore dando um certo ar
de castelo medieval ao Mosteiro,
que acolheria a escola dos domadores de luas.
*
*
Ao Tejo decretava pena máxima:
uma planície de nevoeiro futurista
daquele com arco-íris por baixo
e inúmeras pontes para o pote de ouro,
todo sonorizado com jazz low-profile
para as árvores e plantas consumirem alegremente.
(principalmente as plantas)
*
*
No meio a consciência colectiva,
no meio, a grande alma decepada de vida,
no meio, os olhos e as bocas secas,
no meio, a fonte de fumo sem fogo,
no meio, a guitarra de doze cordas,
o coração do poeta aberto como uma melancia,
no meio, entre paredes fortificadas,
no meio era a cidade
os sexos virgens, a fome
e a cegueira.
No meio era a cidade
entre paredes fortificadas.
*
*
Com o dedo passava as tardes a descrever vertigens
e breves desenhos
num imóvel espelho de água.
Eu e aquela coisa que surgiu
éramos só um espaço dentro do poema
onde dois sorrisos fugiam em cumplicidade, do rosto.
E no entanto, um espaço tornou-se tudo...
Bastou para descrever-lhe os seios,
cozer-lhe uns olhos de mel e
um sorriso mariposa vermelho,
plantar-lhe sementes de cio e
de tempestade no sexo de areia,
remendar-lhe as lágrimas.
*
*
“Your time has come”
*
*
No limiar do milénio irá lembrar-se...
Como eu lembro, o nosso amor, um amplexo no cérebro
sob a forma de explosões de uma guerra
perdida no tempo, masoquista.
*
*
Ontem implorei a devolução da paisagem,
das barreiras
das grandes bebedeiras de verde,
e enviei-te para debaixo do nevoeiro
encaminhada para o teu tesouro.
*
*
O espelho de água solidificou, é verdade...
Mas agora quero saltar as paredes do meio
e tomar chá com a rainha,
montar os cavalos de mármore
e ensinar aos artistas o ofício dos sonhos,
fixar a lua em escorpião
e provar o seu veneno contigo.
*
Boneca de trapos
*
vou fazer-te uma confidência:
o Tejo é infiel... fui eu que o criei...



Tiago Alexandre Belejo Correia

09 janeiro 2005

um poema de: Sharon Olds



Teoria dos tremores


Quando dois estratos terrestres se esfregam um no outro
como uma mãe e uma filha
chama-se uma falha.

Há falhas que deslizam suaves uma pela outra
uma polegada por ano, tão-só de raspão
como um homem que passa a mão pelo queixo,
esse homem entre nós,

e há falhas que embicam numa curva durante vinte anos.
A crista dilata-se como a testa sarcástica de um pai
e tudo estaca no mesmo sítio, o homem entre nós.

Quando isso acontecer, haverá graves danos
nas zonas industriais e estâncias de veraneio
quando os fundos estratos
finalmente desencalharem
da terrível pressão do contacto.

A terra estala
e os inocentes submergem gentilmente nela como nadadores.



Sharon Olds
“Satanás Diz”
Trad, Margarida Vale de Gato
Antígona, Lisboa 2004

06 janeiro 2005

um poema de: Josep Maria Llompart


Sou cidadão de um dócil território


Sou cidadão de um dócil território,
obtuso habitante de fulminante aldeia;
vivem em mim inominadas mortes, confusão
de estandartes sombrios, fantasmas de lura.

Irado e louco, pregador enganado,
escrevo o nome ardente com marfim e piche:
tabuleiro de xadrez onde tomam posse
ânsias, afãs, com férreo clamor.

Sou verme condenado, humilhado, atrás
de vaga ardente em mar de limo e lama,
grito na noite, espera desesperada,

e sigo adiante, para além do negro e branco,
alma adentro, arvorando a bandeira:
sobre amarelas dedadas de sangue áspero.



Josep Maria Llompart
“Quinze poetas catalães”
Ed. Limiar, Porto, 1994.

Trad. Egito Gonçalves

05 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno

Momento de Inverno

Acordei na manhã escura
O dia não amanheceu...
Vou andar hoje na manhã dura,
Com sujo de negro o céu? Não.
Vou tentar deitar e dormir
Fingir que é noite sem olhar
Vou paralisar as horas e não sair,
Até este dia clarear.
Será que o Sol se mudou?
Trocou o lugar com a lua?
Olhei da janela a manhã escura,
Está um dia tão triste cinzento,
Está um dia de cinza pura.
Afinal é de Inverno este momento...


Artur Rebelo

02 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno

frequente inverno mensurável


uma mulher equivocada media a palmo o inverno. meses sobre meses redondos lhe surgiam como o burburinho lúcido da viagem. fazia aqueles estalidos frágeis como se lhe coubesse no dedo a rotação do planeta devastado o ruído da morte da ausência. empilhava as mãos alternadamente em tom de súbita precipitação e depois sorria. sorria como se estivesse a sentir-nos alheios distantes cheios dela preenchidos até à raiz do cabelo quando ele caía. e agora a vida corria a todo o gás a saraiva atingia a máxima velocidade a mulher escondida num manto branco e o baton escarlate na seiva dos homens do inverno ao largo diluia-se. e a sinfonia da sua metamorfose do estalido dos seus dedos da morte equivocada regurgitava. as margens as correntes cavalgavam a ciranda até perder de vista a vista até perder o norte ao sul. este lugar de névoa o aparecimento do pequeno raio a têmpora a salgar durante a viagem petrificara as águas o odor limítrofe do frio as frieiras as gretas das mãos que a palmo encontravam o inverno. a marca deste inverno deste imenso manto desesperava nos reflexos breves das janelas inclusas. a reclusão desta mulher permitia-lhe dedilhar o medo lembrar profundamente a raiz do infinito. há um mistério de pureza na crença deste equívoco jaz inerte o almiscarado do inverno por esses dedos. apetece-me uma laranja de inverno um tomo dedilhado por uma mulher equivocada. apetece-lhe o inverno e a mim intuído o tempo renascida a manhã o inverno todo.



nuno travanca