31 agosto 2022

joão pedro grabato dias / quero explicar-lhes

 



 
Quero explicar-lhes, Venho a explicar-lhes
a técnica minuciosa de não chorar certas lágrimas
o código das mil pequeninas astúcias serenas
os concretos maneirismos viúvos que resultam nesta
petrificada imobilidade, nesta insónia alheada
de fazer medo aos amigos, a decompor-lhes os mil modos
correctos de hibernar em estátua passante,
desmontar-lhes, preciso, o sangrento teor das rodas
dentadas no indizível terror de aqui estar
de não ver o fim, de temer qualquer fim que seja
dar-vos o controlo total pleno do pânico
mergulhar convosco, amigos, inimigos, ó queridos indiferentes
na engrenagem particularmente ambígua da mágoa
no furor coalhado, represado, nos humores vítreos
deste mecanismo de névoa doce e parada
neste extensíssimo vale de ecos contraditórios
neste punho fechado sobre o grito inevitável
nesta preciosa pérola irisada de nunca mais nunca mais
neste gérmen pequeníssimo, neste átomo, neste
nada de nenhures, nesta ausência de tantos futuros possíveis.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
o morto, ode didátctica 1971
tinta da china
2021



 

 


30 agosto 2022

marin sorescu / à ícaro

 
 
Fui pedir esmola às aves
E cada uma deu-me
Uma pena.
 
Uma era alta, a da águia,
Vermelha, a da ave do paraíso,
Verde, a do colibri,
Palradora, a do papagaio,
Medrosa, a da avestruz –
Ah, que asas fiz para mim!
 
Meti-as na minha alma
E comecei a voar.
Voo alto de águia,
Voo vermelho de ave do paraíso,
Voo verde de colibri,
Voo falador de papagaio,
Voo medroso de avestruz –
Ah, como eu voei!
 
 
marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997
 



29 agosto 2022

marianne moore / a um caracol

 
 
Se “a compressão é a graça primordial do estilo”,
esse dom te assiste. Ser contrátil é, tal como
a modéstia, uma virtude.
Não é a aquisição de uma coisa qualquer
para fins decorativos,
ou a qualidade incidental que, circunstancialmente,
advém de algo bem dito,
o que apreciamos no estilo,
mas o princípio oculto:
na ausência de metro, “um método de conclusões”,
“um conhecimento dos princípios”
no curioso fenómeno do teu corno occipital.
 
 
 
marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018



28 agosto 2022

t. s. eliot / east coker

 
 
I
 
No meu começo está o meu fim. Uma após outra
As casas erguem-se e caem, desmoronam, são aumentadas,
São mudadas, destruídas, restauradas, ou onde estavam
Fica um descampado ou uma fábrica ou um desvio.
De pedra velha a edifício novo, de lenha velha a fogos novos,
De fogos velhos a cinzas e de cinzas à terra
Que é já carne, pele e fezes,
Osso de homem e bicho, haste de trigo e folha.
As casas vivem e morrem: há um tempo para edificar
E um tempo para viver e procriar
E um tempo para o vento quebrar a vidraça solta
E abanar o lambril onde se apressa o rato do campo
E abanar o arrás em farrapos lavrado com uma divisa silenciosa,
 
No meu começo está o meu fim. Agora cai a luz
Ao longo do descampado e deixa a funda vereda
Encoberta por ramos, escura na tarde,
Onde te encostas a um talude enquanto passa uma carroça,
E a funda vereda insiste no rumo
Da povoação, no calor eléctrico
Hipnotizada. Numa névoa quente a luz sufocante
É absorvida, não refractada, por pedra cinzenta.
As dálias dormem no silêncio vazio.
Espera pela primeira coruja.
 
                                         Neste descampado
Se não te chegares muito, se não te chegares muito,
A meio de uma noite de Verão, podes ouvir a música
Da débil flauta e do pequeno tambor
E vê-los bailar em redor da fogueira
A associação de homem e mulher
Na dança, a significar matrimónio –
Um honroso e conveniente sacramento.
Dois a dois, conjunção necessária
Um e outro de mão dada ou braço dado,
O que é sinal de concórdia. À roda, à roda do fogo,
Ora saltam as labareda ora se juntam círculos,
Rusticamente solenes ou em gargalhada rústica
Erguem os pés pesados dentro de sapatos toscos,
Pés de terra, pés de argila, erguidos em alegria rural
Alegria daqueles há muito debaixo da terra,
Alimento do trigo. A marcar o tempo,
A marcar o ritmo na sua dança
Como nas suas vidas nas estações vivas
O tempo das estações e das constelações
O tempo da ordenha e o tempo da colheita
O tempo do acasalamento de homem e mulher
E o dos bichos. Pés que se erguem e baixam.
Comida e bebida. Esterco e morte.
 
A madrugada desponta e mais um dia
Se prepara para o calor e o silêncio. No mar o vento da
     madrugada
Encrespa-se e desliza. Eu estou aqui
Ou ali, ou algures. No meu começo.
 
 
 
t. s. eliot
quatro quartetos
trad. gualter cunha
relógio d`água
2004



27 agosto 2022

philip larkin / erva segada

 
 
A erva segada e frágil:
É breve o sopro
Que os caules ceifados exalam.
Longa, longa a morte.
 
Que ele morre nas horas em branco
Do Junho de folhas tenras
Com flores de castanheiro,
As sebes como de neve espargidas,
 
Lírios brancos curvando-se,
Veredas rendilhadas a flores bravas,
E aquela nuvem acastelada
Movendo-se ao ritmo do Verão.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004




 

26 agosto 2022

rosa alice branco / amor cão

 


 

 

                                         À medida que o crepúsculo se aproxima
                                               o pavor da noite começou a pesar
                                               intensamente em todos os espíritos.
 
 


3
O que amam sem reservas é o dia, o dia límpido.
Visível como uma clareira no seio do medo.
O medo é a antecipação do crepúsculo, da paixão
sofrida até ao amanhecer como uma prece infindável
e que venha o dia.
Que se ele viesse as notas seriam como o vento
na urze e a urze da montanha era do mar
cheia de cores salinas e cheiro quente a terra
e ela vestida de branco como quem espera
o vestido esvoaçando para o espanto do primeiro olhar.
Ela ia querer que todos os olhares fossem assim
mas nada se sabe do dia, tão escuro ainda
que só a morte espreita para lá da fogueira onde o frio
é um cisco que se imiscui na paisagem do medo.
O chegar do dia é um noivado. Mesmo que um predador
mate de revés uns quantos, podem olhá-lo no rosto
antes da rapina, das aves que cegam o buraco da noite.
 
 
 
rosa alice branco
amor cão
e outras palavras que não adestram
assírio & alvim
2022




25 agosto 2022

rui nunes / podava a macieira

 
 
podava a macieira. Entre folhas, a tesoura
cortava o ar: e o ar caía, arrastando os troncos.
As horas mediam uma recordação imprecisa:
ao campo de neve o sangue coalhara e a manhã
prolongava a morte até à rigidez
de um gesto interrompido:
a mão só alcançara o branco
e no branco adquirira
o sarcasmo de um molde
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007




24 agosto 2022

víctor botas / falam da natureza

 
 
Falam da natureza, e que é bela
– dizem sem mais razões –; eu prefiro
falar de um caos, aziago e feroz,
sem ordem nem plano nem outra coisa
além deste cego acaso que nos acossa
a golpes de cachaço. Quero deixar
muito claro nesta página: não espero
do temporal em turbilhão que graciosa-
mente prodigue paz. Serão seus golpes
mais duros se, julgando estar muito bem,
só esperar lisonjas: dura nora
move o ritual do tempo, golpe a golpe.
Há, contudo, instantes, sinais, coisas
que misteriosamente, são belas.
 
 
 
víctor botas
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




23 agosto 2022

jorge de sousa braga / memória de luís vaz de camões

 
 
Na autoestrada do norte, de jeans coçadas e óculos escuros, uma longa trança sobre os ombros, rumo às florestas de abetos, a mochila cheia de coisas esquisitas, pássaros mortos, malmequeres de plástico.
 
Na autoestrada do norte, a camisa ainda molhada do naufrágio, a pequena empregada da boutique desaparecendo para sempre nas águas do Índico.
 
Na autoestrada do norte completamente pedrado.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991




22 agosto 2022

josé miguel silva / dois

 
 
Aos sete anos temos sorte, conhecemos a morte
no enterro do vizinho. Cresce o sentido
das responsabilidades. Assim se prepara
a primeira comunhão.
 
Temos agora que cuidar não apenas
dos cadernos e dos lápis mas também
da alma, essa remissa ostra
onde se aloja uma pequena culpa.
 
Torna-se mais longo o caminho para casa
(mas também, confessemos, mais estimulante).
Já não corremos tão depressa com a pesada pasta:
um tropeço qualquer, e lá vem a consciência.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003




21 agosto 2022

josé carlos barros / como trazer sementes

 
 
Como trazer sementes nos bolsos, olhar
da janela os pássaros nos freixos, adormecer
à tarde. Recordas o corredor quase
escuro, as tábuas da sala, o escano,
o comércio do porto dos desenhos do armário.
No verão, a meio do verão caiavas
a casa. Tantas vezes a memória te preparava ciladas,
escondias as fotografias antigas, deitavas-te
tão cedo. E acordavas cedo, a luz no peitoril,
no quadrado de cal da parede velha.
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018
 



20 agosto 2022

victor oliveira mateus / le grand silence

 
 
 
a cadência da tesoura
no pano cru
o gotejar da torneira
num lavatório zincado
 
o zunir do vento
através das frinchas
no bater do portal
no ramalhar das árvores
ao longe
 
tudo à tua volta insiste
fala
enquanto tu
desinteressado
te vais desprendendo
máscara após máscara
 
e
no outro lado das coisas
procuras
o que não deixa de sussurrar
no teu grande silêncio
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




19 agosto 2022

joão miguel fernandes jorge / e falamos assim

 
 
E falamos assim falamos
de outra voz de outro tempo
de outra folha
 
do traço parecido
e carregado
do Verão.
 
De longe olhámos o inverno.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




18 agosto 2022

diogo vaz pinto / dois anos já

 
 
Dois anos já que espero me arrefeça o café
frente a lentíssimas cenas de caça
a rotina dos astros sobre umas poucas vidas
o laranjal incendiado e toda essa dança corrosiva
um fio de pesca nas mãos para que esquecido peixe?
e a frase com ela no meio indo à fonte
encher-se até cima
trabalhada como por um sonho
 
por ser doloroso o seu nome
vi-o espalhado, séculos antes lia-se em cântaros
neste vi-o marcado nas árvores
ali estava como um vestido a florir na corda
e o sol cheio de vagar a compor os ossos debaixo
tigres atravessando o selvagem estampado
a frágil fúria colorida num suave impasse
enquanto eu amestrava todos os tiques a solidão
e a escrita como uma forma de modéstia
o sentido estrito das aventuras
os mais ínfimos relatos e de costas
a antiguidade abanando a cabeça
 
a vida mal nos toca no meio dos bocejadores
desluzida mão-de-obra em transe
com as insistentes dívidas aos gatos
pássaros, cinzas assim
cansados uniformes adormecidos nos telhados
aquele mar moribundo atrás da casa
para quem gosta de afogar-se escutando os remadores
toda essa água ajuda-os lá com as coisas deles
uma última intimidade com o mundo
uma cobardia, uma fábula
algum outro assunto
 
mas ainda há um caroço poisado
sobre o muro, sobre o pior dos cansaços
há quem sopre a poeira dos colibris de biblioteca
quem exume corpos entre o veneno das gavetas
quem atravesse a manhã peneirando a neblina
e com passos iguais outros
tiram as medidas ao inferno
 
então perdoa-me, velho, se te deixo
se me falta o pudor e antes prefiro
o carnívoro talento mais sem vergonha
sorrindo sujo da mão ao cotovelo
entre as mais baixas das partes, quentes
eu a inspiro, esteja fresca ou podre
carne com um cheiro a tangerinas ao fundo
da língua faço um teatro romano
entrego o pescoço, deixo rolar a cabeça
por um enredo escabroso, do céu às fossas
que sangre e chame a si os elementos
 
e se das maiores inanidades esperei muito
dobrado hoje sinto-o nas costas
como se uma estrela pudesse esculpir ombros brutais
a pupila dilatada de assombro à sua luz
atiro a pedra arfante
e cruzo a vida breve das paisagens
o som de um coração trepando um susto
até à morte, o frescor silencioso que está lá
no início de todas as histórias
 
 
 
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020



17 agosto 2022

rui diniz / solilóquio

 
 
«Devagar, italiano, devagar com essa barca,
estes canais devem ser vistos devagar, assim
disseram por toda a parte os que de
veneza se lembravam. O Doge recuou com
as suas tropas face a esta dura revolução.
Não, amigo, não está nos meus hábitos
ser sóbrio, seja no que for. Falo muito,
mais do que me aconselharam os que
de veneza se lembravam. Devagar, pois,
devagar sob esta ponte onde Desdémona
sofreu a crina fria dos seus desgostos,
e afogou esse focinho ardente e irrequieto
do puro sangue árabe. Nela, tudo confluía
num duro rio de loucura, um frio
rio no qual vogava já a pétala de
de um vestido. Isso, italiano, faz deslizar o
esguio corpo da gôndola sobre o cume
das águas, assim mesmo, nem profundas
nem temerosas, as águas, apenas para o
amor propícias quanto mortais, exactamente
assim, como mo disseram os que
por toda a parte de veneza se ausentavam.
Devagar, italiano, mais devagar, que por toda
a parte se acendem já as luzes de Veneza.»
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




16 agosto 2022

fernando pinto do amaral / regressando a casa

 
 
Ninguém quis festejar o dia dos meus anos.
Já estou habituado, é bem melhor
render-me ao sabor quente da penumbra
nesta sala onde cada objecto respira
como se aqui estivesses. As cortinas
continuam corridas e lá fora
julho é um mês vazio, sem destino
para quaisquer palavras – só me fica
um absurda inveja de ser como eles,
jogar os mesmos jogos, rir das mesmas coisas,
mas não há ciência que adiante nada.
 
Pois é, não há ciência capaz de entender
o som do piano que me desenhaste
ali, numa parede, em trompe-l´oeil,
mas não em trompe-l´âme, como tudo
ou quase tudo o que me intoxicou
nestes últimos dias. sofri
outros lugares, outras pessoas; pude
fingir que as almas se substituem
e, no entanto, por alguns momentos
esteve entre as minhas mãos o mundo! Apetecia-me
ter jogado com ele um jogo de bilhar,
enfiá-lo num buraco onde ninguém o visse
e deixá-lo em silêncio, assim como
deixámos esta casa e este bairro
tão degradado, cheio de minorias.
 
A minha minoria sou só eu,
agora que morreste ou ainda pior,
agora que ao meu lado as sombras recomeçam
a abraçar-me às escura, desenhando
na solidão do tecto animais ou plantas,
pequenos barcos pra me conduzirem
a mais um sonho, desses onde a vida
parece ficar presa até ao fim.
 
Ah, como odeio telefones! Só queria
enroscar-me a um canto e dormir,
esquecer-me de quem sou e acordar
no meio de um jardim ou mesmo de um
poema
que ao menos uma vez não falasse da morte.
 
 
 
fernando pinto do amaral
seis projecções e uma despedida
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




15 agosto 2022

fernando alves dos santos / à beira da estrada

 
 
Os dois à beira da estrada
junto ao poste dum destino de Hermes
seiva das novas sílabas
da palavra virtude.
São impossíveis as ruínas do amor
porque apertamos contra o corpo os lençóis
cumprindo o relógio do mar
enquanto um bando de gaivotas esvoaça
à beira da estrada inacabada
com o outono aos nossos pés.
Repousámos os nossos lábios no silêncio
e logo partimos,
as mãos na intimidade sobrevivente da luta,
húmidas as palavras
cheirando ao ninho azul do céu,
de punhos cerrados e brancos,
brancos como as flores junto ao poste
à beira da estrada.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





 

14 agosto 2022

joaquim manuel magalhães / dos meus versos

 
DOIS
 
Comprei-lhe requeijão durante vários dias.
No último enganou-se nos dinheiros
fez o embrulho num papel errado.
Ri-lhe o primeiro convite. Riu-se em trocos.
Continuei por entre os corredores
do resto do supermercado achando
a cada espaço vazio de caixotes
seu olhar a seguir as minhas compras.
Quando estava prestes a curvar-se
para pesar um frango, uma morcela,
coelhos bravos, queijos ou fiambre
sorria-lhe de novo. Erguia logo
o corpo alertado turvavam-se-lhe as mãos
hesitava pelo ar refrigerado do balcão
até estender os seus produtos
à primeira mulher e às que se seguiam.
Com a cesta de metal quase já cheia
deve ter visto o adeus dado nas coisas
de comer durante muito tempo
veio depois duma qualquer desculpa
fingir que levava fardos para dentro.
Fui atrás por alguns segundos
soube que eram horas de sair
vim esperar depois de tudo pago à porta.
Os carros iam de regresso às casas,
o ar toldado de novembro avermelhava-se
a um sol que vem antes da chuva,
nos autocarros iam por detrás dos vidros
rostos que doía ver passar.
Chegou metendo um pente à algibeira,
a sacola que fora matinal ao ombro,
atravessou comigo o quadrado
da praça quando o trânsito parou.
À última luz do dia via-lhe o cabelo
com o pó do dia de trabalho.
Por agora dizia-me o seu nome
entre dentes rasgados pelas cáries
mas sorrindo tanto sob a pele escura
que eu fechava os olhos para perdurar
até tirar-lhe a camisola, as meias
trocar o meu hálito de dentífricos
pelo seu cansado de erva doutras formas
dir contra os horários as coisas do dinheiro
os outros a dizer-lhe o que devia ser.
De mim havia de ir para uma paragem
à espera do bus de que sairia
num dos caixotes de arrabalde,
o corpo satisfeito mas fendido
do prazer combinado para outro dia
que podia voltar ou não voltar a haver.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
antónio palolo
a regra do jogo
1978




13 agosto 2022

fernando lemos / o meu peito é um tecto

 
 
O meu peito é um tecto
Quando os olhos se me fecham
pouso as mãos ao acaso do meu túmulo
Mapa dos meus sentidos
 
Do amor tenho tudo
a dor e o ódio
Há um sossego em saber-me
com uma morte guardada no bolso
 
Do passado fica-me um golpe
que não é mortal mas derrama
todo o seu sangue nos forros da roupa
Estou apertado
 
Estou apertado e suspenso
O meu peito é um tecto
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




12 agosto 2022

edith södergran / decisão

 
 
 
Sou uma pessoa muito madura,
mas ninguém me conhece.
Os meus amigos têm uma falsa imagem de mim.
Eu sopesei a docilidade nas minhas garras de águia
                                                           e conheço-a bem.
Oh, águia. Que doçura no voo das tuas asas!
Vais ficar em silêncio como tudo?
Queres talvez escrever? Mas não escreverás mais.
Cada poema será a perversão de um poema,
não poema, mas garras de águia.
 
 
      Framtidens skugga, 1920
 
 
 
edith södergran
o mundo adormecido espera impaciente
antologia de poesia finlandesa
trad. amadeu baptista
contracapa
2021




 
 

11 agosto 2022

charles simic / III

 
 
Sou o último soldado napoleónico. Quase duzentos anos passados, estou ainda em retirada de Moscovo. A estrada é ladeada por bétulas e a lama chega-me aos joelhos. A mulher com um só olho quer vender-me um frango e eu estou completamente nu.
Os alemães vão para um lado, eu para o outro. Os russos vão ainda para outro e dizem adeus. Comigo tenho um sabre de gala. Uso-o para cortar o cabelo, que está com um metro e vinte.
 
 
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




10 agosto 2022

jack gilbert / um tipo de coragem

 
 
A pastora da quinta além foi
tirada da escola agora que tem doze anos, e a sua vida acabou.
Arranjei um trabalho de Verão nos moinhos ao meu brilhante irmão
e ele lá ficou toda a vida. Vivi quatro anos com uma
mulher que mais tarde enlouqueceu, fugiu do hospital.,
atravessou a América à boleia, aterrorizada e na neve,
sem casaco. Foi violada pela maioria dos homens que lhe deram
boleia. Dou um pouco à manivela do coração e ele revira-se.
Paira alto no sol sobre continentes e erupções
de mortalidade, entre ventos e imensidões de chuva
que cai por quilómetros. Até que todo o mundo seja superado
pelo que sobe e em nós sobe, contudo, cantando e
dançando e lançando flores lá para baixo.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020



09 agosto 2022

paul bowles / noites

 
 
Tempos houve, aqui ou além,
em que o murmúrio das palavras não era suficiente.
 
Em alguma estante da memória jaz um Verão perdido,
um que não guardámos para saborearmos um dia.
certamente acabou depressa, com inesperados nevoeiros,
com o vento a deslizar pela incomensurável escuridão.
 
Nenhuma voz podia ser suficiente, aqui ou além,
e as horas caindo velozmente.
 
                                                            1977
 
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008