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03 janeiro 2023

philip larkin / esquecer o que

 



 
Parar o diário
Foi aturdir a memória,
Foi um começo em branco,
 
Começo que já não cicatriza
Com tais palavras, tais acções,
Que tornaram inóspito o acordar.
 
Queria-as terminadas,
Despachadas para enterro
E rememoradas
 
Como as guerras e os invernos
Que faltavam para lá das janelas
De uma infância opaca.
 
E as páginas vazias?
Se vierem a preencher-se,
Que seja com a observação
 
De recorrências celestes,
O dia em que vêm as flores,
E quando partem as aves.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004
 



27 agosto 2022

philip larkin / erva segada

 
 
A erva segada e frágil:
É breve o sopro
Que os caules ceifados exalam.
Longa, longa a morte.
 
Que ele morre nas horas em branco
Do Junho de folhas tenras
Com flores de castanheiro,
As sebes como de neve espargidas,
 
Lírios brancos curvando-se,
Veredas rendilhadas a flores bravas,
E aquela nuvem acastelada
Movendo-se ao ritmo do Verão.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004




 

04 novembro 2020

philip larkin / sexta à noite no hotel royal station

 
 
A luz desce e alastra obscuramente lá do alto
Dos cachos de luzes por sobre cadeiras vazias
De frente umas para as outras, em tons variados.
Pelas portas abertas, a sala de jantar afirma
Uma solidão mais vasta, de facas e copos
E silêncio assente como alcatifa. Um criado lê
Um vespertino que ficou. Passam as horas
E os vendedores já voltaram todos para Leeds,
Deixando cinzeiros atulhados na Sala de Congressos.
 
Nos corredores sem sapatos, ardem as luzes. Como
Fica isolado, que nem uma fortaleza –
O papel timbrado, feito para enviar para casa
(Se isso existisse) cartas de exílio: Agora
Avança a noite. Em ondas para lá das aldeias.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004

 





18 março 2016

philip larkin / as árvores



As folhas rebentam nas árvores
Como algo que quase se diz;
Os novos botões espreguiçam-se,
O verde é uma forma de mágoa.

Será que renascem, e nós
A envelhecer? Não, também morrem.
O truque que as faz parecer tão novas
Está escrito no grão dos anéis.

Porém os castelos inquietos
Adensam e crescem com o Maio.
Dizem: “passou, morreu o ano –
Recomecem, recomecem…”



philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004



01 julho 2015

philip larkin / simpatia em branco maior


Quando atiro quatro cubos de gelo
Tilintando para um copo, e acrescento
Três doses de gin, limão em rodela,
Mais um quarto de tónica, que verto
Espumando até que afogue, jorro a jorro,
Tudo o resto, até às bordas do copo,
Ergo a bebida no silêncio de um voto:
Ele dedicou a sua vida aos outros.

Enquanto outros usavam como roupas
Os seres humanos no seu dia-a-dia
Eu empenhei-me em mostrar, a quem me cria
Capaz de o fazer, as montras perdidas;
Não resultou, com eles ou comigo,
Mas todos assim ficaram mais próximos
(Ou tal se pensou) de todo o imbróglio
Do que se o perdêssemos cada um por si.

Boa pessoa, um fulano às direitas,
Sempre na linha, um tipo impecável,
Um ás, o máximo, um gajo porreiro,
Não lhe chegavam nem aos calcanhares;
Que chata teria sido esta vida
Se ele não tivesse andado por cá;
Um brinde, que alma mais branca não há!
Não sendo embora o branco a minha cor preferida.

  


philip larkin
inimigo rumor/15
trad. rui carvalho homem
cotovia
2003




13 agosto 2014

philip larkin / os velhos tolos



Que pensam eles que aconteceu, os velhos tolos,
Para os pôr assim? Porventura supõem
Que é mais crescido terem a boca aberta e a babar-se
E mijarem-se a toda a hora e não se recordarem
De quem os visitou hoje de manhã? Ou que é só quererem
E volta tudo a ser como quando dançaram toda a noite,
Ou casaram, ou marcharam de arma ao ombro num certo Setembro?
Ou imaginam que não houve mudança alguma
E que sempre se portaram como inválidos e bêbados
Ou se sentaram o dia inteiro em devaneio contínuo
Vendo a luz mover-se? Se não o crêem (e não podem), é estranho:
               Porque não estão a gritar?

Na morte, desfazemo-nos: os pedaços do que éramos
Começam a fugir uns dos outros para sempre
Sem ninguém a ver. Não é mais que um olvido, é certo:
Já o tivemos antes, mas dessa vez ia acabar,
E combinava-se com um esforço sem igual
para fazer desabrochar a flor de um milhão de pétalas
Que é estar aqui. Da próxima vez não se pode fingir
Que vai haver algo mais. E são estes os indícios:
Não saber como, não ouvir quem, já não ter
Força para escolher. Pelo ar deles, estão prontos para ir:
               Como podem não o saber?

Ser velho é talvez ter salas iluminadas
Dentro da cabeça e, lá dentro, gente a representar.
Gente que se conhece, mas cujo nome nos escapa;
Cada vulto responde a uma perda profunda, assomando
A uma porta conhecida, pousando uma vela, sorrindo
Das escadas, tirando um livro da estante; ou por vezes
Só as próprias salas, cadeiras e uma lareira acesa,
O vento no arbusto para lá da janela, ou a débil
Simpatia do sol na parede, num solitário
Fim de tarde de Verão, depois da chuva. É onde eles vivem:
Não aqui e agora, mas onde tudo aconteceu em tempos.
               Por isso é que eles têm

Um ar de ausência perplexa, tentando estar lá
E contudo estando aqui. É que as salas vão-se afastando,
Deixando para trás um frio inepto e o atrito constante
Do ar respirado, enquanto eles, os velhos tolos,
De cócoras junto ao morro da extinção, não se apercebem
De como está próximo. Deve ser isto que os sossega:
O pico que se observa de onde quer que se vá
Para eles é uma elevação. Será que não adivinham
O que os puxa para trás, e como tudo acabará? Nem à noite?
Ao longe de toda a horrível infância do avesso? Bom,
               Havemos de o saber.




philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004



23 janeiro 2014

philip larkin / conversar na cama



Conversar na cama devia ser mais fácil.
Ficar deitado ao lado de outro é tão antigo,
Um símbolo de duas pessoas sendo honestas.

Mas cada vez mais tempo passa em silêncio.
Lá fora a agitação incompleta do vento
Constrói e dispersa nuvens por cima do céu.

E cidades sombrias amontoam-se no horizonte.
Ninguém se importa connosco. Nada mostra porque
A esta distância única do isolamento,

Se torna ainda mais difícil encontrar
Palavras ao mesmo tempo reais e simpáticas,
Ou não irreais e não antipáticas.



philip larkin
tradução de jorge sousa braga




11 novembro 2011

philip larkin / janelas altas





Quando vejo um casal de miúdos
E percebo que ele a anda a foder e ela
Usa um diafragma ou toma a pílula
Sei que isto é o paraíso

Com que os velhos sonharam toda a vida —
Compromissos e gestos postos de lado
Que nem debulhadora fora de moda,
E toda a gente nova a descer pelo escorrega,

Interminavelmente, para a felicidade. Será
Que alguém olhou para mim, há quarenta anos,
E pensou: Isso é que vai ser boa vida;
Nada de Deus, ou de suores nocturnos,

Ou medo do inferno, ou ter de esconder
Do padre aquilo em que se pensa. Ele
E a malta dele, c’um raio, hão-de ir todos pelo escorrega
Abaixo, livres que nem pássaros? E de imediato,

Em vez de palavras, vêm-me à ideia janelas altas:
O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo, que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.





philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004




22 maio 2008

tristes passos






Tropeçando de volta à cama depois de uma mija
Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me
Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.

Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo
Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.
Há nisto uma faceta ridícula,

Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes
E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar
(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)

Alta e soberba e separada –
Pastilha de amor! Medalhão de arte!
Ó lobos da memória! Imensidões! É certo,

Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.
A dureza e a claridade e o alcance,
A singularidade de tão vasto e fixo olhar

É lembrança da força e da dor
De ser jovem; do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.










philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004