28 fevereiro 2015

herberto helder / ciclo



III
Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde faço minha vida de paz,
num peso íntimo de alegria como um existir de mão
fechada puramente sobre o ombro.
- Junto a coisas magnânimas de água
e espíritos,
a casas e achas de manso consumindo-se,
ervas e barcos mortos - meus pensamentos se criam
com um outrora casto, um sabor
de terra velha e pão diurno.

E em cada minuto a criatura
feliz do amor, a nua criatura
da minha história de desejo,
inteiramente se abre em mim como um tempo,
uma pedra simples,
ou um nascer de bichos num lugar de maio.

Ela explica tudo, e o vir para mim -
como se levantam paredes brancas
ou se dão festas nos dedos espantados das crianças
- é a vida ser redonda
com seus ritmos futuros e mortos.

Tudo é trigo que se coma e ela
é o trigo das coisas,
o último sentido do que acontece hesitante
pelos dias dentro.
Espero cada momento seu
como se espera o rebentar das amoras
e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
- E o resto é uma altura oculta,
um leite e uma vontade de cantar.



herberto helder
ciclo, poema III
poesia toda
assírio & alvim
1996





27 fevereiro 2015

marin sorescu / estudo



Há muito que suspeitava de mim mesmo
E hoje persegui-me durante todo o dia
A uma distância que evitasse suspeitas.

Pois sabei que sou mais perigoso do que imaginava.
Quando saio à rua, olho à direita e à esquerda
Como se fotografasse incessantemente
As casas, os homens, os postes telegráficos
E todas as riquezas.

Depois, sem reparar
(Talvez para não ser reconhecido)
Altero a expressão da alma.
O meu rosto é um verdadeiro alfabeto morse
Que transmite constantemente sabe-se lá que segredos
Aos homens da lua que apuram o ouvido para escutarem.

Quando estou sentado à mesa
Rasgo uma folha de papel
Em pedacinhos que, uma vez feitos numa bola,
São imediatamente arremessados ao esquecimento,
O que é muito estranho.

Esta noite descerei no meu sono
Por uma corda que levo para isso no bolso,
Para ver o que ali confessa o indivíduo,
De que se recorda espontaneamente
E ─ algo mais importante ─ quem é que
Lhe proporciona estas relações entre as coisas.
Depois disso tudo iniciarei
O preenchimento da ficha.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997





26 fevereiro 2015

luís miguel nava / virgínia



Embora o sol fosse alto ainda, àquela hora
já dali desertara, as sombras iam
saindo aos poucos de debaixo dos armários.
De vez em quando as mãos, completamente absortas,
detinham-se no ferro, sobre a tábua, ao lado
do gigo agora esvaziado e dos pesados
tabuleiros de verga, onde se erguia a roupa.
Tornavam-se mais nítidos, assim, os seus
contornos recortados contra a luz.
Dali podia-se avistar o mundo inteiro.

Ao longo dos telhados, por onde um ou outro gato
corria atrás das pombas, oscilava
ligeiramente a corda, onde a cidade, o céu
e os montes pareciam pendurados.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002





25 fevereiro 2015

ana hatherly / 7 tisanas inéditas



nº 237 - Parcialmente, a santidade consiste na capacidade de praticar transgressões bem orientadas. Por exemplo: matando em nós os fantasmas tutelares. Sem ternura. É assim que se atinge a múltipla orfandade.

nº 238 - O que pensará uma formiga ao ser contemplada por uma mosca poisada na parede? Quanto mais se pensa no sofrimento mais se compreende que tudo é devido a um incomensurável não-saber.

nº 239 - Tudo está aqui para alguma coisa, para desempenhar um papel, uma missão, pensamos utilitariamente. Eu, gosto das portas. A porta entreaberta, por exemplo: irá fechar-se? irá abrir-se? dar passagem? Oh subtil porta que tão indiferentemente abres-fechas: nem sei se olho para dentro ou de dentro.

nº 240 - Os livros quando são lidos por leitores apaixonados, alegres soltam suas folhas coloridas pelos ares da mente, guardião involuntário em todas as ocasiões. Este é um discurso cuja antiguidade reconstituo ludicamente enquanto escondo a ferida do tempo.

nº 241 - Era uma vez uma pessoa que andava sempre com uma palavra debaixo da língua. Quando a tinha na ponta falava, dando pequenos estalos de prazer. Depois lambia os beiços gulosamente. Estamos aqui à espera de quê? Imagina-acção.

nº 242 - Vou de comboio. Penso no terror que nos habita, que nos segue como imensa ignorada cauda. Chegando à estação vejo o meu rosto reflectido no vidro da janela. Olho fixamente o meu próprio rosto.

nº 243 - Ia pela rua fora, como de costume, quando vejo uma porta entreaberta que dava para um corredor muito comprido. Entro. No fundo há uma porta fechada. Bato à porta. Uma voz pergunta: quem é? Dou eu, digo. Eu quem? respondem. E não abrem a porta.


ana hatherly
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998




24 fevereiro 2015

josé gomes ferreira / ouve, tu que não estás no céu


                    (Prelúdio, em forma de grito, para
                    um livro de confissões pessoais que
                    nunca escreverei.)


XXII

Ouve, tu que não estás no céu:

Estou farto de escavar nos olhos
abismos de ternura
onde cabem todos
- menos eu!

Estou farto de palavras de perdão
que me ferem a boca
dum frio de lágrimas quentes de punhal!

Estou farto desta dor inútil
de chorar por mim nos outros!

- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever
os versos que me fazem doer!



josé gomes ferreira
poesia II
pessoais 1939-1940
portugália
1962





23 fevereiro 2015

t.s. eliot / a terra sem vida


II. UMA PARTIDA DE XADRÊS
(fragmentos)


"Os meus nervos estão mal esta noite. Sim, mal. Fica ao pé de mim.
"Fala comigo. Porque é que nunca falas? Fala.
             "Em que estás a pensar? Em que pensas? Em quê?
"Nunca sei em que estás a pensar. Pensa."


Penso que estamos na viela dos ratos
Onde os mortos perderam os seus ossos.

"Que ruído é este?"
                                   O vento sob a porta.
"Que ruído é este agora? O que está o vento a fazer?"
                                   Nada de novo nada.
                                                                                "Não
"Sabes nada? Não vês nada? Não te lembras
"De nada?"

                    Lembro-me
Que aquelas são pérolas que eram os seus olhos.
"Estás vivo ou não? Não há nada na tua cabeça?"


t.s. eliot
a terra sem vida
tradução maria amélia neto
edições ática




22 fevereiro 2015

rui costa / breve ensaio sobre a potência



26
Ser adulto é quase impossível no mundo
só imberbe. Acreditas mais num ficheiro
Microsoft do que nas salmodias da tua avó.
O novo deus do mundo será um adolescente
com jeito para a música e o cabelo a imitar
os heróis da manga. A luz desloca-se com
pressa para chegar antes de envelhecer.

27
E já não haver lugar para as imagens.
Eu sei que cabe tudo em disco externo,
mas foi aí que nós perdemos a cabeça.
Temos placas, rígidas plataformas, luz
com pouca treva nas costas da cidade.
Havemos de trocar as nossas memórias,
viver as outras vidas. Que sonho é agora?

28
Ah, disseste bem. Amar para sobreviver
à razão de luz. Chegamos a casa e as janelas
recobrem o mar e o esquecimento do vulto.
Deitamos os corpos no sofá sem televisão,
ordenhamos o anti-cristo pela guerra ausente.
Despimo-nos, mostramos ao tempo o nosso
sexo, ordenamos-lhe que afunde a escuridão.

29
Os anjos são recicláveis e a literatura
controla o tráfego aéreo. No porão do
pensamento acenamos à suavidade,
enquanto Deus é uma sala de fisioterapia.
Conservamos as fábricas de electricidade
em níveis aceitáveis de educação sentimental.
Somos homens negros paridores da luz.

30
Na serra aliamos as tendas, aquecemos
música. A luz é da tribo, a Grande Pedra
escuta. Somo xamãs foragidos da pele da
Cidade, despidos do Futuro junto ao rio.
Vamos aprender a fabricar-nos alimentos,
esquecer digitalmente o Sucesso, renascer as
mãos na utopia. Neste mundo deus vai dançar.

31
E assim ensaiamos o livro entre a
treva e a luz, o coração despedaçado
rasgando novos arquipélagos. São
colmeias brancas que nos coram as
palavras, pedras, constelações de risos
e de limos que transportamos na penumbra.
A poesia não sabe o quanto te devemos.


rui costa
breve ensaio sobre a potência
2012





21 fevereiro 2015

mário cesariny / voz numa pedra



Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde “a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela”
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
“a machadada e o propósito de não sacrificar-se não constituirão ao sol coisa nenhuma”
nada está escrito afinal



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




20 fevereiro 2015

vasco gato / segredo



segreda-me a canção dos dias
sem que nos ouça a noite terrível
e deixa que dance em mim a voz,
a voz azul que é o lugar onde
o mundo não pára de nascer.

segreda-me o teu nome, agora,
e farei de nós o amor, a constelação,
o sonho de uma estação sem morte.

  

vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000



19 fevereiro 2015

jorge gomes miranda / elogio da lembrança



Quando os desesperos nocturnos
pouco a pouco se amontoam em pânicos matinais
lembra.
O tempo em que, depois das aulas,
ias à janela e batias o apagador...
ficava sempre a marca de giz
na parede escura.

Quando aos fins de semana vais de carro ao campo,
a camisa imaculada, o olhar fatigado de vigiar as crianças,
lembra.
As longas caminhadas pelo monte,
o último encontro de futebol, findo o secundário,
a roupa amarrotada debaixo de uma pedra.

Quando já atravessas para o outro lado da rua
para não teres que falar com ninguém,
com pressa de chegar à casa que compraste
(estás a pagá-la todos os meses e um dia, dizem, será tua)
lembra.
O tempo em que ao cruzares com um polícia
dizias: «bom dia, minha senhora».

Lembra o rosto dos ausentes.
E essa palavra lançada ao rio pelo amigo.

Não olhes com sobranceria
o tempo em que à janela procuravas
responder e nunca o conseguias, à pergunta: «o que há entre
a escuridão lá fora e a minha alma aqui?»
Lembra.



jorge gomes miranda
curtas-metragens
relógio d'água
2002







18 fevereiro 2015

john ashbery / manual de instruções



     Sentado à janela do edifício
     Quem me dera não ter de escrever o manual de instruções sobre o uso de um
     novo metal.
     Olho para a rua e vejo gente, todos caminhando numa paz interior,
     E invejo-os – estão tão longe de mim!
     nenhum deles tem de se preocupar em entregar a tempo este manual.
     E, como sempre, começo a sonhar, apoiando os cotovelos na secretária e
     debruçando-me um pouco da janela,

     Com a vaga Guadalajara! Cidade de flores da cor das rosas!
     Cidade que mais queria ver e menos vi, no México!
     Mas imagino ver, sob a pressão de ter de redigir o manual de instruções,
     A tua praça pública, cidade, com o pequeno coreto rendilhado!
     A banda toca a Xerazade de Rimsky-Korsakov.
     Em volta, raparigas distribuem flores cor de rosa e de limão,
     Todas atraentes nos seus vestidos de riscas cor-de-rosa e azuis (Oh, aqueles
     tons de rosa e azul!),
     E ali ao pé a pequena barraca branca onde mulheres de verde servem frutas
     verdes e amarelas.
     Os casais desfilam, todos com ar de festa.
     À frente, abrindo o desfile, um janota
     Vestido de azul escuro. Na cabeça pousa-lhe um chapéu branco
     E usa bigode, aparado para esta ocasião.
     A sua querida, a mulher, é jovem e bonita: traz um xaile malva, rosa e branco.
     As chinelas são de verniz, à maneira americana,
     E traz um leque, pois é modesta, e não quer que os outros lhe vejam muitas
     vezes a cara.
     Mas estando todos tão entretidos com as mulheres ou as namoradas
     Duvido que reparassem na mulher do homem de bigode.
     Aí vêm os rapazes! Vêm saltitando e atiram pequenas coisas para o passeio
     De ladrilho cinzento. Um deles, um pouco mais velho, tem um palito nos dentes.
     Está mais calado que os outros, e faz que não repara nas bonitas raparigas de
     branco.
     Mas os amigos reparam, e lançam chalaças às raparigas que riem.
     Em breve, porém, tudo isto acabará, com o aprofundar dos anos,
     E o amor os trará à parada por outras razões.
     Mas perdi de vista o rapazola do palito.
     Espera! Lá está ele, do outro lado do coreto,
     Afastado dos amigos, em conversa séria com uma rapariga
     De catorze ou quinze anos. Tento ouvir o que dizem,
     Mas parece que apenas murmuram qualquer coisa – tímidas palavras de amor,
     provavelmente.
     Ela é um pouco mais alta, e desce o olhar sereno para os seus olhos sinceros.
     Está vestida de branco. A brisa agita-lhe os cabelos pretos, finos e compridos
     contra a face morena.
     É claro que está apaixonada. O rapaz, o do palito, também ele está apaixonado;
     Vê-se-lhe nos olhos. Afasto-me deste par
     E vejo que há um intervalo no concerto.
     Os que desfilaram descansam e bebem por palhinhas
     (As bebidas são servidas dum grande jarro de vidro por uma senhora de azul
     escuro),
     E os músicos misturam-se com eles, nos seus uniformes de um branco-creme, e
     fala.
     Do tempo, talvez, ou de como os miúdos vão bem na escola.


     Aproveitemos esta oportunidade para entrar pé-ante-pé numa das ruas laterais.
     Cá está uma daquelas casas debruadas de verde,
     Tão populares aqui. Olha – eu não te dizia?
     Está fresco e escuro cá dentro, mas no pátio há sol.
     Uma velha, de cinzento, ali sentada, abana-se com um leque de folha de
     palmeira.
     Recebe-nos no pátio e oferece-nos um refresco.
     «O meu filho está na Cidade do México», diz ela. «Também os havia de receber
     bem,
     Se cá estivesse. Mas trabalha lá num banco.
     Olhe, uma fotografia dele.»
     E um rapaz de pele escura e dentes de pérola sorri para nós da moldura de
     couro gasto.
     Agradecemos-lhe a hospitalidade, porque se faz tarde
     E nós precisamos de encontrar um ponto alto para ver bem a cidade, antes de
     partir.
     A torre da igreja serve – aquela ali, de rosa desmaiado, recortada no azul
     violento do céu. Entramos devagar.
     O sacristão, um velho vestido de castanho e cinzento, pergunta-nos há quanto
     tempo estamos na cidade, e se gostamos dela.
     A filha está a esfregar os degraus – acena-nos ao passarmos para a torre.
     Em breve chegamos ao cimo e toda a malha da cidade se estende diante de
     nós.
     Lá está o bairro elegante, de casas pintadas de rosa e branco, com frondosos
     terraços decrépitos.
     Lá está o bairro popular, com casas de azul escuro.
     Lá está o mercado, onde os homens vendem chapéus e enxotam moscas,
     E a biblioteca pública, pintada em vários tons de verde pálido e beige.
     Olha! Lá está a praça onde há pouco estivemos, com os passeantes.
     Já são menos, agora que o dia aqueceu,
     Mas o rapaz e a rapariga continuam escondidos pela sombra do coreto.
     E lá está a casa da senhora velha –
     Continua sentada no pátio a abanar-se.
     Que limitada, e no entanto completa, foi a nossa experiência de Guadalajara!
     Vimos amor de jovens, amor de casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
     Provámos as bebidas, ouvimos música e vimos casas coloridas.
     Que mais há a fazer, senão ficar? E isso é que não é possível.
     E enquanto uma última brisa refresca o cimo da velha torre degradada, volto a
     olhar
     Para o manual de instruções que me fez sonhar com Guadalajara.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



17 fevereiro 2015

leopoldo maría panero / ma mère


                    À minha desoladora mãe, com essa estranha
                    mescla de compaixão e náusea que só pode
                    experimentar quem conhece a causa, banal e
                    sórdida, talvez, de tanto, tanto desastre.



Eu contemplava, caído
                                  o meu cérebro
esmagado, pasto de serpentes, à
mercê das águias,
                           pasto de serpentes
eu contemplava o meu cérebro para sempre esmagado
e a minha mãe ria, a minha mãe ria
vendo-me remexer com medo nos despojos
da minha alma ainda quentes
                                            tremendo sempre
como quem tem medo de saber que está morto,
e chora, implora caridade aos vivos
para que não lhe cuspam em cima a palavra morto. Vi digo
o meu cérebro no chão liquefazendo-se, como excremento
para as moscas. E o meu espírito convertido num teatro
vazio, de que todo o pensamento desertou
tutti gli spirti miei eran fugitti
                                                  dinanzi a Lei
o meu espírito como um teatro vazio
onde em vão se animava inútil, a minha consciência,
                                                                        coisa obscura ou
bafo de monstro pressentido na caverna. E ali, no
     teatro vazio,
ou debaixo da tenda do circo
                                     abandonado, três atletas
—Mozo, Bozo, Lozo—
                              saltavam sem descanso, movendo
com desesperada vaidade o trapézio
de um lado ao outro, de um lado ao outro. E também, cortesãs
com o cabelo tingido de um ouro repugnante, trocavam
histórias sobre aquilo que nunca houve
no palácio em ruínas. E logo me vi, mais tarde
muito para lá do demasiado tarde,
                                                    numa esquina desolada de
alguma cidade invernal, mendigando
aos transeuntes uma palavra que dissesse
algo de mim, um nome com que me vestir. Porta
do inferno —do
inferno da impossibilidade de sofrer mais—
                                                                porta do inferno
—do inferno da possibilidade de sofrer mais—
este poema, este canto exausto
esta porta que range na casa
sem ninguém, conduzida apenas pelo vento desabitado,
como uma marafona ou uma marioneta infame que mimara
a sua carência de ser com o exagero do gesto: uma boneca
conduzida pelos fios invisíveis de todas as mãos
e negada por todos os olhos. Como uma boneca mimo-me
a mim mesmo e finjo
diante de ninguém que ainda existo. Pião
na mão do deus dos mortos. Como uma boneca
      extraviada
na rota implacável de tantas outras, das incontáveis
      marionetas
que levam a sua vida como um rito funerário,
uma obsessão senil ou um delírio
último de moribundo. Porque os homens não falam, disse-me,
      disse
aos cegos que manchavam
de fezes e sangue os seus sapatos ao pisar o meu cérebro.
                                                                                      E no momento
em que pensou isso, um menino
urinou sobre a pasta derretida,
                                               dando logo
de beber vinho tinto e forte a um sapo
para que bêbado risse, risse, enquanto caia
sobre o inverno da vida a chuva
mais dura. E ao vê-lo, e enquanto me arrastava
coxeando entre os mortos, pensei: chove,
chove sempre nas ruínas. E a minha mãe riu, ao ouvir aquele ruído
que dilatava o meu pensamento.
  

      Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979




leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014




16 fevereiro 2015

eugénio de andrade / sul



Era por Agosto, há muitos anos.
O cheiro da sombra
das oliveiras subia ao ar. Vista de baixo
aquela folhagem parecia um mar,
um mar de vidro,
quando o sol obliquo lhe caia em cima.

Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.

Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra.

Eram muito novos, há muitos anos,
no pino do verão, debaixo de uma oliveira,
onde só as cigarras monotonamente
consentiam.



eugénio de andrade