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30 agosto 2022

marin sorescu / à ícaro

 
 
Fui pedir esmola às aves
E cada uma deu-me
Uma pena.
 
Uma era alta, a da águia,
Vermelha, a da ave do paraíso,
Verde, a do colibri,
Palradora, a do papagaio,
Medrosa, a da avestruz –
Ah, que asas fiz para mim!
 
Meti-as na minha alma
E comecei a voar.
Voo alto de águia,
Voo vermelho de ave do paraíso,
Voo verde de colibri,
Voo falador de papagaio,
Voo medroso de avestruz –
Ah, como eu voei!
 
 
marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997
 



01 dezembro 2020

marin sorescu / historioterapia

 
 
 
Se ando com insónias,
À noite, antes de me deitar
Tomo um atlas histórico
Com um pouco de água.
 
Enquanto espero o efeito,
Sigo com o dedo
O império dos hititas,
Mas após um momento
Tenho de recomeçar.
 
Porque, de facto, o império dos hititas
É o império dos egípcios,
Ah, não, o dos assírios…
Dos medo-caldeus…
Dos persas…
 
Se as coisas são assim, penso,
Também eu posso dormir
Tranquilo.
 
 


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997

 



03 março 2017

marin sorescu / criação



Escrevo em terramotos,
E se algumas palavras
Deslizam para longe
A culpa é só da crosta da terra
Pela sua falta de estabilidade.

Nem sabes
Quando se abre um vulcão sob a tua mesa,
E depois de um dia de trabalho
Podes assinar directamente na cinza.

Todas as coisas mudam
De lugar,
A lâmpada do tecto chega-me abaixo do queixo.
A montanha no horizonte entrou-me na boca,
Mordaça de que os restos
Vão ainda ser cuspidos
Pelos meus descendentes até à sétima geração.

A folhagem do cimo das árvores
Mudou-se para dentro do solo
Com medo dos terramotos,

Muitos dos meus antepassados
Mudaram-se para dentro do solo
Com medo dos terramotos.

Só eu continuo a tentar ligar,
Como carris após o descarrilamento
Estas duas palavras,

Que fogem, uma para um lado
Outra para o outro,
Enlouquecidas de terror.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997






20 fevereiro 2017

marin sorescu / quadros



Todos os museus têm medo de mim:
Sempre que fico o dia inteiro
Diante de um quadro
No dia seguinte anunciam
O desaparecimento desse quadro.

Todas as noites me apanham a roubar
Noutras partes do mundo,
Mas eu nem ligo
Às balas que me assobiam ao ouvido,
E aos cães-polícia que já conhecem
O cheiro das minhas pegadas
Melhor do que os namorados
O perfume da amada.

Falo em voz alta com as telas
Que põem em perigo a minha vida,
Penduro-as nas nuvens e nas árvores
E recuo para obter perspectiva.

Com os mestres “italianos” podes facilmente conversar.
Que ruído de cores!
É por isso que sou logo apanhado com eles,
Visto e ouvido de longe,
Como se tivesse papagaios nos braços.

O mais difícil é roubar Rembrandt:
Estendes a mão e encontras a escuridão —
Ficas apavorado, os seus homens não têm corpo,
Apenas olhos fechados em adegas escuras.

As telas de Van Gogh são loucas,
Rolam e dão cambalhotas,
Tens de prendê-las bem
Com ambas as mãos,
Pois são sugadas por uma força lunar.

Não sei porque é que Breugel me faz chorar,
Não era mais velho do que eu,
Mas chamaram-lhe velho,
Porque sabia tudo quando morreu.

Procuro aprender com ele,
Mas não posso conter as lágrimas
Que escorrem nas molduras douradas
Quando fujo com as estações debaixo do braço.

Como vos disse, todas as noites
Roubo um quadro
Com uma perícia invejável.

Sendo o caminho muito longo,
Sou finalmente apanhado,
Chego a casa a altas horas,
Cansado e rasgado pelos cães
Trazendo comigo uma reprodução barata.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




21 maio 2016

marin sorescu / hino



Em vez de raízes as árvores
Têm santos,
Que se levantaram da mesa
E ajoelharam debaixo da terra
Para a oração.

Apenas as auréolas
Ficaram de fora:
Estas árvores,
Estas flores.

Também nós, chegada a nossa vez, seremos
Santos,
Orando para que a terra
Continue redonda e abençoada
Para todo o sempre.



marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




11 janeiro 2016

marin sorescu / olha...



Olha, as coisas
Estão cortadas ao meio,
De um lado elas
Do outro o seu nome.

Há um vasto espaço entre elas,
Espaço para correr,
Para a vida.

Olha, tu estás cortado ao meio.
De um lado tu,
Do outro o teu nome.

Não sentes às vezes ou no sonho
Ou à margem do sonho,
Que na tua fronte
Assentam outros pensamentos,
Sobre as tuas mãos
Outras mãos?

Só por um instante foste compreendido
Fazendo o teu nome
Atravessar o teu corpo,
De um modo sonoro e doloroso,
Como o badalo de bronze
Através do vazio do sino.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997





31 outubro 2015

marin sorescu / duas vezes



Olho para todas as coisas
Duas vezes:
Uma para me alegrar,
Outra para me entristecer.

As árvores têm gargalhadas
Na coroa das flores
E uma grande lágrima
Na raiz.
O sol ainda é jovem
No extremo dos raios,
Mas esses raios
Estão cravados na noite.

O mundo cabe todo
Entre estas duas capas
Onde fui amontoando
Todas as coisas que amei
Duas vezes.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997





05 julho 2015

marin sorescu / simetria



Vagueava,
Quando, de súbito, à minha frente
Se abriram dois caminhos:
Um para a direita
E outro para a esquerda
Segundo todas as regras de simetria.

Parei,
Semi-cerrei os olhos,
Esbocei com os lábios uma dúvida,
Tossiquei,
E segui pelo da direita
(Precisamente pelo que não devia,
Como se provou mais tarde).

Só eu sei o que foi esse caminho,
É escusado dar pormenores.
E depois, à minha frente, abriram-se dois
Precipícios:
Um à direita,
Outro à esquerda.
Lancei-me no da esquerda,
Sem pestanejar, sem tomar balanço,
E catrapumba lá vou eu pelo da esquerda abaixo,
Que, ai de mim, não estava forrado de penas!
Rastejei, disposto a continuar.
Fui rastejando por algum tempo
E de súbito à minha frente
Abriram-se dois grandes caminhos
«Já vão ver» - disse para comigo -
e tomei outra vez o da esquerda,
para me vingar.
Errado, completamente errado, o da direita era
O verdadeiro, o grande caminho, ao que dizem.
E no primeiro cruzamento
Dei-me de corpo e alma
Ao da direita. Mas também agora
Era o outro que eu devia ter escolhido, o outro…

Agora a merenda estava quase no fim,
Na minha mão o cajado envelhecera,
Já não dava rebentos
Para eu descansar à sombra
Quando me domina o desespero.
Os ossos gastaram-se nas pedras,
Rangem e praguejam contra mim
Que perseverei no erro…
E olhem: agora à minha frente abrem-se
Dois céus:
Um à direita, outro à esquerda.



marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




08 junho 2015

marin sorescu / leda



Leda passa sorrindo
Por entre as coisas
E vai para a cama
Com todas elas.

O muro fez-lhe um filho
Da hera,
O sol fez-lhe nascer
Um girassol.

Ela fez amor às claras
Com todos os bois,
À cabeça o boi Apis,
Mas, diabos a levem,
Nem sequer se nota.

Grande puta,
Esta Leda,
Por isso é que o mundo continua
tão bonito.




marin sorescu
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por egito gonçalves
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quetzal
1997



27 fevereiro 2015

marin sorescu / estudo



Há muito que suspeitava de mim mesmo
E hoje persegui-me durante todo o dia
A uma distância que evitasse suspeitas.

Pois sabei que sou mais perigoso do que imaginava.
Quando saio à rua, olho à direita e à esquerda
Como se fotografasse incessantemente
As casas, os homens, os postes telegráficos
E todas as riquezas.

Depois, sem reparar
(Talvez para não ser reconhecido)
Altero a expressão da alma.
O meu rosto é um verdadeiro alfabeto morse
Que transmite constantemente sabe-se lá que segredos
Aos homens da lua que apuram o ouvido para escutarem.

Quando estou sentado à mesa
Rasgo uma folha de papel
Em pedacinhos que, uma vez feitos numa bola,
São imediatamente arremessados ao esquecimento,
O que é muito estranho.

Esta noite descerei no meu sono
Por uma corda que levo para isso no bolso,
Para ver o que ali confessa o indivíduo,
De que se recorda espontaneamente
E ─ algo mais importante ─ quem é que
Lhe proporciona estas relações entre as coisas.
Depois disso tudo iniciarei
O preenchimento da ficha.




marin sorescu
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por egito gonçalves
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1997





22 dezembro 2014

marin sorescu / capriccio



Todas as noites
Junto as cadeiras da vizinhança,
As disponíveis,
E leio-lhes versos.

As cadeiras são muito receptivas
À poesia
Se soubermos como as dispor.

Por isso
Fico emocionado,
E durante algumas horas
Conto-lhes
A morte maravilhosa da minha alma
Ao longo do dia.

Os nossos encontros
São habitualmente sóbrios,
Sem entusiasmos
Inúteis.

Seja como for,
É possível dizer-se:
Cada um fez o seu dever,
E pode seguir
Adiante.




marin sorescu
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por egito gonçalves
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1997




05 outubro 2011

marin sorescu / suicídio





Havia em mim uma vintena de gerações,
Assim pelo menos,
E nessa manhã, vá-se lá saber porquê,
Uma janela deixada aberta talvez,
Alguém se atirou para o vazio.

Então subitamente todos eles
Se puseram a saltar
Uns atrás dos outros,
À bicha, como que fazendo a chamada
Sobre um trampolim,
Segundo o princípio da desintegração dos carneiros.

Em menos de uma hora e meia
Encontrei-me totalmente despido, sem nada,
E de vergonha atirei-me para o vazio também eu,
Devo ter morrido à altura do quarto andar,
Ao décimo, em todo o caso,
A coisa estava consumada.

Tudo isto,
É um mero passante,
Quem vo-lo conta,
Um de entre nós,
Melhor dizendo,
Que terá talvez caído menos mal.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
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quetzal
1997




03 fevereiro 2010

marin sorescu / xadrez









Eu movo um dia branco,
Ele move um dia preto.
Eu avanço com um sonho,
Ele manda-o para a guerra.
Ele ataca os meus pulmões
Eu fico um ano no hospital a pensar,
Faço uma combinação brilhante
E ganho-lhe um dia preto.
Ele move uma desgraça
E ameaça-me com o cancro
(Que por agora avança em forma de cruz),
Mas ponho à sua frente um livro
E obrigo-o a recuar.
Ganho mais algumas peças,
Mas, reparem, metade da minha vida
Já está fora de jogo.
— Vou dar-te cheque e perdes o optimismo
Diz ele.
— Não faz mal, gracejo eu,
Faço roque dos sentimentos.

Atrás de mim a minha mulher, os meus filhos,
O sol, a lua e os outros mirones
Tremem por cada jogada minha.

Eu acendo um cigarro
E retomo a partida.







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01 fevereiro 2009

marin sorescu / o caracol







O caracol tapou bem os olhos
Com cera,
Meteu a cabeça no peito
E olha fixamente
Para dentro.

Em cima dele
A casca —
A sua obra perfeita
Que lhe mete nojo —

À volta da casca
O mundo,
O resto do mundo,
Disposto aqui e além
Segundo certas leis
Que lhe mete nojo —

E no centro deste
Nojo universal
Está ele —
O caracol,
De que sente nojo.









marin sorescu
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07 março 2008

revelação






Hoje só fotografei árvores,
Dez, cem, mil.
Vou revelá-las à noite.
Quando a alma for câmara escura.
Depois vou classificá-las:
Segundo as folhas, os anéis dos troncos,
Segundo as suas sombras.
Ah, como as árvores
Entram facilmente umas nas outras!
Vejam, agora só me resta uma.
É esta que vou fotografar outra vez
E vou observar com assombro
Que se parece comigo.
Ontem só fotografei pedras.
E a pedra afinal
Parecia-se comigo.
Anteontem — cadeiras —
E a que resultou
Parecia-se comigo.

Todas as coisas se parecem terrivelmente
Comigo...

Tenho medo.









marin sorescu
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02 abril 2007

shakespeare





Shakespeare criou o mundo em sete dias.

No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma.
No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos
E os restantes sentimentos —
Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra, e a Ofélia,
A Otelo e a outros,
Para que fossem seus donos, eles e os seus descendentes,
Pelos séculos dos séculos.
No terceiro dia juntou todos os homens
E ensinou-lhes os sabores:
O sabor do ciúme, da glória e assim por diante,
Até esgotar todos os sabores.

Por esse tempo chegaram também uns indivíduos
Que se tinham atrasado.
O criador afagou-lhes compassivo a cabeça,
E disse que só lhes restava
Tornarem-se críticos literários
E contestarem a sua obra.
O quarto e o quinto dia reservou-os para o riso.
Soltou os palhaços
Para darem cambalhotas,
E deixou os reis, os imperadores
E outros desgraçados divertirem-se.
Ao sexto dia resolveu alguns problemas administrativos:
Forjou uma tempestade,
E ensinou ao rei Lear
O modo de usar uma coroa de palha.
Com os restos da criação do mundo
Fez o Ricardo III.
Ao sétimo dia viu se havia algo mais a fazer.
Os directores de teatro já tinham coberto a terra de cartazes,
E Shakespeare concluiu que depois de tanto esforço
Também ele merecia assistir ao espectáculo.
Mas antes disso, esfalfado de todo,
Foi morrer um pouco.








marin sorescu
simetria
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por egito gonçalves
poetas em Mateus
quetzal
1997








20 dezembro 2004

há coisas em que não vale a pena ser original...

Brinquedos



Nós, que somos espantosamente grandes,
que já não deslizámos pelo gelo desde as duas guerras,
Ou se o fizemos alguma vez, sem querer
Já nos fracturámos um ano,
Um dos nossos importantes e duros anos
De gesso...
Oh, nós, os espantosamente grandes
Sentimos por vezes
Que nos faltam os brinquedos.

Temos tudo o que necessitamos,
Mas faltam-nos os brinquedos.
Temos saudades do optimismo
Do coração de algodão das bonecas
E da nossa nau
Com três fieiras de velas,
Que tanto sulcava as águas
Como a terra firme.

Gostaríamos de montar um cavalo de madeira
E que o cavalo relinchasse ao mesmo tempo que a madeira
E que nós lhe disséssemos: 'Leva-nos a algum sítio
Não importa qual,
Porque em qualquer sítio da vida
Propomo-nos levar a cabo
Formidáveis façanhas'.

Oh, quanta falta, por vezes, nos fazem os brinquedos!
Mas nem sequer podemos estar tristes
Por essa razão,
E chorar com toda a alma,
Agarrando a perna da cadeira
Porque somos tão adultos
Que não há ninguém mais velho que nós
Para nos acariciar.




Marin Sorescu,
de "Simetria"
Tradução colectiva
Poetas em Mateus, Quetzal