31 outubro 2004

book zapping #003 henry miller


O Tempo dos Assassinos
Um estudo sobre Rimbaud



“Diz-se que Rimbaud, no tempo em que escrevia o seu “livro negro” (Une Saison en Enfer), terá afirmado: “O meu destino depende deste livro!” Nem o próprio Rimbaud sabia como era profundamente verdadeira essa afirmação. À medida que começamos a compreender o nosso próprio destino trágico, começamos também a perceber o que ele queria dizer. Tinha identificado o seu destino com o da época mais crucial de que o homem tinha conhecimento. Das duas uma, ou, como Rimbaud, renunciamos a tudo aquilo que a nossa civilização tem representado até aos nossos dias, e procuramos construir desde o princípio, ou destruímo-la com as nossas próprias mãos. Quando o poeta está no nadir, então não há dúvida de que o mundo está de pernas para o ar. Se o poeta já não pode falar em nome da sociedade, mas apenas em seu próprio nome, então é porque estamos encurralados na última trincheira. Sobre o cadáver poético de Rimbaud, começámos a levantar uma torre de Babel. Nada significa o facto de ainda haver poetas e de alguns deles ainda serem inteligíveis, capazes de comunicar com a multidão. Qual é o rumo da poesia e onde reside o elo entre o poeta e a sua audiência? Qual é a mensagem? Esta é a pergunta mais importante. Qual é a voz que hoje em dia se faz ouvir, a do poeta ou a do cientista? Andamos a pensar na Beleza, por amarga que seja, ou anda mos a pensar na energia atómica? E qual é a principal emoção que as nossas grandes descobertas inspiram? Pavor! Temos saber e não temos sabedoria, temos conforto e não temos segurança, acreditamos mas não temos fé. A poesia da vida expressa-se apenas em termos matemáticos, físicos, químicos. O poeta é um pária, uma anomalia. Caminha para a extinção. Quem é que hoje se preocupa com o facto de o poeta se tornar a si próprio monstruoso? O monstro anda à solta. Passeia-se pelo mundo. Fugiu do laboratório e está ao serviço de seja quem for que tenha coragem suficiente para lhe dar emprego. Na verdade, o mundo tornou-se número. A dicotomia moral, como todas as dicotomias, sofreu um colapso. Atravessamos uma era em que uma grande maré tudo arrasta ao acaso. Começou a grande deriva.
E os loucos falam de reparações, inquisições, retribuições, de alinhamentos e coligações, de comércio livre e de estabilidade e revitalização económicas. Nenhum deles acredita, no fundo, que a situação mundial possa ser regulada. Todos aguardam o grande acontecimento, o único acontecimento que nos preocupa dia e noite: a próxima guerra. Pusemos tudo em total desordem e ninguém sabe nem como nem onde procurar os meios de a controlar. Os travões ainda estão no sítio, mas será que funcionam? Sabemos que não. O demónio anda à solta. A era da electricidade já lá vai há tanto tempo como a Idade da Pedra. Esta é a Idade do Poder, do poder puro e simples. Agora a escolha é entre céu e inferno; já não é possível meio termo. E tudo indica que vamos escolher o inferno. Se o poeta vive o seu inferno, já não é possível ao homem comum escapar dele. Terei eu dito que Rimbaud era um renegado? Todos somos renegados. Desde o alvorecer dos tempos que andamos a renegar. Finalmente, o destino consegue andar a par connosco. Todos, homens, mulheres e crianças, identificados com esta civilização, vamos entrar na nossa Estação no Inferno. É isso que temos andado a pedir; cá está. Aden ainda nos há-de parecer um local confortável. No tempo de Rimbaud ainda era possível deixar Aden e partir para Harare, mas daqui por cinquenta anos o mundo há-de parecer uma vasta cratera. Apesar do que em contrário possam dizer os cientistas, o poder que o homem tem hoje nas mãos é radioactivo, é permanentemente destrutivo. E nunca pensámos no poder em. termos de bem; apenas em termos de mal. Nada existe de misterioso no que toca à energia do átomo; o mistério reside no coração dos homens. A descoberta da energia atómica ocorre em sincronia com a descoberta de que nunca mais podemos confiar uns nos outros. Aqui, neste medo capaz de se multiplicar como as cabeças da Hidra, medo que nenhuma bomba consegue destruir, aqui é que reside a nossa fatalidade. O verdadeiro renegado é o homem que perdeu a fé no seu semelhante. E a perda da fé, hoje, é universal. Aqui, neste ponto, o próprio Deus é impotente. A nossa fé transpôs-se para a bomba e será a bomba a responder às nossas orações.”



O Tempo dos Assassinos
Henry Miller
Hiena Editora, 1983
Colecção Cão Vagabundo 8

28 outubro 2004

quatro estações #crónicas de outono

dias de espera


faz de conta que o tempo voou. estrangulou o dia, rasgando caminhos confusos da cidade invisível. depois enrosca-te na penumbra, afasta as sombras gravadas misteriosamente e entre insónias de horas perdidas, esquece-me pouco a pouco. desfaz as memórias e vai secando as ideias, encharcadas do perfume acumulado na raiva das minhas veias.

debruça o olhar no presente, abre a janela e engole as luzes das noites. saboreia cada sussurro oculto, nas horas que ouves na grande solidão. adormece na inquietude das paredes brancas, cheias de falsos sonhos, enquanto fugirei de mim silenciosamente. desce de novo os teus olhos, ao fascínio ardente da água teimosa, do mar que nos fez sentir vivos, numa prolongada espera.

é então tempo de caminhar, voar no esquecimento das emoções, partir sem som.


l.maltez

23 outubro 2004

polaróide mínima #002



Tiziano Fratus


Tiziano Fratus (Bergamo, 1975) dirige «ManifatturAE», é poeta, artista, critico. Em 2001 participou com os seus quadros-poesia em Versus VII (Velan, Torino). Em 2002 leva à cena o monólogo-performance l’autunno per eleni, de que dirige o vídeo homónimo. Participou em vários festivais de teatro e poesia. Em 2003, publica lumina (Editoria & Spettacolo, Roma). O poema la barba da vecchio che segue tracciati sfumature d'asfalto usurato (Dubsters, Torino) participa no projecto Fioriture organizado por Isabella Bordoni para a Giornata Mondiale della Poesia, difundida pela KunstRadio de Vienna. Compôs o longo poema l’inquisizione (2000-2004), que está para ser publicado pela Editoria & Spettacolo. Dirigiu o videopoema anatómico nell’uomo (Dubsters, Torino, 2004), que terá estreia no X Festival Internazionale di Poesia di Genova. É critico no semanário «Il Domenicale» e no «Dramma.it», consultor do festival de dramaturgia Quartieri dell’Arte (Viterbo), Tramedautore (Milano), Incontrosensi (Pescara). Ensina história da dramaturgia do século XX em Moncalieri. Publicou os seguintes ensaios, conversas e volumes sobre o teatro contemporâneo: Lo spazio aperto. Il teatro ad uso delle giovani generazioni (Editoria & Spettacolo, 2003); L’architettura dei fari: 1990-2003, la nuova drammaturgia italiana (Edizioni Atelier, 2003). Trabalha na antologia Un albero in scena. L’arte dei versi nella drammaturgia contemporânea italiana.


A inquisição é um poema composto por 33 quadros. Na Turim dos nossos dias, simultaneamente reconhecível e transfigurada, um homem duplica–se algures na periferia norte da cidade: pensamentos, recordações, personagens selvagens, como selvagem é a mancha negra que, partindo do cérebro e do fundo da alma, se expande, infiltrando-se nas paredes, perturbando o silêncio, lacerando os tecidos e ocultando a lenta combustão dos corpos.



PICTA / n o i n t e r i o r d e h o m e m
poema de tiziano fratus
tradução de letizia russo e pedro marques


{ de poema a inquisição, Artistas Unidos / Editoria & Spettacolo, Lisboa / Roma, 2004 }

olho para o rosto do meu pai
um pai como todos os pais que recorda e traz gravados os sinais da vida
os seus erros e culpas e diferenças revivem em mim reflorescem para serem às vezes repetidos
queria abraçá-lo apertar-lhe os ossos e as fibras musculares
escancarar a boca ranger a segunda fileira de dentes e depois devorá-lo
engoli-lo digeri-lo no escuro do estômago durante muito tempo e deixá-lo decantar nas entranhas
para o queimar depois fragmentado em todos os seus pormenores a posição dos pés e a maneira de segurar no cigarro
e o sulco que os anos cinzelam nas bochechas de norte a sul
mas agora fui raptado pelos amores e pelos leitos da paixão por um outro tipo de carne
as estações andam de mão em mão e acumulam-se atrás do olhar que se faz mais prudente
a tua mão é uma recordação embora o aperto dela na minha ainda arda
uma epígrafe jaz na nossa sepultura o mármore frio
epitáfio de um amor que morre mais uma vez
tentámos mudar o mundo mas o mundo mudou-nos a nós
é mais fácil levar a cabo um holocausto nos nossos dias
agarrados aos sobretudos elegantes e sepultados debaixo de corredores de livros e mapas do mundo
as fotografias dos campos de concentração espalhadas pela velha europa amareleceram demasiado depressa
oxidaram e precipitaram-se no fundo dos rios
nem os pescadores nem os remadores que treinam os corpos no tibre no pó ou no arno
nem eles podem distingui-las debaixo dos sedimentos de lodo e dos resíduos industriais
um espectro com a varinha de hipócrates canta uma cantilena
não adormeçamos uma nova confusão em cima de sedimentos de uma outra confusão
este correr atrás este cansar-se para contribuir pessoalmente para a evolução do pensamento
já há demasiada vida incompleta a rebocar as paredes das salas de aula e as igrejas
somos homens pequenos que tentam fazer a história com um balde de areia
mas não suportamos a areia nas sandálias a máquina de lavar que encrava a massa empapada
a humanidade está avariada estragou-se logo depois da criação
indivíduos de sexo incerto andam às voltas com máscaras no rosto
únicos concorrentes para o mesmo farrapo de poder
apinham as rampas do metro e fazem mais compridas as filas nas escadas de vidro transparente (agora embaciado)
nos apartamentos cada vez mais lúcidos cada vez mais vagos habitam animais silenciosos
mas a recordação foge como fumo esvanece por cima das cabeças é vapor
a celebração da memória camufla as verdades históricas
será verdade que aqueles soldados os primeiros a saltar por cima dos portões de auschwitz não podiam olhar para os corpos filiformes os cadáveres empilhados que não paravam de nascer para além dos limites do olhar para além do vocabulário para além dos gestos das mãos
envolvia-os um sobretudo de frio que não obedecia às leis da física e da química
lá ao fundo uma fábrica desagregava um povo inteiro
era a morte que apertava a mão da europa que tinha apostado nos fascismos
meio século mais tarde gostava de te ver de piquete numa marcha nazi
mas no fundo é melhor deixarmos de nos chatear por qualquer coisa
o homem perecerá de certeza no momento de máximo fulgor
enquanto os poetas e os artistas sem bengala se queixam como sempre despenteados e maltrapilhos à frente de um copo de gin vazio
os jovens (já poucos) reproduzem no papel as ilações mas sem confiar nos pais e nos primos
com dor e compreensão por todos os mortos sem funeral e todos os corpos desfigurados privados do nome
os macacos e os papagaios monocromáticos peneirados por trás das grades do jardim zoológico de periferia
delira o pó levantado pelos touros durante um dia de corrida
enquanto as mãos juntas de uma mãe seguram debilmente as contas do rosário
ao alto seguras no queixo escultural e na altivez do perfil
as objectivas dilaceram o ar numa chuva de pontos de exclamação
e finalmente a lâmina que se espeta para cortar a artéria jugular e separar a cabeça do resto do corpo (já cadáver)
terá de fazer gotejar ainda o último derramamento de sangue enquanto o coração ainda pulsa
o jogo o medo a raiva o instinto a sobrevivência
tensos os músculos e os tendões nos membros ao longo da espinha dorsal
as flores e os beijos cercam o campo de batalha enchem as margens
transbordam e enfiam-se no corpete do toreador até iniciar o seu colapso
nenhuma clínica funciona para o comparsa sacrificado
ainda há guerra e as causas justas de novo excitam a imprensa
grandes discursos escritos nas mesas dos parlamentos
ser obstinadamente inconsoláveis é doença que encurta a vida
o luto é um bordado fino tecido na penumbra






Um poema da vertigem e dos limites físicos e mentais.
«La Repubblica»




por Nuno Travanca

quatro estações #crónicas de outono



passados


não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.

havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.

eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.


gil t. sousa

20 outubro 2004

book zapping #002 italo calvino

As Cidades Invisíveis

As cidades e os mortos. 3


"Não há cidade mais propensa que Eusápia a gozar a vida e a fugir às ansiedades. E para que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram debaixo de terra uma cópia idêntica da sua cidade. Os cadáveres, secos de maneira que fique o esqueleto revestido de pele amarela, são levados lá para baixo para continuarem as ocupações de antes. Destas, são os momentos despreocupados que têm a preferência: a maior parte deles, colocam-nos sentados à volta de mesas postas, ou em posição de dança ou no gesto de tocar trompas. Mas também todos os comércios e ofícios da Eusápia dos vivos continuam ao trabalho debaixo de terra, ou pelo menos aqueles que os vivos realizaram com mais satisfação que enfado: o relojoeiro, no meio de todos os relógios parados da sua oficina, encosta uma orelha ressequida a um relógio de pêndulo sem corda; um barbeiro ensaboa com o pincel seco o osso das bochechas de um actor enquanto este estuda o papel fixando o guião com as órbitas vazias; uma rapariga de caveira sorridente ordenha uma carcaça de bezerra.
É claro que são os vivos que pedem para depois de mortos um destino diferente do que lhes calhou: a necrópole está cheia de caçadores de leões, meios-sopranos, banqueiros, violinistas, duquesas, cortesãs, generais, mais dos que contou a cidade viva.
A incumbência de levar lá para baixo os mortos e colocá-los no lugar desejado está outorgada a uma confraria de encapuçados. Mais ninguém tem acesso à Eusápia dos mortos e tudo o que se sabe lá de baixo sabe-se por eles.
Diz-se que a própria confraria existe entre os mortos e que não deixa de lhes dar uma ajuda; os encapuçados depois de mortos prosseguirão também o mesmo ofício na outra Eusápia; fazem crer que alguns deles já estão mortos e continuam a andar para cima e para baixo. E evidente que é muito ampla a autoridade desta congregação sobre a Eusápia dos vivos.
Dizem que sempre que descem encontram qualquer coisa mudada na Eusápia de baixo; os mortos trazem inovações à sua cidade; não muitas, mas certamente fruto de reflexão ponderada, e não de caprichos passageiros. De um ano para o outro, dizem, a Eusápia dos mortos não se reconhece. E os vivos, para não lhes ficarem atrás, querem fazer também tudo o que os encapuçados contam das novidades dos mortos. Assim a Eusápia dos vivos pôs-se a copiar a sua cópia subterrânea.
Dizem que isto não é só agora que acontece: na realidade teriam sido os mortos a construir a Eusápia de cima à semelhança da sua cidade. Dizem que nas duas cidades gémeas já não há maneira de saber quais são os vivos e quais os mortos."



Ítalo Calvino
“As Cidades Invisíveis”
Teorema
Lisboa 1999

14 outubro 2004

book zapping #001 marguerite yourcenar

Arquivos do Norte


“Mas vamos depressa de mais: sem querer precipitamo-nos pela encosta que nos traz ao presente. Contemplemos antes este mundo que ainda não atravancamos, estas léguas da floresta cortada por charnecas que se estende quase ininterrompida de Portugal até à Noruega, das dunas às futuras estepes russas. Recriemos em nós este oceano verde, não imóvel, como é a maioria das nossas representações do passado, mas em movimento e mudança no decorrer das horas, dos dias e das estações que fluem sem terem sido medidos pelos nossos calendários nem pelos nossos relógios. Vejamos as árvores de folha caduca ficarem encarnadas no Outono e os pinheiros balançarem na Primavera as suas agulhas novas ainda cobertas por uma fina cápsula castanha. Mergulhemos neste silêncio quase virgem de barulhos de vozes e de utensílios humanos, onde se ouvem apenas os bandos das aves ou o seu chamamento de aviso quando um inimigo, doninha ou esquilo, se aproxima, o zumbido de miríades de mosquitos, ao mesmo tempo predadores e presas, o rugido de um urso que procura na fenda de um tronco um favo de mel que as abelhas defendem a zumbir, ou ainda o estertor de um veado despedaçado por um lince.
Nos pântanos cheios de água, um pato mergulha, um cisne que toma balanço para voltar ao céu faz o seu enorme barulho de asas desdobradas; as cobras deslizam silenciosamente sobre o musgo ou fazem estalar as folhas secas; ervas fortes tremem no alto das dunas ao vento de um mar ainda não poluído pelo fumo de nenhuma caldeira, o óleo de nenhum carburante, e sobre que nenhuma nave se aventurou ainda. Às vezes, ao largo, o jacto poderoso de uma baleia; o salto contente dos marsuínos como eu os vi, à frente de um barco carregado de mulheres, crianças, utensílios domésticos e cobertores apanhados ao acaso onde eu seguia com os meus em Setembro de 1914, de regresso à França não invadida, via Inglaterra; e a criança de onze anos sentia já confusamente que essa alegria animal pertencia a um mundo mais puro e mais divino do que aquele em que os homens fazem sofrer os homens.
Estamos a cair de novo na anedota humana; dominemo-nos; giremos com a Terra que anda como sempre inconsciente de si própria, belo planeta no céu. O Sol aquece a ténue crosta viva, faz sair os rebentos e fermentar os cadáveres, puxa do solo um vapor que a seguir dissipa. Depois, grandes bancos de bruma velam as cores, abafam os ruídos, recobrem as planuras da terra e as ondulações do mar com uma única e espessa toalha cinzenta. A chuva sucede-lhe, ressoando sobre biliões de folhas, bebida pela terra, sugada pelas raízes; o vento dobra as árvores novas, abate os troncos, varre tudo com um imenso rumor. Enfim, voltando de novo, o silêncio, a neve imóvel sem outra marca na sua superfície que não seja a dos cascos, das patas ou das garras, ou as estrelas que os pássaros gravam quando nela poisam. Nas noites de lua, movem-se claridades sem que seja preciso um poeta ou um pintor para as contemplar, sem que lá esteja um profeta para saber que um dia espécies de insectos com carapaças grosseiras se aventurarão lá no alto sobre a poeira dessa bola morta. E quando a luz da Lua não as oculta, as estrelas brilham, mais ou menos colocadas como estão hoje, mas não ainda ligadas entre elas por nós em quadrados, em polígonos, em triângulos imaginários, ainda não baptizadas com nomes de deuses e de monstros que não lhes dizem respeito.”

Marguerite Yourcenar
“Arquivos do Norte”
trad. De Helena Vaz da Silva e Alberto Vaz da Silva
Difel
Lisboa 1989

11 outubro 2004

polaróide mínima #001




António Franco Alexandre

Nasceu em Viseu em 17 de Junho de 1944. Estudou Matemática e Filosofia em Toulouse, França, e em Harvard nos EUA.

É professor de Filosofia na Universidade de Lisboa desde 1975 e publicou o seu primeiro livro, “Distância” em 1969.

Entre outros prémios literários, recebeu, em 1983, o Grande Prémio de Poesia do PEN Clube Português (“A Pequena Face”), o Prémio da Associação de Escritores Portugueses (“Quatro Caprichos”) e, em 2003, o Prémio D. Dinis (“Duende”).

Bibliografia:

1969 - “A distância”, Lisboa : D. Quixote, 72 p. ; 18 cm.
1974 - “Sem palavras nem coisas”, Lisboa : Iniciativas Editoriais, 61 p. ; 18 cm
1979 - “Os objectos principais”, Coimbra : Centelha, 46 p. ; 18 cm. - (Poesia nosso tempo ; 26)
1982 - “Visitação”, Porto : Gota de Água, 93 p. ; 20 cm
1983 - “A pequena face”, Lisboa : Assírio & Alvim, 62 p. ; 21 cm. - (Cadernos peninsulares. Literatura ; 22)
1987 - “As moradas 1 & 2”, Lisboa : Assírio & Alvim, 54 p. ; 21 cm. - (Cadernos peninsulares. Literatura ; 28)
1992 - “Oásis”, Lisboa : Assírio & Alvim, 59 p. ; 21 cm. - (Peninsulares. Literatura ; 41)
1996 - “Poemas”, Lisboa : Assírio & Alvim, 421 p. ; 21 cm. - (Documenta poética ; 32)
1999 - “Quatro caprichos”, Lisboa : Assírio & Alvim, 83 p. ; 21 cm. - (Peninsulares. Literatura ; 54)
2001 - “Uma fábula”, Lisboa : Assírio & Alvim, 73 p. ; 21 cm. - (Peninsulares. Literatura ; 66)
2002 - “Duende”, Lisboa : Assírio & Alvim, 60 p. ; 21 cm. - (Poesia inédita portuguesa )
2004 - “Aracne”, Lisboa : Assírio & Alvim, 47 p. ; 21 cm


Leitura
de “Quatro Caprichos”, Assírio & Alvim, Lisboa 1999



(…)
26
não me importa o amor que tenhas
e o amor não se dá nem tem nada para dar
as tuas mãos nas minhas são o tempo que volta
a mover sombras de nanquim, e nos teus lábios
é o sabor a tinta que me atrai.
Ebbro d’inchiostro é mais bonito, quando
ao calor de agosto as bocas se desatam
e as línguas mordem a brancura do linho.

27
venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.

28
engana-se o rapaz com as suas flechas
não conhece a razão o sexo e o tempo
fere no corpo o flanco mais austero
confunde-nos aos rios o amo e tejo
é direito e quadrado como um fuso
de criança cresceu e cego alveja
o olhar, e a boca que o olhar perdeu.

29
como me sinto livre
nestas ruas quadradas, infinitas arcadas
que a renascença não tocou!
Já não passam cavalos pela via Po
mas ainda te avisto, ufficiale tedesco,
nas ruas oficiais, limpas e sérias,
outro completamente, e solto
da névrose nationale. Aqui os ramos
das árvores são nítidos
contra o céu de púrpura molhada,
glorioso o anoitecer do rio!
O vinho refresca e arde no dia completo,
como não estar grato? Assim te conto
a minha vida, a sua, extática e vazia,
o fogo e a graça, aula de gaya scienza
gaio disonore.

30
já também desta imagem me separo
deste céu amplo onde nem os ossos me cabem
nem a sombra tão maior do que o corpo.
Vou-te deixar como um nome bárbaro
às portas de roma, uma coisa
vagamente antropológica para a
Antologia do Amor no Século XX
capítulo estranhezas & curiosidades.
Já tu, inocente, metes na mala
todo o possível, e algum impossível,
todas as nuvens que prometiam chuva,
todo o rumor por dentro do silêncio,
as colinas, o rio, a paisagem das janelas;
vou ficar triste e só como uma mão que seca.

31
ah a força do amor devia tornar
os corpos transparentes, até ao centro opaco
onde desejam. Se deste amor tão raro
te desejo, como pode
o duro deus negá-lo?
Este resto de vida que me cabe,
o veneno na taça, o corpo espesso,
como vivê-los sem a sombra de água
sem a língua de lume do teu sangue?

32
É tão cedo que somos como dois ladrões
ao sair de casa. Não sei dizer-lhe
adeus; é ele quem tem o sorriso e a força,
o recado para Marco, como lhe chama, que ficou
dormindo. E o avião parece
despenhar-se numa nuvem, num turbilhão de pássaros.

33
vai ser sublime
a dor que fica presa aos olhos,
o amor exacto que perdura.
Ensino-te maneiras, hebraico, filosofia,
a diferença que magoa e mata,
a indiferença que magoa e mata. Vai ser
uma amizade sem tabaco nem drogas,
quimicamente pura e sem sonetos.
Mais tarde receberei a coroa de linho
amoris causa, das tuas mãos decentes.
(…)
pags. 42 a 45



quatro estações #crónicas de outono



não respondo



não respondo aos dias sem alvoroço, aos dias de ninguém. com um ar absorto, deixo o incómodo que consome essas manhãs. tudo acontece num tempo hostil, cheio de movimentos, onde a chuva ácida caminha lado a lado com a minha presença, em sonhos vindos dum fruto, derramando uma luz inconsistente. o cansaço aliado às mil exaltações inquietas, numa aventura de voltar a colher flores, ver de novo os pássaros prometerem dar vida às árvores, que teimam morrer, na clara afirmação extrovertida de promessas de vida.

a lucidez do olhar atravessa a distância e espera o bater duma porta.


l.maltez

10 outubro 2004

quatro estações #crónicas de outono

exhibitions



pela hora da consulta, a mesma hora a bater nas outras horas. se me perguntam as horas, não sei. sei no entanto que nos consultamos em horários precisos, dizem que biológicos. e todos sabemos que inevitavelmente umas horas batem nas outras. eu não digo que se digam vergonhas umas às outras, digo antes que não sendo violentas vão matando, a torto e a direito. chegou a hora dele, disseram-me o outro dia. eu ainda acordado, perguntava-me por quem seria, e se seria. ele era portanto o morto. e ao morto diz-se que lhe chegou a hora. outros então perguntam-se as horas uns aos outros. compreendem... é normal que as horas batam umas nas outras e que a hora da consulta seja essa mesma hora em que a porta se abre. depois da porta, semicerrada, tal é a dor, vem a bata branca e os senhores musculados com vestuário algo rústico e absolutamente romântico, cheio de fivelas, de amor, de força. pela hora da consulta, já o tempo se tinha ido. permanecia uma cama, muitos géneros multi-raciais e instáveis, que entre barulhos estranhos e acessos de fúria lá me iam dizendo as horas, quando eu não perguntava. um dia visitaram-me homens distintos. sabem, depois de algumas muitas horas paradas com rotinas que se resguardavam a músculo e a grades, tendemos a pensar que realmente estamos no sítio certo e tudo o que nos apareceria naturalmente, como as gravatas esculpidas em pescoços pós-modernos, seguidos de fato, nada mais era do que gente distinta à hora da visita. foram dizendo que apreciavam bastante o meu trabalho e que pretendiam expôr-me a olhares entendidos ou até mesmo desentendidos, mas com bolsos recheados. fizeram-me também acreditar que assinando um papel, tudo iria mudar. assinei, não sei bem se o meu nome ou se uma hora que chegara, mas qualquer uma das duas não me deu de volta a percepção ou a liberdade de movimentos. diz quem sabe, e quem sabe são os senhores musculados, que era hora da minha injecção. nunca tinha levado nenhuma letal. ainda perguntei entredentes que horas eram aquelas, mas deve ter-se passado qualquer coisa com os meus ouvidos porque deixei de ouvir. aliás, não foi a única coisa que deixei de fazer.

nuno travanca


09 outubro 2004

quatro estações #crónicas de outono

a sedução de hildebrando


naquele tempo, media a infância pelo porte regular das
cumeadas, pela passada ostensiva do avô por entre o
tojo. falava-se baixo, muito devagar, o necessário.
então, o avô estacava. como se perscrutasse as razões
íntimas de deus ante o fulgor animal da paisagem, como
se decifrasse. passava-se dias nessa lentidão de
batedor, pelos sopés. mas nas noites quentes de
setembro, assentava uma manta vermelha sob a latada
breve e discreta para olharmos de frente o universo. o
avô era generoso, dava a ler o céu e a terra. enquanto
os carros desciam por el carmen como luzeiros
infligindo a noite. naquele tempo, subia-se pela
serra, às contracurvas, para ver o mar. eu nem sequer
sabia que todo aquele que reparte dá, quando rente ao
estio se galgava a umbria. então, o avô pagava por uma
aiola para abordarmos a pedra grande. a avó esperava
sobre uma manta vermelha, na praia, e passaram anos. o
avô andava já cansado. eu deixara de fazer contas
pelas cumeadas e as máquinas impuseram, a um e outro
flancos do dorso macio, uma lenta, obstinada voragem.
porque as máquinas são poços de força, são coisas
estranhas aos utensílios de deus. mas onde quer que
esteja, o avô ainda sabe, como ninguém, ler o céu, a
terra e o mar, a circunspecção rudimentar do universo.
e deixar tudo como estava.

j.p. francisco

quatro estações #crónicas de outono


expressão
não preciso de me exprimir. nada tenho a perguntar ou a afirmar. se fosse possível, parava. no veludo do silêncio, na aresta do tempo, parava. esperava na curva do desejo o crescer do deserto. e morria eternamente. como se uma estação cósmica me atravessasse. um outono cósmico. gostava que fosse um outono infinito. que mundos nascessem e se extinguissem no tempo de me cair uma folha. gostava de me queimar nessa luz muda e impossível. como um faraó. ou como a areia que o vento amarrou às pedras da história.

já me esqueci de todas as casas. estou na sombra que precede essa hipótese de loucura. só sei que há nós que se desatam e que à minha volta se soltam as linhas onde se escondem as paisagens.



gil t. sousa

quatro estações #crónicas de outono

outono



este ano
o outono e o medo
chegam mais cedo

vejo-o nos sinais
do meu cabelo



diogo m. silva

quatro estações #crónicas de outono

quatro estações” é uma rubrica que vai atravessar os solstícios. Textos curtos e poéticos que subirão as estações do ano, como um comboio lento que nos leva a voz.

Podes participar enviando-nos o teu texto para o e-mail indicado.

08 outubro 2004

polaróide mínima

polaróide mínima” é a primeira rubrica deste blogue. Com a regularidade possível, editará pequenas notas biobibliográficas de poetas.

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