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18 novembro 2023

italo calvino / as cidades e o céu

 




 

1.
 
Em Eudóxia, que se estende para cima e para baixo, com becos tortuosos, escadinhas, vielas e pardieiros, conserva-se um tapete em que se pode contemplar a verdadeira forma da cidade. À primeira vista nada se parece menos com Eudóxia do que o desenho do tapete, ordenado em figuras simétricas que repetem os seus motivos ao longo de linhas rectas e circulares, tecido de linhas de cores resplandecentes, em que se pode seguir ao longo de todo o bordado o alternar das suas tramas. Mas se nos detivermos a observá-lo com atenção, persuadimo-nos de cada lugar do tapete corresponde um lugar da cidade e que todas as coisas contidas na cidade estão compreendidas no desenho, dispostas de acordo com as suas verdadeiras relações, que escapam ao nosso olhar distraído pelo vaivém pelo bulício pelo tropel da multidão. Toda a confusão de Eudóxia, o zurrar das mulas, as manchas negras de fumo, o cheiro a peixe, é tudo o que aparece na perspectiva parcial que captamos; mas o tapete prova que há um ponto a partir do qual a cidade mostra as suas verdadeiras proporções, o esquema geométrico implícito em cada um dos seus ínfimos pormenores.
 
Perder-se em Eudóxia é fácil: mas quando nos concentramos a fixar o tapete reconhecemos a rua que procurávamos num fio creme ou anilado ou amaranto que através de uma longa volta nos faz entrar num recinto cor de púrpura que é o nosso verdadeiro ponto de chegada. Cada um dos habitantes de Eudóxia compara com a ordem imutável do tapete uma sua imagem da cidade, uma sua angústia, e cada um pode encontrar escondida no meio dos arabescos uma resposta, o relato da sua vida, as voltas do destino.
 
Sobre a relação misteriosa de dois objectos tão diferentes como o tapete e a cidade foi interrogado um oráculo. Um dos dois objectos – foi o responso, – tem a forma que os deuses deram ao céu estrelado e às órbitas em que giram os mundos; ou outro é um reflexo aproximado, como todas as obras humanas.
 
Os áugures já há muito tempo tinham a certeza de que o harmonioso desenho do tapete era de feitura divina; neste sentido foi interpretado o oráculo, sem deixar margem para controvérsias. Mas do mesmo modo se pode tirar a conclusão oposta: que o verdadeiro mapa do universo é a cidade de Eudóxia tal como é, uma mancha que alastra sem forma, com ruas todas em ziguezague, casas que se desmoronam uma sem cima das outras nos tufões, incêndios, gritos nas trevas.
 
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999


26 fevereiro 2022

italo calvino / as cidades invisíveis

 
 
Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
– Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta Kublai Kan.
– A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra – responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
 
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
 
Polo responde: - Sem pedras não há arco.
 
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




07 julho 2020

italo calvino / as cidades e os olhos. 3



Depois de ter caminhado sete dias através dos bosques, quem vai para Bauci não consegue vê-la e no entanto já lá chegou. São as finíssimas andas que se elevam do solo a grande distância umas das outras e se perdem acima das nuvens que sustêm a cidade. Sobe-se com escadotes. No chão os habitantes raramente se mostram: têm já tudo de que precisam lá em cima e preferem não descer. Nada da cidade toca o solo à excepção daquelas pernas compridíssimas de fenicóptero em que assenta e, nos dias luminosos, uma sombra perfurada e angulosa que se desenha na folhagem.

Três hipóteses se põem sobre os habitantes de Bauci: que odeiam a Terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contacto; que a amam tal como ela era antes deles e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de passa-la em resenha, folha a folha, pedra a pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a sua própria ausência.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999







10 abril 2020

italo calvino / as cidades e as trocas. 4



Em Ersília, para estabelecer as relações que governam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as esquinas das casas, brancos ou pretos ou cinzentos ou pretos e brancos, conforme assinalem relações de parentesco, permuta, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que já não se pode passar pelo meio deles, os habitantes vão-se embora: as casas são desmontadas; só restam os fios e os suportes dos fios.

Da vertente de um monte, acampados com as mobílias, os refugiados de Ersília vêem o intricado de fios estendidos e de postes que se ergue na planície. Isto é ainda a cidade de Ersília, e eles não são nada.

Reedificam Ersília noutro lugar. Tecem com os fios uma figura semelhante que desejariam mais complicada e ao mesmo tempo mais regular que a outra. Depois abandonam-na e levam ainda para mais longe tanto a si próprios como as suas casas.

Assim viajando no território de Ersília encontramos as ruínas das cidades abandonadas, sem as muralhas que não duram, sem as ossadas dos mortos que o vento faz rebolar: teias de relações intricadas que procuram uma forma.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999






28 abril 2017

Ítalo calvino / as cidades subtis. 4




A cidade de Sofrónia compõe-se de duas meias cidades. Numa iça a grande montanha russa de íngremes bossas, o carrossel com a sua auréola de correntes, a rode das gaiolas giratórias, o poço da morte com os motociclistas de cabeça para baixo, a cúpula do circo com o cacho dos trapézios a pender ao meio.  A outra meia cidade é de pedra e mármore e cimento, com o banco, os opiários, os prédios, o matadouro, a escola e tudo o resto. Uma das meias cidades está fixa, a outra é provisória e quando acaba o tempo da sua estadia despregam-na, desmontam-na e levam-na dali para fora, para a enxertar nos terrenos vagos de outra meia cidade.

Assim todos os anos chega o dia em que os operários destacam os frontões de mármore, deitam abaixo as paredes de pedra, os pilares de cimento, desmontam o ministério, o monumento, as docas, a refinaria de petróleo, o hospital, e carregam-nos em reboques de grandes camiões para seguirem de praça e praça o itinerário de todos os anos. Aqui fica a meia Sofrónia das barracas de tiro ao alvo e dos carrosséis, com o grito suspenso da naveta da montanha russa do avesso, e começa a contar quantos meses, quantos dias deverá aguardar antes eu retorne a caravana e recomece a vida inteira.



Ítalo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




05 novembro 2015

italo calvino / já não há cidades de província


Escusado será dizer que já não há cidades de província e que talvez até nunca tenha havido: todos os lugares comunicam instantaneamente, só se tem uma sensação de isolamento durante o trajecto de um lugar para outro, isto é quando não se está em lugar nenhum. Eu, justamente, encontro-me aqui sem ter um aqui nem um algures, reconhecível como um estranho pelos não estranhos pelo menos como os não estranhos são por mim reconhecidos e invejados. Sim, invejados. Observo de fora a vida de uma noite numa pequena cidade qualquer, e percebo que fui posto fora de todas as noites quaisquer durante sabe-se lá quanto tempo, e penso em milhares de cidades como esta, em centenas de milhares de locais iluminados onde a esta hora as pessoas deixam que tombe o escuro da noite, e não lhes passa pela cabeça nenhum dos pensamentos que tenho eu, se calhar têm outros que não são de maneira nenhuma invejáveis, mas neste momento estaria pronto a fazer a troca com qualquer uma delas.


italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço barreiros
publico
2002




28 fevereiro 2014

italo calvino / as cidades invisíveis

silvia como, via flickr
As cidades e os mortos. 4


O que torna Árgia diferente das outras cidades é que em vez de ar tem terra. As ruas estã completamente cobertas de terra, as salas cheias de argila até ao tecto, sobre as escadas assenta outra escada em negativo, por cima dos telhados das casas pairam camadas de terreno rochoso como céus com nuvens. Se os habitantes poderão andar pela cidade alargando os cunículos dos vermes e as fendas em que se insinuam as raízes, não o sabemos: a humidade quebra os corpos e deixa-lhes poucas forças; convém que fiquem quietos e deitados, de tão escura que é.
De Árgia, cá de cima, não se vê nada; há quem diga: «É lá em baixo» e só nos resta acreditar; os lugares são desertos. De noite, encostando o ouvido ao chão, às vezes ouve-se bater uma porta.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999


20 agosto 2011

italo calvino / as cidades invisíveis


 .
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As cidades ocultas. 2.

Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casas é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: — Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».





italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999
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25 novembro 2007

se numa noite de inverno um viajante




(…)

Quantas vezes,
ao notar que o meu passado começava a pesar-me,
que havia muita gente que pensava ter um crédito para comigo,
material e moralmente,
quantas vezes,
quando o passado me pesava de mais,
tivera a esperança de cortar tudo pela raiz:
mudar de ofício, de mulher, de cidade, de continente
— um continente a seguir ao outro até dar a volta completa —,
de costumes, de amigos, de negócios, de clientela.

Era um erro,
quando percebi era tarde.
Porque deste modo
não fiz senão acumular passados sobre passados
atrás das costas,
multiplicá-los,
aos passados,
e se uma vida me parecia já demasiado cheia
e ramificada e enredada para andar sempre com ela,
imagine-se muitas vidas,
cada uma com o seu passado
e com os passados das outras vidas
que continuam a ligar--se uns aos outros.

Não servia de nada dizer às vezes:
que alívio, ponho o conta-quilómetros a zero,
passo a esponja pelo quadro:
no dia a seguir ao da chegada a um país novo,
já este zero se tornara um número com tantos algarismos
que já não cabia no contador,
que ocupava o quadro de uma ponta à outra,
pessoas, lugares, simpatias, antipatias, passos em falso.

(…)






italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço
barreiros
(grafia adaptada)
publico
2002





20 outubro 2004

book zapping #002 italo calvino

As Cidades Invisíveis

As cidades e os mortos. 3


"Não há cidade mais propensa que Eusápia a gozar a vida e a fugir às ansiedades. E para que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram debaixo de terra uma cópia idêntica da sua cidade. Os cadáveres, secos de maneira que fique o esqueleto revestido de pele amarela, são levados lá para baixo para continuarem as ocupações de antes. Destas, são os momentos despreocupados que têm a preferência: a maior parte deles, colocam-nos sentados à volta de mesas postas, ou em posição de dança ou no gesto de tocar trompas. Mas também todos os comércios e ofícios da Eusápia dos vivos continuam ao trabalho debaixo de terra, ou pelo menos aqueles que os vivos realizaram com mais satisfação que enfado: o relojoeiro, no meio de todos os relógios parados da sua oficina, encosta uma orelha ressequida a um relógio de pêndulo sem corda; um barbeiro ensaboa com o pincel seco o osso das bochechas de um actor enquanto este estuda o papel fixando o guião com as órbitas vazias; uma rapariga de caveira sorridente ordenha uma carcaça de bezerra.
É claro que são os vivos que pedem para depois de mortos um destino diferente do que lhes calhou: a necrópole está cheia de caçadores de leões, meios-sopranos, banqueiros, violinistas, duquesas, cortesãs, generais, mais dos que contou a cidade viva.
A incumbência de levar lá para baixo os mortos e colocá-los no lugar desejado está outorgada a uma confraria de encapuçados. Mais ninguém tem acesso à Eusápia dos mortos e tudo o que se sabe lá de baixo sabe-se por eles.
Diz-se que a própria confraria existe entre os mortos e que não deixa de lhes dar uma ajuda; os encapuçados depois de mortos prosseguirão também o mesmo ofício na outra Eusápia; fazem crer que alguns deles já estão mortos e continuam a andar para cima e para baixo. E evidente que é muito ampla a autoridade desta congregação sobre a Eusápia dos vivos.
Dizem que sempre que descem encontram qualquer coisa mudada na Eusápia de baixo; os mortos trazem inovações à sua cidade; não muitas, mas certamente fruto de reflexão ponderada, e não de caprichos passageiros. De um ano para o outro, dizem, a Eusápia dos mortos não se reconhece. E os vivos, para não lhes ficarem atrás, querem fazer também tudo o que os encapuçados contam das novidades dos mortos. Assim a Eusápia dos vivos pôs-se a copiar a sua cópia subterrânea.
Dizem que isto não é só agora que acontece: na realidade teriam sido os mortos a construir a Eusápia de cima à semelhança da sua cidade. Dizem que nas duas cidades gémeas já não há maneira de saber quais são os vivos e quais os mortos."



Ítalo Calvino
“As Cidades Invisíveis”
Teorema
Lisboa 1999