09 outubro 2024

antonia pozzi / náufragos

 
 
 
Náufragos sobre os escolhos,
cada um conta
a si mesmo – a história de uma doce casa
perdida,
a si mesmo ouve
falar alto
sobre o deserto pranto
do mar –
 
Triste jardim abandonado, a alma
rodeia-se de selvagens sebes
de amores:
morrer é este
cobrir-se de silvas
nascidas em nós.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 
 



08 outubro 2024

pier paolo pasolini / fim da tempestade

  
 
Tomba a árvore ao vento,
as casas voltaram
aos seus lugares, após longa
viagem, e sonham de olhos abertos.
Mesta a alma se encaminha
para os sonhos; vago fica
o quarto: estou longe.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




07 outubro 2024

lawrence ferlinghetti / doce e variegada a cotovia-arbótrea

 
 
 
13
 
               doce e variegada a cotovia-arbórea
                              cantando ao portão que não se pode comprar
          e todavia quantas
                                     feras bravas
                                                   quanta criatura insana
               nas matas civilizadas
 
                                                  Hölderlin
                                                                      na sua torre de pedra
ou na casinha do amável carpinteiro
                                                     em Tübingen
               ou então Rimbaud
                                         com o seu «pesadelo e lógica»
          um sofisma da loucura
     Mas também nós temos exemplos mais recentes
                                      que também pressupuseram fatalmente
existir de facto
                  uma certa ligação directa entre
     linguagem e realidade
                                      palavra e mundo
          o que é hilariante
                                 caso me perguntem
     Também eu já bebi e vi
                                       a aranha
 
 
 
lawrence ferlinghetti
poemas de pictures of the gone world (1955)
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024

06 outubro 2024

leopoldo maría panero / diário do manicômio de mondragón

 



 

 

20 de abril
 
Entro no bar dos enfermos. Ele está repleto de folhas secas e amarelas que lembram pessoas velhas. Caminhando na direção do balcão, piso em algumas delas, que se parecem com álbuns ou lembrancinhas. O garçon apoia os cotovelos no balcão do bar, próximo à sua cabeça há uma Coca-Cola. Ele me conta de um crime que cometeu há muito, muito tempo. Então esfrega um pano de prato em sua testa e sussurra: oh, minha cabeça, minha pobre cabeça!
 
 
 
leopoldo maría panero
poemas do manicômio de mondragón
trad. ayrton a. badriah, pedro spigolon e tiago rendelli
editora urutau
2024
 
 



05 outubro 2024

miguel bonneville / livro do daniel

 



 
LXX.
 
é certo que há uma tristeza latente.
é certo que os corpos se despediram da paixão
e ali ficam –
suspensos.
 
pode não ser nada.
 
pode ser também que seja só o inverno.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024



04 outubro 2024

poesia / 20 anos de blogue!








 

billy collins / depois de ouvir que foras embora

 
 
Sentei-me um bocado num banco no parque.
Estava a chover levemente mas não se tratava de um filme
embora um casal passasse apressado,
a rapariga com o casaco dele pela cabeça,
e os jogadores de xadrez estivessem a reunir as peças
e a dispersar-se pelas ruas.
 
Não, era uma coisa diferente.
Podia ter jurado que os carvalhos grandes
tinham aparecido ali de um dia para o outro.
E que aquele pombo parecia
ter sido em tempos uma carta de jogar
que um ilusionista transformara com o movimento de um lenço.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023




03 outubro 2024

herberto helder / filhos não te são nada

 



 

 
filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas
que escreveste contra tudo, pais e filhos,
lugar e tempo,
filha é aquela que despes dos pés à cabeça,
perdendo os dedos nos nós que tem pelo cabelo abaixo,
e só pelo desejo que te traz de viver ou morrer dela,
desejo de ser o mesmo punho de cinza
deitado à espuma nos extremos da terra,
filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários
                                                       quando dormem,
essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas
onde hás-de ter o trabalho artesanal da morte:
o que de tudo reste pode ser testemunho distraído e mais
                                                                           nada,
tu sim vais tecendo e vendo tecer-se a tua dita atrás,
e essa atenção ilumina-te os nós dos dedos
e o cabelo todo aos nós por ela baixo
– a morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se
                                                                  apaga,
e tu olhas entre as coisas pequenas
e para onde olhas é essa parte alumiada toda
 
 
 
herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014




02 outubro 2024

sophia de mello breyner andresen / manhã de outono num palácio de sintra

 
 
 
 
Um brilho de azulejo e de folhagem
Povoa o palácio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado
 
Ele não quis ouvir o alaúde dos dias
Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mão rejeitou o sussurro das águas
 
Mas o pequeno palácio é nítido – sem nenhum fantasma –
Sua sombra é clara como a sombra de um palmar
No seu pátio canta um alvoroço de início
Em suas águas brilha a juventude do tempo
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 



01 outubro 2024

eugénio de andrade / ainda esta poeira sobre o coração

 



 

 
Ainda esta poeira sobre o coração
queria que chovesse sobre os ulmeiros
sair limpo desses olhos
da luz que se demora a polir os seixos
 
A corrosiva música das vogais que te devora
o silêncio do muro
às vezes quase azul
o verão afinal onde o ar é mais duro
 
 
 
eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976




30 setembro 2024

vasco graça moura / interior

 
 
 
o revólver de um ferro subcutâneo
o excelente amor intravenoso
o tribunal de oitava e nona instância
um louco vinte vezes furioso
 
teu belo corpo de maçãs ao colo
a escuridão relativa dos teus passos
o sumo de laranja em moderados goles
e de cigarros três ou quatro maços
 
o silêncio em repouso nas ampolas
onde convergem determinados sóis
o fantástico asseio das escovas
o bordado escondido dos lençóis
 
a pietá d’avignon ao fim da sombra
junto à ternura espessa das madeiras
o ângulo de gesso das paredes
onde já quase se pressente a noite
 
 
vasco graça moura
semana inglesa
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 



29 setembro 2024

miguel oliva teles / gaivotas


 

 
gaivotas
entrando dentro de casa
no seu canto memoriado
não porque haja no mar tempestade
mas porque é Porto
meu
afinal sempre meu
e contendo toda a minha idade.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021





 

28 setembro 2024

sílvia penas / nunca soube diferenciar o poema do mundo

 



 

 

NUNCA SOUBE DIFERENCIAR O POEMA do mundo
nem do meu corpo
mal distingo um cais ou o peso de um entardecer
da pele avultada que arredonda as unhas
mas posso, por exemplo, colocar a palavra ilha
no limite do esterno aonde só chega o ar
e a partir daí, talvez pronunciar povo
muitas vezes, a partir daí
a partir daí: a vida
 
 
e o resto céu
 
 
 
sílvia penas
o resto é céu
editora urutau
2021
 



27 setembro 2024

nuno júdice / partida



 
Todo o espaço é uma linha no centro do átomo
a que se reduz cada homem, no seu canto de solidão. O horizonte,
que nos parece imenso com o seu desenho matinal,
cabe no fundo de um copo, quando bebemos o primeiro
café, em que os sonhos da noite se desfazem com um sabor
amargo a dia de inverno. E as nuvens descem ao nível dos olhos,
para que as metamos no dedal de uma costura de limites,
e o seu contorno sirva de renda à almofada do tédio. Então,
o ser soltar-se-á desta caixa vazia. Levará com ele o
horizonte e as nuvens; e só se nos agarrarmos a um fio de névoa
poderemos seguir o seu caminho, até esse rebordo de
falésia que o corpo não transpõe. Para lá dele, é o mar
da essência, com as suas marés de inquietação e de
certeza, e o abismo de dúvida que se abre quando o
temporal nos ameaça. Para trás, ficou a existência,
a vida, as coisas concretas, como os sentimentos e
as palavras que formam e transformam o que somos. Porém,
nesta fronteira, que fazer dos caminhos que se nos abrem?
Como avançar, sem barco ou rumo, em direcção a que
porto? E que nos espera no regresso ao lugar de
onde ninguém deve partir se não tiver, no bolso, a carta
de chamada, o endereço, a voz acolhedora de um deus?
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



 

26 setembro 2024

paul éluard / dignidade simétrica bem partilhada

 
 
 
Dignidade simétrica bem partilhada
Entre a velhice das ruas
E a juventude das nuvens
Janelas fechadas mãos trémulas de claridade
Mãos como fontes
E a cabeça dominada.
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




25 setembro 2024

samuel beckett / worstward ho

 
 
3/
Aquilo levanta-se. O quê? Sim. Dizer que se levanta e fica de pé. Teve de se levantar por fim e ficar de pé. Dizer ossos. Ossos nenhuns mas dizer ossos. Dizer chão. Chão nenhum mas dizer chão. De modo a dizer dor. Mente nenhuma e haver dor? Dizer que sim que os ossos podem doer até não haver alternativa senão levantar. Dalgum modo levantar e ficar de pé. Ou melhor pior restos. Dizer restos de mente onde nenhuns para permitir a dor. Dor dos ossos até não haver alternativa senão levantar e ficar de pé. Dalgum modo levantar. Dalgum modo ficar d epé. Restos de mente onde nenhuns só para a dor poder haver. Aqui dos ossos. Outros exemplos se preciso for. De dor. Alívio de. Mudança de.
 
 
 
samuel beckett
últimos trabalhos de samuel beckett
tradução de miguel esteves cardoso
o independente / assírio & alvim
1996




24 setembro 2024

paul celan / cristal

 



 

 
Não busques nos meus lábios a tua boca,
nem diante do portão o forasteiro,
nem no olho a lágrima.
 
Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho,
sete corações mais fundo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. João barrento e y. k. Centeno
relógio d´água
2023








23 setembro 2024

mário cesariny / hoje, dia de todos os demónios

 
 
 
hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros
 
 
ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir
 
 
preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado
 
 
Sem Jeito Para o Negócio
 
 
 
mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
por perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



22 setembro 2024

joão cardoso vilhena / regresso aos mistérios

 



 

 
A memória de não ser amado
ascende no calor do verão
como escapar ao laço do outro?
 
As aves por exemplo será
que aprendem a sua forma alada
na angústia do embate na rede?
 
 
 
joão cardoso vilhena
um dia serei humano
editora urutau
2024
 




21 setembro 2024

carolina amaral / um colo ficou vazio

 



 

 

Um colo ficou vazio,
intacto na noite,
quando te foste em direção a outras noites,
e o silêncio ficou a arejar-me o peito
que já não tem o teu contorno,
 
que é só escândalo escuro.
 
 
 
carolina amaral
escândalo escuro
editora urutau
2024



20 setembro 2024

faiha abdulhadi / no meu país

 



 

 
Num país que não é o meu
O vento continua a soprar
As árvores dão frutos
O sol nasce
O rio corre
O mar ruge
A chuva cai
As pessoas continuam a rir
As pessoas continuam a errar
 
No meu país
O vento espera pela licença de soprar
O rio espera pelo direito de se derramar
O galo espera pela permissão de cantar
A chuva espera a regalia de chorar
 
No meu país
Só o coração bate sem autorização
Só a liberdade paira sem pré-aviso.
 
 
 
faiha abdulhadi
(palestina)
trad. regina guimarães
nervo/22
colectivo de poesia
setembro / dezembro 2024
 
 
 

 


19 setembro 2024

herberto helder / ode do desesperado

 
 
 
A morte está agora diante de mim
como a saúde diante do inválido,
como abandonar um quarto após a doença.
 
A morte está agora diante de mim
como o odor da mirra,
como sentar-se sob uma tenda num dia de vento.
 
A morte está agora diante de mim
como o perfume do lótus,
como sentar-se à beira da embriaguez.
 
A morte está agora diante de mim
como o fim da chuva,
como o regresso de um homem
que um dia partiu para além-mar.
 
A morte está agora diante de mim
como o instante em que o céu se torna puro,
como o desejo de um homem de rever a pátria
depois de longos, longos anos de cativeiro.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
o bebedor nocturno (versões)
poemas do antigo egipto
assírio & alvim
1996




18 setembro 2024

gastão cruz / on melancholy




 

 
A beleza protege-te destrói-te
A ela te submetes dela vives
Ama-la sobre tudo Queres vê-la
nos corpos e nos versos dela filhos
 
Para que te proteja tu proteges
a pele em que se expõe húmida e íntima
e se te acorda acordas e repetes
os símbolos perdidos da poesia
 
Vês os versos Protege as cicatrizes
e as glórias da pele entristecida
Por elas vives e por elas vive
a beleza que crias e te cria
 
 
 
gastão cruz
campânula
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009



 

17 setembro 2024

armando silva carvalho / armas brancas

 
 
 
4.
 
Ouve os pigmentos bíblicos. Acorda
nas entradas da recriação estilística.
Númen – a ave de ouro que lambuza o bico
nos altares altíssimos entorna sobre ti
a grossa baba.
Teus périplos felizes debaixo da canção
recebes da condensação polifónica.
Saem do fogo as figuras da escrita
raízes de metal absorvem-te os sintomas.
A febre sopra sobre a tua carne
o linho para sempre inexpressivo.
Debruças-te no rebordo inflamado
e as vozes irrompem do tecido aberto.
És um gume sonoro sob o céu da boca
e escutas os irmãos que gritam da Colina
o Pai está morto alcançámos a Mãe
na encosta do Texto.
Óperas vocalizos o lavar dos dentes
árvores que sobem de feridas doidas
com o sabor dos trinos e a guerras dos dissídios.
À beira de um riacho serás o ancião que se ocupa das
sílabas. Sinecura sem cura os brilhos mitigados
afagam-te os artelhos
e gerações cansadas pesam nos teus ombros.
 
 
 
armando silva carvalho
armas brancas 1977
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 



16 setembro 2024

josé carlos ary dos santos / nocturno

 



 

 
Como se fosses noite e me atirasses
Uma corda de músculos e rosas.
Como se fosses noite e me deixasses
Deslumbrado com todas as sombras,
Com todos os silêncios,
Com todos os passeios de mãos dadas com o
                                               [impossível,
Com todos os minutos,
Os lentos, os belos, os terríveis minutos
Que se escoam com a angústia nas escadas.
Como se fosses noite e acordasses
Todos os olhares furtivos aos bancos vazios,
Todos os passos hesitantes que ninguém segue
Mas que deixam na rua deserta,
Na cidade ausente,
O arabesco triunfal dum arcanjo que passa,
O rasto vitorioso dum condenado que dança,
Rindo dos deuses que o julgaram.
 
Como se fosses noite e arrastasses
O tule hierático e vermelho da cauda de todas as
                                                      [prostitutas
Que desafiam o mistério, roçagando,
A ganga de todos os operários
Que sofrem o mistério, fumando,
O cabeção ingénuo de todos os marujos
Que sonham o mistério, ondulando,
A renda esfarrapada, esvoaçante e preciosa de todos
                                                         [os invertidos
Que inventam o mistério, desesperando,
E a carne, o sangue,
O cheiro a suor e o sono de todos os vadios,
De todo os ladrões que dormem nas esquadras
E têm o mistério, ousando!
 
Ah! Se tu fosses noite e me atirasses
A um poço de membros e de raiva
Onde plantas carnívoras crescessem
E onde Deus – se existisse – talvez me abrisse os
                                                           [braços!
 
 
 
ary dos santos
a liturgia do sangue (1963)
ary, obra poética
edições avante!
2017




15 setembro 2024

judite canha fernandes / abril



 

 
já estivemos apaixonados
por tua longa cabeça de orquídea
e pelo banho de gozo
de tuas construções aéreas.
 
abril
acho que nos esquecemos
das ruas sem vigia
da tua coragem.
dos corpos loucos               invencíveis
de astronautas apavorados com a carta astral da libertação.
 
entre nossas mãos de areia,
o pequeno umbigo de mareantes
que por um breve dia                fez corar de vergonha
todas as espingardas do mundo.
 
 
 
judite canha fernandes
carta de amor ao pesadelo
editora urutau
2023
 



 

14 setembro 2024

wladimir vaz mourão / galo branco

 



 

 
existia,
depois do mar,
das cidades poluídas e dos morros verdes,
um homem que me disse que não morreria.
 
lembro,
através das lembranças
que não são feitas de dias e anos,
mas de constelações,
desse homem
com um boné manchado de suor
e os olhos pequenos atrás dos óculos de sol.
ele me falava de nomes raros,
do prazer de beber a cachaça envelhecida
e dos desenhos que fazia –
gostei da cachaça, todavia não dos traços.
 
hoje,
aqui onde o negro e o branco
só se mesclam no céu –
recebo a notícia que
o corpo desse homem
aduba as canas-de-açúcar.
 
 
(para e., amigo que desenhou o rótulo da cachaça galo branco)
 
 
 
wladimir vaz mourão
para quem está se afogando, crocodilo é tronco
urutau
2023
 



13 setembro 2024

juan vicente piqueras / lembrança de amanhã

 



 

Ficámos nas fotografias todos juntos
(vivos, mortos, tanto faz, sim, todos juntos)
com caras de turistas já cansados
de percorrer cidades invisíveis
à procura das mães. O turismo
é uma forma alegre de orfandade.
Pagar para sofrer, perder países.
 
Fartos de tirar fotografias, epitáfios
a cores, e felizes por nada compreendermos,
regressamos a casa, já era tempo,
carregados de recordações e desejos
de não voltar a sair,
de nos deixarmos de viagens e histórias,
de não termos de percorrer o mundo
perguntando ao mundo,
com um mapa na mão,
onde estamos, quem falta, aonde vamos.
 
O caos tem um calendário rigoroso
e o nada, festas para guardar.
 
Trouxe-te estas fotografias, vê-as.
 
São uma estranha lembrança da morte.
 
 
 
juan vicente piqueras
o quarto vazio
trad. manuel alberto valente
assírio & alvim
2024




12 setembro 2024

cesário verde / deslumbramentos

 




 
 
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
 
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
 
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
 
Ah! Como m’estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
 
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
 
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!
 
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana d´Áustria mostrava aos cortesãos.
 
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
 
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
 
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024
 



11 setembro 2024

william carlos williams / retrato proletário

 
 
 
Uma jovem alta sem chapéu
de avental
 
Parada na rua com o cabelo
puxado para trás
 
Um pé com a peúga tocando
a calçada
 
O sapato na mão. Examinando-o
atentamente
 
Retira a palmilha
à procura do prego
 
Que a magoava tanto
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
 



10 setembro 2024

wislawa szymborska / ao coração num domingo

 
 
 
Eu te agradeço, coração,
a diligência, porque te esfalfas
sem adulações, sem prémios,
numa inata urgência.
 
Tens setenta merecimentos por minuto.
Cada tua contracção
é como impulso a um barco
no mar alto
em rota de circum-navegação.
 
Eu te agradeço, coração,
por uma vez e outra ainda
me ires retirando de um todo
mesmo no sonho separada.
 
E zelas por que não sonhe um voo fundo
um voo tão fundo
que torne desnecessárias as asas.
 
Eu te agradeço, coração,
por mais uma vez ter acordado,
e por, embora domingo,
dia de descanso,
sob as costelas
ir o frenesim normal das sextas-feiras.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



09 setembro 2024

vergílio ferreira / de vez em quando

 
 
 
338 – De vez em quando descobre-se uma criação extraordinária nas artes e nas letras. Ou redescobre-se, que é o mesmo. Mas quantas obras ficaram desconhecidas para sempre. Quantos não escreveram obras-primas que ninguém leu ou se perderam. Ou as imaginaram mas nunca as realizaram para existirem. Ou morreram cedo, antes de as imaginarem. Há monumentos ao «soldado desconhecido». Mas fazer guerra não é o acto sublime do homem. Penso neles agora, e eles existem ao menos no meu pensamento. E aqui lhes ergo, na minha compaixão, o monumento que nunca ninguém se lembrou de lhes erguer.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004





08 setembro 2024

bernardo soares / no alto ermo dos montes naturais, quando chegamos,

 
 
L. do D.
 
No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
 
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
 
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
 
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que é diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Eolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
 
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
 
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.
 
14-4-1930
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

07 setembro 2024

albert camus / os antigos filósofos

 



 
Os antigos filósofos (naturalmente) pensavam muito mais do que liam. Eis porque se agarravam tão tenazmente ao concreto. A imprensa modificou as coisas. Lê-se mais do que se pensa. Não temos hoje filosofias mas apenas comentários. É o que diz Gilson ao afirmar que à idade dos filósofos que se ocupavam de filosofia sucedeu a idade dos professores de filosofia que se ocupam dos filósofos. Há nesta atitude ao mesmo tempo modéstia e impotência. E um pensador que começasse o seu livro por estas palavras. «Tomemos as coisas a partir dos seus princípios» ficaria exposto aos sorrisos. Chegou-se ao ponto em que um livro de filosofia que fosse hoje publicado e não se apoiasse em nenhuma autoridade, citação, comentários, etc., não seria tomado a sério. E no entanto…
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 4 janeiro 1942 / setembro 1945
trad. não disponível (antónio quadros?)
livros do brasil
1973



06 setembro 2024

antonia pozzi / precoce outono

 




 

 

O nevoeiro é de prata, apaga
as sombras dos pinheiros:
são maiores os jardins
ao amanhecer.
 
Uma folha do choupo secou,
morreu um ramo do castanheiro
no monte.
 
Medos que eles próprios desconhecem
dormindo no ar celeste:
este fim que regressa todos os anos,
que se renova todos os anos.
 
Como a última árvore do bosque,
o último homem já contou os mortos:
mas a sua morte apanha-o
ainda de surpresa.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



05 setembro 2024

ernesto sampaio / tão pouco

 



 

Sondar
a linguagem das trevas
dormir
na neve dos limites
atravessar
flores distraídas
 
Decifrar
numa pedra fria
letras a arder
entrar
em comboios remotos
no olho gigante
das estações do fim do inundo
 
Ser
um sinal
lançado ao acaso na noite
deixar
noutra boca
o gosto de uma ausência
 
Temos tão pouco tempo
tão pouco sonho
tão pouco
 
 
 
ernesto sampaio
poesia
saldos
vs editor
2024



04 setembro 2024

billy collins / cupido

 
 
 
Acabado de vir da chuva,
perguntaste-me
quanto era um côvado.
 
Pensei
que o assunto em questão
fosse amor.
 
Mas era uma arca
que estavas a construir,
pequena, só para ti.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023





03 setembro 2024

benjamin péret / a luz dentro do sol

 
 
A pequena nudez
aborrece-se no seu painço barco ruço
Deita-se como o mar
como os seus cabelos
Pede à chuva e à bonança
um ramalhete de serras aguçadas
e uma corda de evangelho
com altos círios caseiros
É duma juventude e duma beleza tal
que a fuligem grande marota
se abeira dela com as mãos de cisne
lavados pelo álcool limpo e pelos ventos
Mas a chuva sorri à bonança
que afaga o pêlo das montanhas
e ambos se entendem para afugentar os vales
que vivem de folhas e de poeira
de pedras e de paus
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023
 



02 setembro 2024

robert desnos / pedra a pedra

 
 
 
Pedra a pedra e pé a pé
E coração a coração e cabeça a cabeça
Os dias bons passaram
Fio a fio e folha a folha
E um a um e só a só
Os dias são bons e não passam
Grão a grão corpo a corpo
E flanco a flanco e mão a mão
Só alguém muito astuto ganhará a batalha
Pedra a grão e só a um
E de mão no coração e cabeça no coração
O amor é vasto como o mundo.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 



01 setembro 2024

heiner müller / problema de visão

 
 
 
O meu amigo o pintor diz-me Se eu pinto
É porque não quero mais ver Viva a cegueira
É com os meus olhos que eu pago
Por cada imagem A minha morte era a minha infância
A câmara escura A luz debaixo da porta
Esperar a erupção Terror branco
Como pôr a minha noite ao abrigo do dia
A morte a figura imposta a vida as figuras livres
Deixa-me claridade viver na tua sombra
Privado de mim nas minhas zonas patogénicas
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
oficina noctua
2021
 



31 agosto 2024

adonis / aqueles que…

 
 
 
Aqueles que degolados atrás de ti à tua volta em ti e para ti
     tornaram-se nuvens portadoras de chuvas
Chuva de que a terra se veste
Ararat orquestra para os continentes de música de canto de
     poesia e de dança de escultura e de pintura horizontes e do
     mais longínquo quem pergunta
Serás tu outro para gostar de dizer a esse outro:
Tu és eu.
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016



30 agosto 2024

amalia bautista / tenho à mostra…

 
 
Tenho à mostra as coisas que deveria
esconder, o mais íntimo e obscuro.
E não só me podem ver o esqueleto,
tenho à mostra também a alma inteira.
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
20212
 




29 agosto 2024

vincenzo cardarelli / gaivotas

 
 
 
Não sei onde as gaivotas fazem ninho,
onde encontram a paz.
Sou com elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez, como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade.
 
 
 
vincenzo cardarelli
dez poetas italianos contemporâneos
trad. de albano martins
dom quixote
1992
 



28 agosto 2024

nuno júdice / praia

 
 
 
De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
reflectisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a in-
dicar o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



 

27 agosto 2024

luiza neto jorge / 5 poemas para a noite invariável

 
 
II
 
Em cada braço uma herança de horizonte
desde o naufrágio de um eco
em cada árvore
trago-me no sol
à hora dos contornos
no sol a voz
é mais difícil
o tempo mais ausente
 
trago um filho
que parte o caule às estrelas
é louco e sofre
e parte o caule às estrelas
 
Tragicamente o sol
põe luz nos braços
A morte é uma feira aberta em lua
 
 
 
luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993
 




26 agosto 2024

antónio franco alexandre / é no meu corpo que morreste

 



 
é no meu corpo que morreste. agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormitam as
 
conhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;
 
os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam na
 
sossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no meu corpo que morreste, agora.
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983
 



25 agosto 2024

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos

 
 
 
6.
 
Um poema é uma coisa muito pouca
quando o termo de comparação é uma bicicleta, um chão de terra batida
e umas pernas que esqueceram a preguiça há duas ruas atrás.
 
Já é sabido o problema dos triângulos no que toca à antropologia.
O dois é o número dos mínimos agradáveis
condescendente com a exploração das pérolas e das flores nocturnas
que se vão encontrando por engano no peito dos pais
e nas mãos dos matemáticos.
 
Um poema é uma coisa muito pouca
para quem anda indeciso entre os números e a hermética,
os sonhos e os tremores, as palavras e o suicídio,
uma criança triste e a felicidade de uma espécie inteira.
 
 
 
leonor castro nunes
e  marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016