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23 dezembro 2023

juan luis panero / por vezes, muito raramente

 
 
Quando pouco na vida nos consola
do tempo, esse verdugo indiferente,
por vezes, muito raramente, na monotonia da noite,
entre repetidos sonhos, surge uma imagem
que reflecte o desejo que deixamos aí
e um rosto – a sua remota aparência – reconstrói
um intenso instantâneo da felicidade.
Quando tão misterioso privilégio nos chega,
acordar em seguida é viver o inferno:
não aquele jogo grotesco de chamas e demónios,
mas o demónio da luz de novo,
o fogo do primeiro cigarro.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003
 



25 janeiro 2023

juan luis panero / autobiografia

 
 
Uma casa vazia, outra demolida,
uma criança morta a quem contam histórias,
fantasmas despedidos que se desvanecem,
cinza e osso, pedras derrotadas.
Quartos alugados, repetidos espaços fugazes,
as marcas dos corpos nos lençóis,
uma pesada ressaca sem destino,
vozes que ninguém escuta, imagens de sonhos.
Desnecessárias páginas, gaivotas na janela,
mar ou deserto, brancos despojos,
sinais e rostos na parede da memória.
Papilas sujas de sol no México, firmes
os olhos redondos da caveira
contemplam passado, presente, futuro,
sombras tenazes, metáforas gastas.
Olho sem ver aquilo que já vi,
informe fumo que se esfuma,
invisível mortalha debaixo de nuvens fugazes.
Fumo na noite e no súbito nada.
 
 
 
juan luis panero
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





 

31 outubro 2022

juan luis panero / cerimónias de outono


 
Entre a pele e o osso ainda respira um tremor
– isso a que chamam alguns alma –
um obstinado estertor, inútil esforço de sobrevivência.
A vida e as suas ocultas raízes tenazes aferram-se
no húmido entardecer, de princípios de outono,
enquanto o distorcido rosto representa o seu estranho papel
e o coro, com a sua estúpida e crédula aparência,
aposta no mais além ou no mais aquém, que importa?
Apenas uma respiração, apenas uma respiração entrecortada,
entre a pele e o osso,
simboliza um final ou, simplesmente,
o nevoento sonho de outro sonho deserto.
E para quem tantas aparatosas expressões,
se todas as testemunhas, os olhos que, quase às escondidas,
se olham e se encontram, unicamente afirmam
o terror – tão real – do próprio cadáver delas?
Depois – fora do hospital inóspito –
a última luz do sol desenha o mar,
ocultando-se detrás do verde e da pedra do Monte Igueldo
e treme nas tuas mãos o pesado copo
que leva aos teus lábios o vidro funerário,
onde o álcool e o gelo desenham outra morte.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003

 



 

22 julho 2021

juan luis panero / dias sem rasto

 
 
Vi o mar pela manhã
contorcer-se e saltar
– verde negro e espumas ao vento –
com as primeiras chuvas de novembro.
No silêncio da minha casa
escuto o crepitar do fogo,
olho cinza e brasa, dança de chamas.
Sobre a lareira, alguns livros
recordam outros tempos, adornos
que dissimulam uma paixão perdida.
Nem grandeza nem miséria nem escolhidas palavras,
sozinho entre paredes brancas,
fantasma sozinho nesta aldeia de fantasmas.
Natureza, outono e nada acompanham-me
enquanto o frio se cola aos vidros,
deixa embaciadas de gelo as janelas.
O dia continua o seu discurso inútil
e sereno e perde-se na noite.
Ninguém me aproxima, nenhuma sombra, da minha vida,
também não estou a escrever o meu epitáfio,
falo com dor resignada acerca de dias sem rasto.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003

 







05 abril 2021

juan luis panero / um velho em veneza

 
 
Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Levi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver –,
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003

 




05 junho 2020

juan luis panero / lendas e metáforas



Sozinho, na penumbra de outra noite, neste quarto
onde a ténue claridade da lua
filtrando-se pelas cortinas,
ilumina a mancha grande e branca do teu cu.
Umas palavras que não pronuncio,
o cheiro morno e ácido do teu sexo,
remotas, retocadas imagens de outros corpos,
algo impreciso e íntimo
como uma conversa de bebedeira
e tudo o que me resta, lendas,
metáforas dos quarenta anos da minha vida.




juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003






23 janeiro 2020

juan luis panero / antes que chegue a noite


Antes que chegue a noite sobre o mar
e atire o vento da nortada
as minhas húmidas cinzas para o nada.
Antes que os gastos gestos se dissolvam,
tal como um sorriso que se transforma em esgar
ou os cansados espasmos de um amor extinto.
Antes, ainda, como este sol sobre as ilhas,
tenaz ponto de luz, cor intensa,
que minhas palavras desenhem meu fantasma,
salvo e perdido, na pura intensidade da vida.


juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003









09 maio 2019

juan luis panero / enigmas e despedidas




Um gato que mia na noite antes de morrer,
um gato que mia, o seu histérico adeus.
Que segredo, que estranho e banal mistério
a vida nos oculta nesse grito atroz?
Como olhar depois o seu lugar na sombra,
as unhas da morte, a pele da impotência?
Tantos anos a partilhar o destino
que é agora uma cesta vazia,
derrotados arranhões, uns olhos apagados,
o absurdo de tudo, enigmas e despedidas.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003






04 fevereiro 2019

juan luis panero / numa estação de madrugada




Recorda-os,
antes que o álcool os leve
ou a memória os maquilhe e confunda,
antes que sejam sonhos esquecidos,
as marcas de uma pele noutra pele pagadas.

Recorda-os,
além da bruma e da noite,
sob as luzes de néon fantasmagóricas,
diante das vias de metal silencioso,
sem comboios, sem despedidas nem destinos.

Recorda-os,
porque não te esperavam,
e nada te pediam, nem tu a eles também,
porque tudo era inútil, absurdo e desoportuno,
derrotada ternura e sombra da tua vida.

Recorda-os,
e beija outra vez aqueles lábios,
a sua alagada respiração, a língua surpreendida,
a sua frágil matéria húmida,
aqueles lábios que a tua boca imagina.

Recorda-os.


juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003








19 dezembro 2018

juan luis panero / lenha e cinza



Falamos de sórdida política ou de alguém que acaba de
          telefonar,
das mudanças do dia e das rajadas da nortada,
tudo sem importância ou demasiado importante,
por vezes aborrecido e sem dúvida íntimo, pouco grandiloquente.
Depois de tantos anos conhecermos as perguntas e as suas vagas
          respostas,
mas ainda assim surgem as palavras, que se esfumam
como o fumo dos cigarros ou da lareira.
Impassível como a lenha, indecifrável como a cinza,
assisto à tua remota presença – tão próxima –
e sei que os teus lábios e este copo vermelho
apenas anunciam, reflectem, um tempo de derrota.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003







26 abril 2017

juan luís panero / os abandonados da morte



Um, com o punho apoiado no queixo,
outro, com a cabeça enfiada nas mãos,
e o terceiro de olhos postos no vazio,
os três velhos dormitam à roda da mesa
na esplanada de um bar.
Aquecidos pelo café, aguardam, pacientes
ou impacientes, a desconhecida
que os visita em sonhos,
e acaricia as máscaras os seus rostos,
que o suor desenha e borra.
De súbito, o ruído de uma mota
e um casal jovem e enlaçado cruza a estrada,
depois o estrondo, os previsíveis sinais da morte,
que busca juventude e não corpos decrépitos.
Os três velhos entreolham-se e choram o seu abandono.



juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000





07 março 2014

juan luís panero / palavras e presságios



Voltar a uns versos de Kavafis, de Eliot,
como quem regressa a uma casa que foi nossa há anos.
Repetir as sílabas, iluminar os símbolos
como fechadas salas, janelas cheias de pó
que escondem um jardim perdido, árvores da morte.
Melancolia do regresso e medo do vazio,
madeira que range, esvoaçar de sombras
e, de repente, num quarto, perdida
como um velho copo ou um espelho embaciado,
encontrares a chave da tua vida.
Palavras que te avisaram: «Um monótono dia
segue-se a outro igualmente monótono»,
ou te advertiram: «Nascer, foder, morrer.
Isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo».
Palavras que a velhice e a noite me oferecem,
presságios que não entendi, anunciadas derrotas.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d'água
2003



09 outubro 2013

juan luís panero / música silenciosa da cor,



Música silenciosa da cor, rumor do pincel e da tela,
símbolo simples, segredo azul e cinzento.
O tempo passa, mas não fere, parece flutuar,
suave nos contornos, detido nas formas,
reflexos onde a realidade se sonha,
inventada luz, por isso mais intensa.
Milhares de olhos e um único olhar
para pintar esta garrafa, depurar o branco daquela cerâmica,
despir, transparente pele cálida, fulgor acariciado,
o vidro, a toalha, a madeira, as frágeis flores,
para sonhar diferente e única,
repetida e comum, esta matéria eterna,
as suas marcas e espuma, a sua pálida cinza.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d'água
2003



03 janeiro 2011

juan luís panero / como se fosse um poema de amor






Esta cidade tem hoje o teu rosto
e as gaivotas voam na orla dos teus olhos,
sob as nuvens cinzentas da tua fronte.
Ramos verdes de Abril agitam-se em teus lábios
e entre os teus dedos, brancas, surgem, surgem cúpulas
e torres.
Um castelo de sombras ergue-se em teu peito
e um avião passa lento, percorrendo o teu cabelo.
História do teu corpo, com ruas e com rostos
recantos de cansaço, paredes coloridas,
luz que vem e pára, atónita, a teus pés,
como um cão adormecido cujo nome ignoramos.
Esta cidade terá o teu rosto para sempre
e em sua cálida extensão conhecida,
pele a pele, até aos ossos, pedra a pedra nos anos,
o amor será distância e viverá sua morte.
Subitamente não há passado em sua língua
e em tua língua desmorona-se o presente
e tua língua arde e sua saliva queima
enquanto o rio enorme desagua
levando sob suas águas nossas vozes.
Esta cidade terá o teu nome para sempre,
escrevo-o como se fosse verdade,
como se minhas palavras fossem de pedra ou aço,
como se nada tivesse jamais de desmenti-las.
Numa noite qualquer, numa morna manhã
de uma primavera chuvosa e de tormentas,
com cinismo e cansaço, mas também um momento
com aquela ilusão que tiveram outrora
e um calor vencido que alimenta ainda sua pele,
frente ao esquecimento dois seres abraçaram a vida.
Com tristeza mais suave, oh que melancolia,
junto ao húmido parque suas duas sombras tremeram
«esta cidade terá o teu nome para sempre»
e ouviram-se distantes anunciar seu adeus.

(Lisboa 1969)






juan luís panero
antologia da poesia espanhola contemporânea
tradução de josé bento
assírio & alvim
1985







05 agosto 2010

juan luís panero / arte poética





A comprida, vagarosa língua da morte
lambeu a mão daquele que escreve,
lucidez ou loucura, ninguém sabe;
só restam palavras, palavras roídas.







juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000






13 junho 2007

espelho negro





Dois corpos que se estreitam e crescem
e penetram na noite de sua pele
e sexo, duas trevas entrelaçadas
que inventam na sombra a sua origem, os seus deuses,
que dão nome e rosto à solidão,
e desafiam a morte sabendo-se mortos
e derrotam a vida ao serem a sua presença.
Diante da vida sim, diante da morte,
Dois corpos impõem uma realidade aos gestos,
braços, músculos, à terra húmida,
vento de chamas, lago de cinzas.
Diante da vida sim, diante da morte,
dois corpos que porfiam exorcizam o tempo
construindo a eternidade que lhes é negada –
supõe eterno o sonho que os sonha.
É negro o espelho em que se replica a sua noite.








juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000








27 março 2007

estranho reino




um sonho desolado e preciso
real e irreal como a vida
e uma misteriosa encenação
inquietantes ilustrações de novela gótica
ou difusas prisões de Piranesi,
e por entre ruinosos arcos, derrotados muros,
os rostos de alguns desaparecidos



palavras imprecisas – sonho dentro do sonho –
e o olhar intenso de uma mulher
salva do terrível estrago dos anos.

a sensação de estar num inferno gelado
e, de repente, ao despertar a luz do sol,
inesperada e brilhante luz de janeiro


com toda essa matéria derrubada
e o repetido rumor do relógio da morte
construí este estranho reino:
espelhos rotos donde se reflecte o sol









juan luis panero
el pais, babelia
trad. gs
5 de janeiro de 2002


12 fevereiro 2006

Palavras em desalinho para uma despedida



Para onde foi o amor, anuncia a rádio,
com a Bette Davis, num cinema de subúrbio,
e também eu pergunto, inutilmente te pergunto,
para onde – se alguma vez, entre nós, realidade teve.
Indomada a solidão firma as suas raízes
e, canção que vem com o vento, irmana-nos no ódio.
Porque podem o cavalo e a serpente dois anos conviver
que nem por isso há-de ter neles morada a ternura,
a noite guardará os seus relances de insónia e destruição.
“Quand vous serez bien vieille”, escreveu Ronsard,
e Henry Cristophe suicidou-se com uma bala de prata,
formoso e absurdo gesto: palavras que só a Beleza selará.
Nunca a mesquinhez ou o engano serão vencidos pela idade,
nem prevalecerá a prata sobre o sangue
no desesperado estertor final.
Para onde foi o amor, oh tu, que sempre amaste,
donzela pura confiada às presas da fera.
E dias deixaste passar, e horas transparentes,
onde cada sílaba exumou o seu peso de verdade.
Ilusório domínio da tua vida,
não quiseste então, nem uma só vez o quiseste,
o tutano último das palavras,
o que nu e virgem se levantava entre elas.
Mais cómodo e alegre foi aprender aquilo que fácil se oferecia
com valor bastante para ser leiloado numa festa.
Triste é ser juiz e mais ainda ser verdugo.
Como um cego, agora, vagueio na memória
tacteio os frágeis muros onde a sombra derramaste,
esbarrando na tua lembrança, mesmo à beira do que já não existe,
infantil e torpe. Treme nas minhas mãos um punhal.
Para onde foi o amor.
Eis as palavras para uma despedida.





Juan Luís Panero
“Antes que chegue a noite”
Fenda, 2000






PS: até sempre!