11 julho 2025

pedro homem de mello / emigrante

  
 
Partiram todos. Fico desterrado
Na mesma Pátria que me viu nascer.
E foi tão longo e breve o meu reinado!
E foi tão longo e breve o meu prazer!
 
Os pés finco na Terra. E, do outro lado,
Vagueia o mar onde há-de sempre haver
Caminhos o moiro destronado
Pode ouvir fontes ao anoitecer…
 
Partiram todos. Mas de flor ao peito,
(Flor de alguém que, ao deixar a minha rua
Se lembrasse de mim naquele instante?)
 
Beijo-lhe, então, as pétalas, no jeito
De quem recolha lágrimas da Lua,
Neste país, neste país distante…
 
 
 
pedro homem de mello
fandangueiro (1971)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




10 julho 2025

nuno vidal / cegarrega

  
 
Helena no riso nervoso
no recuo d’aflição
declaravas o amor escuso.
Amêndoa amarga
frivolidades da razão
a ver se pegava.
 
Éramos escolha fraquinha,
uma carga de desgostos
lumes bruxuleantes
arredios, teimosos
a errarmos assim
sem fim, sem mais além.
 
Gostei de ti no minimercado
à fruta
ao alçapão do leite
à cata dos rótulos.
Depois, abóbora.
A tarde caiu do nono
fogo, fingido nosso.
 
Partidos de meias verdades
num adeus de soslaio
e caras de caso.
Um final felizinho
azul, lua conforme.
 
Agora para castigo
dormes no cúmulo das escadas
que por agora vagou
e eu vou aviado
de calores e a pé
para o fim do mundo.
Um lindo par
mas nem uma jarra.
 
Podes escolher-me casacos, calções.
Este amor vai durar
sem nunca ser o teu homem
nem camisas engomadas, ou assim.
 
 
 
nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






 

09 julho 2025

fernando luís sampaio / as vozes de marraquexe

  
 
Enquanto vai e não vem
A nossa sombra sob o palmar
Desfaz-se na poeira
Do atlas, o silêncio floresce
Na rosa do algodão poeirento,
O cantil gargareja à cintura.
 
A lâmina de aço brota
Das flâmulas tingidas de sangue,
Assim nos recebem à porta
Num gesto moçárabe e elegante,
A piscina murmura a leve frescura.
 
A tarde aquece as ramagens,
Um súbito vento açoita o açafrão
Que se desprende, a pedra infunde
O seu perfume raro e soturno sobre
As fachadas floridas ao anoitecer.
 
As mil vozes da cidade
Adormecem depois
Com a adaga do céu embainhada.
 
 
 
fernando luís sampaio
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012




 

08 julho 2025

ruy belo / imóvel viagem

  
 
Coisas gloriosas se têm dito de ti
árvore mais verde de quantas há na vida
praia prometida no fundo dos mais belos
dos menos intencionais dos mais
inexplorados olhos
E só para ti senhor não haver
lugar na cidade nem mãos com que te ungir
Servissem-te ao menos meus dias de espaço
não tenho nada já para morrer
abrir-te os braços é tudo o que faço
 
Passaste numa nuvem pelos costumados gestos
qual onda que recua roubaste-mos ao dia
aí teve princípio toda a salvação
 
Havia-me colinas prometidas
e lagos redondos como a minha sede de cervo
Mas reduzi-me à tua irregular geografia
ó foz deste rio irrequieto
Não há nenhuma outra paisagem
mais do que a tua cruz simplificada
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatória
assírio & alvim
2004




07 julho 2025

alexandre o'neill / o enforcado

  
 
No gesto suspensivo de um sobreiro
o enforcado.
 
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.
 
Dele sobra o cajado.
 
 
 
alexandre o´neill
a saca de orelhas (1979)
poesias completas
assírio & alvim
2000




 

06 julho 2025

álvaro de campos / há tanto tempo que não sou capaz

  
 
Há tanto tempo que não sou capaz
De escrever um poema extenso!
Há anos...
 
 
Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico
Em que a ideia e a forma,
Numa unidade de corpo com alma,
Unanimemente se moviam...
Perdi tudo que me fazia consciente
De uma certeza qualquer no meu ser...
Hoje o que me resta?
O sol que está sem que eu o chamasse...
O dia que me não custou esforço...
Uma brisa, com a festa de uma brisa
Que me dão uma consciência do ar...
E o egoísmo doméstico de não querer mais nada
Mas, ah!, minha Ode Triunfal ,
O teu movimento rectilíneo!
Ah, minha Ode Marítima
 
A tua estrutura geral em estrofe antiestrofe e epodo!
E os meus planos, então, os meus planos —
Esses é que eram as grandes odes.
E aquela a última a suprema a impossível!
 
9-8-1934
 
 
 
álvaro de campos
livro de versos,
fernando pessoa
estampa
1993




05 julho 2025

miguel serras pereira / rebentação

  
 
Pela rebentação dos anos vai o meu amor
Vai no coração branco dos astros e ao alto dos mastros
Recordo-o de repente desconhecido a caminho
porque é ele o navio que me embarca e esqueci
 
Chama-se ilha que habita as encruzilhadas da brisa
Repassa de infinito o silêncio da amada
É o sono do tempo é uma planície de trigo
e no seu voo quem sou ondula entre dois passos
 
Regressa mais que a morte ao rosto de ninguém
como se houvesse mar partiríamos os dois
E nos surpreenderia a noite e eu poderia ao partir
tocar no teu rosto que nunca toquei
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
o mar a bordo do último navio (1998)
barricada de livros
2022




 

04 julho 2025

sandra costa / manual da vida breve

  
 
2.
 
Por detrás da casa onde cresci,
havia uma velha ameixoeira.
 
Quando os pássaros começam
a cantar entre os telhados,
as ameixoeiras têm flores
muito juntas, muito brancas,
que nunca esqueço.
 
Consta que certas árvores
dão frutos.
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021
 


03 julho 2025

isabel de sá / ela escreveu-me duas palavras…

  
 
Ela escreveu-me duas palavras nem sei bem porquê. Nunca compreendeu não haver em mim qualquer aderência ao mundo. Considerando que o desejo é uma coisa da alma, terei que realizá-lo sem a presença do corpo.
 
Existe a tentação d eme deixar levar pela corrente da vida. Talvez, no fim dela, eu possa escrever uma frase que contenha todo o sentido, sabedoria e impulso que procurei dar-lhe.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
o nosso amor desfaz o trio
officium lectionis edições
2022
 


02 julho 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
IX Madrigal
 
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




01 julho 2025

fernando namora / aforismo

  
Entre o arco e o alvo
há a conivência do gesto
e da paixão.
Cada um de nós
é ele mesmo
e o seu adversário.
Por isso o amor
jamais se purga
do que nele é pressentido
ressentimento.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984
 



30 junho 2025

ana hatherly / 463 tisanas

  
 
212
 
Era uma vez um país de coveiros. Apertados uns contra os outros abriam as respectivas covas dos inimigos, correspondendo fielmente à sua mútua inimizade. As pás subiam e desciam brilhantes, aéreas, rítmicas, e a terra era atirada de uma cova para a outra, numa chuvada feericamente pesada. Nesse país todos estavam enlouquecidos pelo desejo de retribuir a retribuição. Tinham muito sangue português.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



29 junho 2025

josé saramago / história antiga

  

 
Compromissos, não tinha, mas faltei;
Não prestei juramento, mas traí:
Sentir-se réu alguém, não depende
Do juízo dos outros, mas de si.
 
É fácil companhia a consciência
Se mansamente aceita e concilia,
Difícil é calá-la quando somos
Mais retos afinal do que se cria.
 
Um dia tornarei às dores do mundo,
À luta onde talvez já não me esperam,
Antes, seja diferente outra mulher,
Companheira, não de ferros que me ferram.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018


28 junho 2025

diego doncel / para um lugar de ninguém

  
 
Não é necessário fugir, perder-se em qualquer sítio
debaixo de uma identidade que não é a minha?
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
e tenho os olhos cheios da minha própria cinza.
No écran do céu, por cima desta cidade abstracta,
acossadas pelas sirenes e pelo tráfico das auto-estradas
vi-as lá no alto a serem pasto do frio,
porventura símbolos de domínios alheios, mensagens de uma íntima irrealidade.
 
Certas ocasiões tinham forma de fronteira como folhas que voam
de um mistério para não sabemos onde, noutras eram o rosto
mutável dos sonhos ou pareciam planetas desertos,
grandes rochedos cósmicos, objectos esquecidos
nos limites de uma tragédia que estava prestes a chegar.
 
Soube que as suas metamorfoses me falavam
de qual era o destino dos homens
e decidi renuncia à sua beleza.
Debaixo da sua fragilidade, debaixo da sua enganadora doçura,
debaixo da sua aparência humilde e quase introvertida
são um lugar de ninguém, como o Génesis.
E o seu cheiro a terra húmida, as gotas
com que às vezes caíam nos meus gerânios
apenas assinalavam o caminho do pouco que sou, do meu abandono.
 
Por isso pergunto se não é preciso fugir.
ser outra vez um grão de areia na poeira de outro tempo.
Embora saiba que há-de levar-me a este mesmo lugar, embora ali me esperem
estas mesmas alamedas brilhantes e sonâmbulas como uma furgonete de distribuição,
estes mesmos pombos pensativos criados com a combustão
dos motores e com flocos achocolatados de cereais,
embora me esperem este mesmo vento e estas mesmas folhas secas
que se arrastam ao pé de dias igualmente escuros e fugazes.
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
sem consolo, como um homem perdido,
enquanto elas reflectiam pouco a pouco nos vidros
da minha casa as coisas que perdi, o meu desamparo.
Nuvens que eram tempo e que passavam mudas, nuvens
que eram restos de mim e cuja passagem não deixava qualquer marca
sobre a geografia desta cidade, só um punhado de sombras,
quase nada, perplexidades e desvarios no meu coração.
 
Vi-as descer à minha pele e encheram-me o rosto
de silêncio, do silêncio que vem dos bairros adormecidos,
do silêncio que vem do outro lado das coisas,
de um insuportável desdém.
Vi-as arrastar a gordura dos seus ventres
pelo que esta cidade oferece:
sexo, laboratórios de condutas do prazer,
fábricas de tratamento de resíduos afectivos, cruzamentos ferroviários
onde convergem diferentes nostalgias,
áreas de oração para estimular o consumo
e a obesidade sentimental.
 
Quando senti a ferrugem dos seus nervos
nos nervos dos meus olhos, quando senti que elas
eram eu próprio, só um punhado de cinza,
o tele-predicante do novo dia gritava de um estúdio de televisão:
– Sai daqui, desaparece, que ninguém te conheça.
Deixa atrás de ti os passos da tua fuga.
Corre, os países hão-de passar um após outro,
os diferentes estados de consciência.
Apenas necessitas da mecânica dos teus pulmões
para receberes umas migalhas de misericórdia. Por seres homem.
Por veres que tudo se acelera. A velocidade cardíaca,
os pensamentos, a elevada temperatura da tua espinha dorsal.
Toda a tua miséria. Os rumos do teu exílio à margem,
sempre à margem das coisas.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007




 

27 junho 2025

bertolt brecht / quem é o teu inimigo?

  
 
O que tem fome e te rouba
O último pedaço de pão chama-lo teu inimigo
Mas não saltas ao pescoço
Do teu ladrão que nunca teve fome.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976





26 junho 2025

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
 
VII
 
Este vapor em trânsito no tejo
é como branca gôndola descendo
as colinas de um rio;
de rosto ao vento, sou como o gondoleiro
na laguna serena a procurar o mar.
fez.me a vida este corpo de rã seca
a debitar no charco um som de flauta;
já nada nem ninguém me traz a sede
quando a chuva não cessa de crescer
e a neve cobre as pontes mais recentes.
Um negro louco nos dirige as tropas,
distribuindo ervas doces de chipre
pelos atarefados passageiros; e assim
eu, que ao sol cantei em minhas horas
esperando que o mundo me não leve a mal
embarco, quase noite, na praia ocidental.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



25 junho 2025

antónio dacosta / ó dia de sol e morte

 


 
3.
 
Ó dia de sol e morte
 
As flores eram venenosas
As moscas eram negras
O azul tenebroso
 
Tanta luz impiedosa
Sobre o luto da terra
 
 
 
antónio dacosta
saudade
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



24 junho 2025

eduardo pitta / meia dúzia de linhas

 
 
 
Meia dúzia de linhas
para me dizeres que tudo mudou.
Agora é outro mar
outra terra, outra gente.
 
Eu continuo por aqui.
Somos como pássaros que o horizonte recusasse.
Perdemos o azul
e perdemo-nos.
 
 
 
eduardo pitta
sílaba a sílaba
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 



23 junho 2025

joão miguel fernandes jorge / palavras dos remadores

 
 
Como se não restasse
nem sequer a ilha
desci à fundura do lago. Não vi
o barco nem os remadores.
Na distância, um ténue amarelo de enxofre.
Mesmo esse brilho
extinguiu-se.
Por um instante de desejo e medo
ouvi as suas vozes nítidas sobre
as águas paradas.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




22 junho 2025

joão habitualmente / a roda dos anos

 
 
 
Primeiro, tudo são carícias
e há grandes varandas arvoradas na noite
de lua morta
onde nos instalamos como reis
 
Ribeiros e fontes
e todos os sítios abrem para a tua porta
 
 
Depois abre-se o tempo em abismo
e erra-nos as contas
 
As noites, compridas e iguais,
São agora de cornos e pontas
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019




21 junho 2025

joão gesta / vende-se isco



 

 

Faz muito frio, como convém nestas crónicas.
Trémulo, desembacio o vidro da janela.
As crianças esfaqueiam-se alegremente no parque e fazem
Ronaldos na neve, enfeitando-lhes os olhos com varejeiras da
Petúlia, as melhores.
Apenas um pouco para a esquerda, vestidas de lilás, três caudas
de piano lêem Pessoa, estiraçadas na relva domingueira. Dois
telefones beijam-se na boca e discam números às escondidas
dos pais.
Lá mais ao longe, no meu firmamento adivinhado, o Douro
faz amor com a Ribeira, mas a pensar noutra coisa.
Nas margens, os pescadores mijam mais do que o habitual.
O TGV, impante, atravessa o rio sem barbatanas,
“Pena os sáveis não usarem collants”, pensei, arreliado.
 
 
 
joão gesta
uma falha nos dentes
porto editora
2019



 

20 junho 2025

carlos de oliveira / estátua

 
 
 
a Jane L.
 
 
Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982



19 junho 2025

yvette k. centeno / a hora

 



 

 

Acordo
dia a dia mais cedo.
Tenho o relógio ao lado
procuro ver a hora
mas não vejo.
Fecho os olhos
verei daqui a bocado,
não há pressa
a hora não fugirá
está ali dentro presa
 
29 de Setembro, 2021
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022
 



18 junho 2025

rui diniz / notas de viana e arredores

 
 
 
Li pouco, este Verão. O «Retrato em Movimento», Ruy
Belo, puros esboços de leitura entre as
longas e extenuantes deliberações poéticas em
papel que comprara em Tuy numa papelaria.
Escrevi, pois. E de regresso de Lisboa, viveria,
viveria, desintegraria em mim todas as
objecções cósmicas e regressaria de mãos
vazias a mim mesmo. Falta-me
uma qualidade: a paciência. Sou acima
de tudo um ser inquieto perante a
ideia da morte. Estou incapaz de criar.
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




17 junho 2025

armando silva carvalho / sempre passei a vida entre o poema

 
 
 
SEMPRE passei a vida entre o poema
e a vida entre o amor
e a fábula.
E sempre que colhia
esses espaços de luz precipitada
eu via a voz de deus
alevantada
entre mim e o nada que sorria.
 
 
 
armando silva carvalho
canis dei (1995)
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007






 

16 junho 2025

daniel faria / explicação do alpendre

 


 
 
Porque em seu peito nunca tive aberta
A veia exacta para lhe ser sangue
 
 
 
daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003






 

15 junho 2025

adolfo luxúria canibal / o jardim


 

  
 
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho Trepando
O perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos Noutra encarnação
Os meus amigos traziam as bebidas
E a jovialidade
O jardim enchia-se de gente De beijos
Pelos cantos Sôfregos de desejo
Inventávamos planos de rebelião Sonhos de transmutação
Passávamos horas a inventar Entre duas carícias
Surgiam ideias puras e inocentes
Como a nossa vontade de tudo abarcar
Era um frenesim constante
Faz-me pena agora olhar para ele
Para as suas sebes abandonadas De ramos
Retorcidos jaz tombada a grande epícea
E uma enorme cratera
Substitui os belos canteiros de outrora
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
Epístolas da guerra (1999)
porto editora
2019





 

14 junho 2025

irene lisboa / ir, vir

 
 
 
Ir, vir…
Ir. Manhã, ar fresco, paisagem nova.
Vir. Tarde. hora dos poetas, dos que não can-
tam e passam pelas coisas apenas gozando, sur-
preendidos e ternos.
 
Se em cada lugar da terra eu perdesse a minha
humana essência, aquilo que me iguala ao que é
e ao que foi!
Nesta hora divina, nesta formosa tarde como ser?
Que me tentava?
Não sei.
Terra, luz, ar, amenidade indizível!
 
 
 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991
 




13 junho 2025

antonia pozzi / fogueiras de santo antónio

 
 
 
Labaredas na noite do meu nome
sinto arderem à margem
de um mar escuro –
e ao longo dos portos acenderem-se piras
de coisas velhas,
de algas e barcos
naufragados.
 
E em mim nada que possa
ser queimado,
mas cada hora da minha vida
ainda – com o seu peso indestrutível
presente –
no coração extinto da noite
me segue.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



12 junho 2025

rui caeiro / país natal

 
 
 
País de cegos, onde não falta nem a mansidão nem a quietude – nem a resignação. Onde os zarolhos que há querem ser reis – a fim de, segundo dizem, dar razão a um velho provérbio. Tudo, na realidade, em ordem a mandar e até, quando calha, bater no ceguinho. São, pois, menos simpáticos os zarolhos – além do mais, mexem-se muito. País algo cinzento, cumpridor dos provérbios e das normas. Para nós, grande multidão dos cegos, uma consolação porém: nunca os zarolhos, naturais detentores do poder, hão-de conhecer os supremos prazeres do país em que vivem.
 
Prazeres de gente pobre, prazeres simples, comezinhos – mas supremos:
  – o afago de uma mão, de uma voz, de um olhar…
  – o contacto da mão de um cego que nos ajuda a atravessar a rua…
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
livro de afectos
maldoror
2019




11 junho 2025

maria teresa horta / domínio

 
 
Não deixo que as coisas
me dominem
nem que a vasta secura
me adormeça
 
nem que a vela
me apague
nos sentidos
a febre a que a boca não se entrega
 
Não deixo nem que deixes
tuas armas
que a piscina de meu ventre
se entorpeça
 
nem que a vara
se quebre na saudade
nadando contra aquilo
que me vença
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009




 

10 junho 2025

mário dionísio / caminho



 

 
Depois que os levaram
as casas ficaram sem ninguém.
e o barulho das portas batendo nos umbrais
e o escaqueirar dos vidros das janelas completamente abertas
confundiram-se com o sinistro uivar do vento
e o choro convulsivo das crianças sozinhas.
Depois que os levaram
os olhos saltaram das órbitas, cansados de chorar,
as searas morreram queimadas porque ninguém as ceifou,
as máquinas pararam,
o ferro das charruas cobriu-se de ferrugem.
 
As cidades ficaram desertas.
 
Depois que os levaram
a miséria passou em todas as almas
e vincou nos rostos uma profunda ruga de tristeza.
As mulheres prostituíram-se
porque eles vieram e não tiveram quem os impedisse
de mudar as oficinas em casas de deboche.
Depois que os levaram
tudo mudou.
Sem luz, perdemo-nos no meio do deserto.
Estendemos os braços magros e não achámos nada.
Olhámos e não vimos.
Gritámos e nem ouvimos sequer o nosso eco.
Depois que os levaram tudo estava perdido.
 
Mas uma estrela brilhou na insondável noite.
Um grito sublime chicoteou o silêncio.
Um sopro de esperança cimentou o solo.
Um elo indestrutível juntou as nossas dores.
 
E o grito fez-nos estremecer até à medula
a estrela encharcou de claridade um novíssimo caminho.
Os olhos voltaram às órbitas.
As searas renasceram.
As máquinas tornaram a girar.
O ferro das charruas sacudiu a ferrugem.
 
Agora já não andamos como doidos a gritar no meio das trevas
e as nossas botas não ficam enterradas na areia do deserto.
Agora vemos um caminho.
E este não tem nada de igual aos que nos tinham mostrado.
Este é o nosso, o novo, o único caminho por onde podemos avançar,
o único
por onde voltarão aqueles que nos levaram.
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938
imprensa nacional-casa da moeda
2016




 

09 junho 2025

eduarda chiote / a incerta sujeição da arte

 
 
 
Puderas ter criado
mares
em que o contacto da luz
não magoasse
quer a leveza do fogo
quer a respiração funda
da água
e de modo a que a imolação
do corpo de ambos
por igual repartisse a
natureza primordial
da arte
e nenhuma lacuna seria
imperfeita,
criança indesejada: pois tudo seria
só,
silêncio,
majestade.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001
 



08 junho 2025

egito gonçalves / deitado sob as nuvens

 
 
 
Deitado sob as nuvens
recebo nos olhos o esplendor
que sombreia os escombros. Olho-as
como símbolos, vêm do meio-dia
solar que afastei, de fímbria
branca, ventres
de água, túrgidos. Levantarão
ainda outros poemas quando já não existam
(não existem agora?) longe daqui
num outro cérebro, num olhar pousado
nas sólidas ruínas, nos destroços
de que o inverno se nutre – por isso
afinal vos amo, nuvens, onde estais…
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020
 



07 junho 2025

hans-ulrich treichel / seja o que for

 
 
Bebem cerveja
ou vinho ou seja o que for
que deles vai restar,
os bolinhos moles, a pele dura,
aperitivos e amendoins,
ânimo nobre, amor aos animais,
as calças vinco a vinco, prega a prega,
o pescoço à navalha, manchas de ferrugem
debaixo dos braços, ou
manchas de sangue, ou
seja o que for que deles vai restar,
ou nós ou vocês, ou todos ou nenhum,
o veado na bruma,
a campa da criança,
a pancadinha seca na almofada,
haverá sujidade e
fome, apesar da
fartura e de todo
o sabonete.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




 

06 junho 2025

ernesto sampaio / somos dos rios

 
 
 
Somos dois rios
que se afastam em silêncio
e os anos acumulam
de um pó essencial
antes de desaparecer
para nunca mais
 
Já se perde
na corrente fortíssima
a fixidez dos teus olhos
 
Até ao fim dos anos
os teus olhos
fixarão
 
 
 
ernesto sampaio
dois rios
poesia
vs editor
2024




05 junho 2025

andrea cohen / entrada

 
 
 
Ficou à porta
muito tempo
 
como se quisesse
entrar.
 
como se setas
invisíveis alojadas
 
no interior lho
não permitissem.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




04 junho 2025

diana v. almeida / firenze

 



 

 
Assaltam-me os anjos
renascentistas súbitos
infantes zelosos lúcidos
pálidos andróginos esguios
fina cabeleira em cascata
asa em riste pena matizada
descem em esquadria
dos altares laterais
aureo
lado
s.
 
 
 
diana v. almeida
cosmos e casas
editora urutau
2021







03 junho 2025

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
VIII
 
Amor é fogo? ou é candente lágrima?
Pois eu naufrago em um mar de labaredas
que lambem o sangue e a flor da pele acendem
quando o rubor me vem à tona d’água.
 
E como arde, ai, como arde, Amor,
quando a ferida dói porque se sente,
e o mover dos meus olhos sob a casca
vê muito vem o que devia não ver.
 
Solitária andarei e descontente?
Mas como posso andar, Amor, com as gentes,
se teus braços de ausência é que me estreitam?
 
Pois se dois corpos só acharão lugar
no mesmo exacto e mensurado espaço,
em solidão tão larga eu já não caibo.
 
São Paulo, 1984
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



02 junho 2025

cesário verde / num bairro moderno

 
 
 
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estacam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
 
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
 
Como é saudável ter o seu aconchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde eu agora quase sempre chego
Com as tonturas d’uma apoplexia.
 
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo d’uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
 
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
 
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces d’uns alperces.
 
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
 
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
 
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
 
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum belo cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d’uvas - os rosários d’olhos.
 
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d’alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
 
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
 
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»
 
Eu acerquei-me d’ela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
 
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam d’um excesso de virtude
Ou d’uma digestão desconhecida.
 
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
 
Um pequerrucho rega a trepadeira
D’uma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
 
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
 
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
D’uma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
 
E, como grossas pernas d’um gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024
 



01 junho 2025

eugénio de andrade / aos inimigos

 
 
 
Falta ainda trazer a estas páginas, nem que seja obliquamente, esses que engordam com o ódio. Vêm ao anoitecer, no rastro lento da melancolia, a enxúndia a reluzir de satisfação. Alguns amaram-me tanto quando eram jovens que seria mesquinho negar-lhes agora um copo de vinho ou um lugar ao lume para aquecerem as mãos. Novembro já chegou, e o frio desculpa de certo modo a promiscuidade.
 
20.3.86
 
 
 
eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000



 

31 maio 2025

italo calvino / as cidades e a memória

 
 
1.
 
Partindo-se dali e andando três dias para Levante o homem encontra-se em Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. Todas estas belezas o viajante já as conhece por tê-las visto também noutras cidades. Mas a propriedade desta é que quem lá chegar numa noite de Setembro, quando os dias já diminuem e as lâmpadas multicores se acendem todas ao mesmo tempo por cima das portas das lojas de peixe frito, e de um terraço uma voz de mulher grita: uh!, lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




30 maio 2025

primo levi / canto dos mortos em vão

 
 
 
Sentai-vos e negociai
À vossa vontade, velhas raposas grisalhas.
Iremos amuralhar-vos num palácio esplêndido
Com comida, vinho, boas camas e bom fogo.
Para que possais negociar e chegar a bom termo sobre
A vida dos nossos filhos e dos vossos.
Que toda a sabedoria da criação
Convirja para bendizer as vossas mentes
E vos guie no labirinto.
Mas lá fora ao frio, nós iremos esperar-vos,
O exército dos mortos em vão,
Nós os de Marne e de Montecassino,
De Treblinka, de Dresden e de Hiroshima:
E estarão connosco
Os leprosos e os tracomatosos,
Os desaparecidos de Buenos Aires,
Os mortos do Cambodja e os moribundos da Etiópia,
Os pactuadores de Praga,
Os exangues de Cálcuta,
Os inocentes massacrados em Bolonha.
Ai de vós se saís sem acordo:
Sereis cingidos ao nosso abraço.
Somos invencíveis porque somos os vencidos.
Invulneráveis porque já mortos:
Nós rimo-nos dos vossos mísseis.
Sentai-vos e negociai
Até que se vos seque a língua:
Se a ruína e a vergonha durarem
Iremos afogar-vos na nossa podridão.
 
14 de Janeiro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



29 maio 2025

pier paolo pasolini / à bandeira vermelha

 
 
 
 
Para quem só conhece a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
tu deves realmente existir para que ele exista:
quem se cobria de crostas cobre-se de chagas,
o trabalhador torna-se mendigo,
o napolitano calabrês, o calabrês africano,
o analfabeto um búfalo ou um cão.
Quem mal conhecia a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
está prestes a deixar de te conhecer, até com
                                                  os sentidos:
tu que já te gabas de tantas glórias burguesas
                                                  e operárias,
torna-te de novo trapo, e que o mais pobre te
                                                     desfralde.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




28 maio 2025

cesare pavese / eles estiveram lá

 
 
 
Lua terna e geada nos campos ao dealbar do dia
assassinam o trigo.
 
                            No plaino abandonado
aqui e ali putrefacto (é preciso tempo
para que o sol e a chuva sepultem os mortos),
era mesmo assim um prazer acordar e ver
se também a geada os cobria. A lua
inundava tudo, e alguns pensavam na manhã
em que a erva brotaria ainda mais verde.
 
Aos aldeãos que olham choram-lhes os olhos.
Este ano, quando o sol voltar, se voltar,
Só haverá folhinhas queimadas para segar.
Lua tenebrosa – só sabe comer as brumas,
e, em noites claras, as geadas são como dentada de serpente
que da verdura faz tanto estrume. Eles estrumaram
a terra; agora também o trigo ficará feito em estrume,
e não vale a pena olhar, e estará tudo ardido,
putrefacto. É uma manhã que deita abaixo um homem,
só de acordar e percorrer com os vivos
todos aqueles campos.
 
                                 Verão despontar mais tarde
algum tímido verdor na planura deserta,
sobre o túmulo do trigo, e terão de lutar
para o reduzir também a estrume pelo fogo.
Porque o sol e a chuva protegem só as ervas daninhas
e a geada, depois de queimar o trigo, não volta mais.
 
 
 
cesare pavese
antepassados
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997




 

27 maio 2025

fiama hasse pais brandão / do muro

 
 
 
Este muro avança com a estrada,
caminha para o cume e para o vale.
Se eu parasse junto dele, dir-me-ia:
aceito e recuso o movimento,
vou e não vou por vários horizontes,
sou e não sou infindamente.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




26 maio 2025

josé agostinho baptista / encontro

 



 

 
está sentado
ligeiramente inclinado para sul
e o olhar detém-se ao alto        à direita
nas amarelas planícies de van gogh       pintor
que muito o impressionara na sua agitada juventude.
 
continua sentado
ligeiramente inclinado para sul
adormecido nos pomares abundantes nas chuvas que
desde o outono passado humedecem a ilha
o rosto calmo
de uma serenidade permeável e consentida
e dorme ainda.
 
 
 
josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000
 



25 maio 2025

alexandre o'neill / amigos pensados: manuel

 
 
 
Manuel sai de amador às quatro para a pesca,
passa-me à porta, faz com a tosse o ponto e vírgula,
escarra como se fosse no país.
 
Com duzentos anzóis há quase sempre um peixe,
que nós conversamos quando, regressado,
Manuel abre a oficina e recomeça a mesa
que talvez acabe para mim.
 
 
 
alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000
 




24 maio 2025

fernando assis pacheco / cuidar dos vivos

 
 
 
Como as ordens de Sebastião José
de Carvalho e Melo no terramoto
«cuidar dos vivos, enterrar os mortos»,
digo deste amor que tive
pior que terra sacudindo-se,
 
em que morri, matei, enchi a noite
de gemidos agudos sob as pedras
(onde era a rua, gente, Alfama, pombos),
Eugénio dos Santos para riscar Lisboa.
 
Porque é preciso agora cuidar dos vivos,
pôr os mortos no seu lugar:
que não tomem o lugar dos vivos.
Abrir as janelas ao sol de Maio,
beber o sol, beber Maio e a vida.
 
Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se
o rio Teo por Lisboa dentro.
Ó amor sepultei-te, quero um amor
mais firme do que a terra, mais veloz que o vento
uma cidade nova nos meus olhos.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019




 

23 maio 2025

fernando luís sampaio / mínimo de existência



 
I
 
Chega a primavera com as folhas
Desavindas, o céu desatrelado invade
Trincheiras e monturos, aqui tu não vens,
Fechas os olhos para impedir
O peso do horizonte, o odor
Dos corpos que já não cantam,
Das mãos que pacíficas ainda
Trazem um pequeno lume, mas tu
Não vês, são pedaços reluzentes,
Montículos de mica sem boca e rosto.
Quando tudo terminar, mas nada termina
De verdade, sob
O silêncio destas ruas ficarão
Os nossos sonhos – e não voltes a falar
Do mar, nem das nuvens harmoniosas,
Porque a morte não é um vago vocábulo.
 
 
II
 
O teu corpo assim-sim
É uma galáxia compacta, sem saída
Ou entrada, uma espécie
De paisagem do que ficou,
Do que vai ficando
Do clamor das matinas.
És inteiro em partes iguais,
Como quem parte e reparte
E perde a melhor parte, e remendas
O erro com outro erro,
O teu mínimo de existência.
 
 
III
 
O que resta dos dias pardos
Vem bater à tua porta,
Qual mão espectral do destino.
A copiosa escuridão mete-se
A caminho, importuna a clareza do verso.
 
Sob o detrito da língua
Faísca o fio da espada.
 
 
IV
 
Um coração fechado só abre feridas.
Afinal do que falas?
O que dizes p’lo que fica
Por dizer?
Éramos muito jovens e a vida
Ainda nos desejava
Com muitas madrugadas e
A floração do desejo nas crinas
Marítimas – uma constelação inteira
A colapsar sobre nós.
Nenhuma memória é residência fiável.
Afinal, do que falas então?
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/24
colectivo de poesia
maio/agosto 2025
 



 

22 maio 2025

victor oliveira mateus / monólogo do estrangeiro

 
 
 
de milagres nada sei
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara
 
de milagres sei apenas o que li
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo
 
de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos
 
abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




21 maio 2025

maria f. roldão / imunidade




 

 
Salto aquela parte em que é
preciso lavar as mãos antes
 
do acto. Entro directamente
na parte das bactérias em
 
que o sujo é belo e a vida
não admite lavagens.
 
 
 
maria f. roldão
a cadeira de mogno
edição do autor
2025