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05 setembro 2024

ernesto sampaio / tão pouco

 



 

Sondar
a linguagem das trevas
dormir
na neve dos limites
atravessar
flores distraídas
 
Decifrar
numa pedra fria
letras a arder
entrar
em comboios remotos
no olho gigante
das estações do fim do inundo
 
Ser
um sinal
lançado ao acaso na noite
deixar
noutra boca
o gosto de uma ausência
 
Temos tão pouco tempo
tão pouco sonho
tão pouco
 
 
 
ernesto sampaio
poesia
saldos
vs editor
2024



13 fevereiro 2024

ernesto sampaio / perda




 
No poroso branco das lajes
da limpa escada de pedra
sobre o abismo feliz
das claridades eternas
cada passo
perde
lentamente
a esperança de ser o último
 
A obra sem peso
da minha paciência
corre sobre a terra
constrói o silêncio
onde tu te anuncias
 
No reflexo das horas
como uma imagem de vidro
onde só vejo
a luz do vento
eu sei que a cor do mundo
está perdida
 
 
 
ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999







 

28 maio 2022

ernesto sampaio / famílias russas

 
 
A neve cobre com um velho xaile
a nova ideia do belo
das famílias russas
 
Electrificadas
perderam-se da aldeia
aos setenta anos
 
De joelhos no ar
volvem os olhos para o céu
discutida panaceia farmacológica
 
Com um apetite imperturbável
avançam iluminadas
para a noite sem limites
 
 
 
ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




14 janeiro 2022

ernesto sampaio / velhos medos

 
 
O tijolo indestrutível
de um escriba babilónico
de coração exangue
como uma estrela morta
leve de ser outro
no cimo de si próprio
é uma figura cega
saída da fossa
dos velhos medos
trazida pelo vento
que sopra da lua
grande ilha de trevas
sobre um oceano negro
mais forte que a noite
e o seu eco de cascos
de cavalos desaparecidos
 
 
 
ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




29 setembro 2020

ernesto sampaio / milhares de asas doloridas

 
 
Milhares de asas doloridas
de pequeninos corações a bater
de caudas alisadas por muitos vendavais
onde ainda luzia o sol
de outras latitudes
pairavam no zénite
hesitando se havia ou não
de cair sobre a terra
enquanto nas pessoas
se fundiam os gelos
derrubavam os muros
reconstruíam as quebradas pontes
do idioma e do sorriso
 
Aquele menino perdido na névoa
que ficou a acenar-nos do cais
aponta a giz na lousa:
nada não é a parte
de outra coisa
para encontrar alguém
é preciso partir
 
 
ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986







23 março 2020

ernesto sampaio / janela



Na janela levada pelo vento
o castelo de cartas
entre maciços de coral

Considerando o abismo
de séculos e gestos
tudo o que importa
passa-se na outra vertente
mais bela que a cor
desta luva esquecida no mar
onde o tempo
como um crepúsculo
se dispersa na noite
com todos os segundos a arder



ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999








20 outubro 2019

ernesto sampaio / a única real tradição viva





                Uma tremenda força reacionária cobre de noite a Poesia. Aos raros espíritos que tentam reivindicar para ela os antigos prestígios, o seu poder de encantação, de transposição dos secretos ritmos do mundo, de vidência, magia e ciência, mal lhes chega a força e o tempo para elevar o seu amor um tudo nada acima das paupérrimas formas de vida deste século onde a conjunção tenebrosa da religião, do capital e do resto dispõe de um eficaz arsenal de artifícios para aviltar os homens: técnicas psicológicas para mutilar a tensão inicial que os liga à realidade exterior; coacções económicas para limitar a liberdade propulsora do seu acesso às grandes zonas perigosas onde as forças obscuras arpoadas pela necessidade humana se objectivam, se transformam em realidade tangível; valores, noções e obrigações para torna-los vis degradando o seu sentido do Maravilhoso, substituindo o Amor e as altas circunstâncias da vida que o realizam – único contexto da Dignidade e da Grandeza humanas – por fórmulas obtusas e vulgares que são o penhor do poderio da mediocridade e da miséria moral; enfim, uma religião masoquista para os habituar, para fazer deles cidadãos submissos, viciando-lhes a sensibilidade e fechando-lhes o espírito.
                É esta a orla dum tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai dar ao inferno. Mas em todos os tempos, naturalmente, a sua tendência não foi acomodar-se ao sono do tempo, não foi pacificar as querelas e contradições que o uniam, a sua tendência foi exasperá-las. O inferno, a noite, o caos, a natural violência dos monstros, dos dilúvios, das convulsões da terra, dos vapores venenosos das origens sempre foram o crivo onde o pensamento se teve de perder antes de encontrar o porto interdito aos que em vez do universal demandaram o particular, em vez do verdadeiro só puderam ver o comum. Em todos os tempos, também, tal como a água a insinuar-se por entre as falhas das rochas, lá longe, absolutamente a sós, à frente, os guardas-avançados do espírito têm estado atentos às falhas da grande noite que os rodeia, procurando aberturas, espaços iluminados onde possam abrir a estrada da emancipação do homem, num combate árduo pela conquista duma absoluta semelhança entre o que ele é e a mais alta ideia de si mesmo. Foram já dados alguns passos em frente, etapas que nenhum Thermidor, nenhum refluxo reaccionário conseguiu fazer recuar porque foram definitivas, forneceram novas e superiores perspectivas à luta pela interpretação e transformação do homem e do mundo. Em vão se procurará fundamentar validamente qualquer acção que, reclamando-se do conhecimento e da criação, se inscreva fora dos quadros dessa luta. Ela apela para todas as forças objectivas e subjectivas dos diversos modos de actividade libertadora. Apela para a Poesia – função do desejo e raiz do conhecimento, o qual incide sobre a descoberta do elemento que permite ao sujeito organizar-se de maneira a se integrar totalmente no objecto que o reclama, que permite à particularidade de cada homem, num excesso de real, harmonizar-se com a universalidade, como um homem e uma mulher, quando o desejo é tão grande que o contacto dos seus corpos é conhecimento, sem domínio nem escravidão, se harmonizam – no ponto onde toda a energia se cristaliza nessa maravilhosa jóia negra que obriga a perder quem a quiser ganhar, que dana quem por ela se quiser salvar. É essa aceitação dos riscos extremos, mediada pelos danadores-salvadores que interceptam a corrente magnética e a distribuem, que dá aos homens a senha das sucessivas passagens das trevas para a luz, do caótico para o ordenado, da realidade dispersa do sonho para a realidade concentrada do estar acordado.
                Atento a todos os sinais reveladores, o poeta espera acordar. O prémio desta espera, mais ainda do que as partidas e chegadas, é ela própria: sexualização da vida, casamento do homem com o mundo para além de todo o desespero, toda a angústia, toda a merda – cuidadosamente organizada pelos macacos pensantes – que os séculos acumularam enterrando o homem num fosso de miséria e de injustiça. O poeta quer tornar essa espera extensiva à humanidade inteira. É esse – nenhum outro! – o seu compromisso. O sentido e a medida da sua acção ultrapassam de longe todas as soluções de continuidade das condições actuais: é que ele, considerando bons e estimáveis alguns lances do caminho já andado, acha que em verdade ainda está tudo por fazer. Quanto aos que exploram a actual situação (os que não deixam passar), o poeta não pode senão – e da maneira mais activa – desejar o seu extermínio.
                A Moral é a acção da Poesia. Quero dizer: o poeta é exemplar. Ele não pode aceitar que à sua volta se coisifique o homem. Sabe muito bem precisar a sua subsistência da liberdade dos outros, porque sem a crítica engendrada por essa liberdade as suas perspectivas não se definem, ficando ele como uma máquina a projectar um belo filme sobre um espaço vazio; sabe muito bem que sem a disponibilidade condicionada por essa liberdade o trabalho altamente poético de vagabundagem à procura de choques reveladores, transforma-se, de exaltante, em amargurado. Para ele, ser livre é conservar intacta a necessidade da consciência que visa à transformação do estado entre a multiplicidade de estados relativos do ser, que mais se ajusta ao ponto equilibrante onde fundem a lei contingente da matéria e a liberdade do espírito. A preservação dessa necessidade vai de par, nele, com a denúncia de todo os sistema arbitrário cuja estrutura seja precária e pretenda possuir um valor absoluto. Ele tem de descobrir o seu próprio sistema de aferição do real, a sua própria física, arruinado a actual, comportando-se sempre em relação às «verdades» do mundo e em relação à sua própria percepção duma maneira subversiva. Nas condições actuais, não há nada mais miserável do que a «recuperação» social dos poetas, nem há nada mais canino do que o prestarem-se os poetas a uma tal recuperação, ou por envelhecerem ou por não terem sabido manter a distância suficiente, conscientes da sua direcção única: essa «vontade prática» que procura restabelecer os verdadeiros fundamentos da relação homem-mundo e de alguma maneira coincide com a obscura sensação de gravitarmos em volta de um objecto que, mesmo sendo desconhecido, corresponde concretamente à nossa mais íntima e essencial necessidade. Pertence este fenómeno a uma ordem galvanizada de relações interiores tão determinante e incoercível que dificilmente cabe em qualquer esquema da consciência. Trata-se dum desses fenómenos psíquicos mais obscuros e axiais por referência à direcção do espírito, à vibração da sensibilidade e à consciência moral. São as migrações das forças que atravessam a matéria e o espírito, ambos permanentemente animados por um dinamismo a que os alquimistas procuravam descobrir as correspondências e as afinidades que o produzem. O choque, o encontro com esse objecto – condutor duma força que simultaneamente é atraída e se opõe à que nós próprios conduzimos – é susceptível de produzir uma descarga capaz de iluminar, ainda que brevemente, o campo vago eternamente cerrado de bruma onde o que o homem é e o que o homem não é têm os seus «rendez-vous» numa ambiência subitamente prenhe de reminiscências encantadas e infantis. Essa descarga luminosa – a imagem poética tal como a concebo – resulta do choque de forças atractivas puras e ocupa um lugar essencial no esquema motor do surrealismo que, procedendo a uma sensibilização absoluta da relação sujeito-objecto, considera a sensação estética igual à sensação de passagem de corrente e da vibração dessa passagem que pode vir algum remédio para o estado viciado em que se encontram as estruturas da percepção reputadas de normais. Efectivamente, é esse viciamento cuja génese não faremos agora que fundamenta todas as inversões do verdadeiro funcionamento do espírito, especialmente a mania da descrição dos objectos que tanto atenta contra a principal virtude do espírito: reproduzir a virtude das coisas, recriando-as. O poeta, existindo pelo que lhe é reversível, está menos sujeito a esse viciamento que separa a vida latente da vida manifesta. Ele acha (devemos também ao surrealismo a formulação objectiva desse instinto milenário) ser a vida para o contexto de forças que definiremos por destino o que a linguagem é para o pensamento. O poeta sente conduzir a vida e ser conduzido por ela. Crê ser um dever o procurar ler um destino na trama emaranhada dos seus encontros, nas neves da sua existência orgânica, com esse ar das grandes montanhas que «exalta antes de matar», esse ar que já é outro. Da gravidade duma tal concepção da vida, resulta o poeta atribuir aos seus valores a mesma importância que os antigos navegadores davam às conjunções celestes que os orientavam. Esses valores, esses ímans correspondem a necessidades concretas da vida humana. Esses valores puxam o homem, orientam-no, são estrelas que ele utiliza para tirar o seu ponto, pólos magnéticos que se chamam o Sonho, o Amor, a Liberdade – tutelas da única real tradição viva que a Poesia encarna.

1963



ernesto sampaio
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
por perfecto e. cudrado
assírio & alvim
1998






20 julho 2018

ernesto sampaio / travessia




     Contemplar na sua própria trajectória o movimento do corpo que se destrói e do espírito que envelhece

       Conquistar à intranquilidade, o sentido do eterno, à amargura, o poder da revolta, à solidão, o direito ao diálogo

        Cada deus definitivamente sepultado é um homem livre sobre a terra

       Eu que circulo no labirinto e dirijo a fatalidade do caminho, espero o abrir da porta para além da qual alguma coisa se perca desta conjunção que se transporta comigo

     Através o tempo, através a carne, sem sequer supor do reverso do realizável a transfiguração que tudo redima

      Eu que, nesta sala hoje imensa, idêntica e sem exaltação possível, me detenho e esqueço o haver memória, furto-me à provável substituição do homem pela sua semelhança

       Cintila por vezes nestes quartos uma persistência do passado. A história possível da humanidade também tem a sua corte própria, uma virtualidade imperiosa, quase essencial, como se o irrealizado fosse a verdadeira alma do mundo

       Todo o possível se eterniza, vive sempre mais que o realizado, prologa-o, ilimita-o, dá dele a pálida imagem duma realidade profunda, desafiadora

       Decerto a mais pequena ambição humana é sempre maior que o mais alto dos homens

       Decerto a sua transformação em acto é inferior ao ser possível de que provém – e tudo o que poderia ter sido fica a pesar sobre o silêncio, temporariamente se organiza também em passado, presente e futuro, ganha pelo menos direito à memória

         E como o peso duma sentença, a memória indestrutível sustenta as nossas vidas e as nossas cidades

       A memória do que existe e do que faz e prolonga esse existir, e a memória do que poderia existir e que ocultamente cresce e se renova, longe da teia de actos em que nos debatemos

       Escorrendo como humidade, a persistência da recordação corrompe o nosso poder, prolonga nele a tensão constante do realizado e do irrealizado, do real e do possível, substitui-se à imaginação e à liberdade

     Sucessivamente se irão abrindo as portas, num percurso infindável, numa pálida sucessão de pequenos actos e adornos mentais, enquanto o labirinto se continua, se contorce sobre si mesmo, sem regresso possível ou detenção, sem fórmulas ou sagrações, nu e deserto, alheio e hostil, frio, ante o pavor que se inscreve no olhar mais subtil e delicado, na alma mais entregue à interrogação do seu fim

      Ó natureza incriada e geradora de afrontas, de homens, mãe absoluta de todos os nossos gestos e fantasmas, de que parcela mais inútil do teu ventre se gerou esta minha carne, estes meus remorsos e ousadias

      Que inquietação me criou, se tudo era sossego e silêncio, medida e equilíbrio, repouso e eternidade                                      

        Em cada gesto se insere o tempo, quando tudo é imóvel e o próprio movimento uma tendência para o repouso
               
      Da face plácida do mistério me arrancaram e devolveram à desordem, quando em ti tudo reclama a perenidade desse mistério – de ti, incriação, assim partimos, contendo em nós, ocultamente, o apelo que nos marcaste e que de novo nos conduzirá ao silêncio e à totalidade

    Preencho o caminhar destes passos com o som crescente desse apelo, dessa voz irresistível, desse chamamento atordoador, desse desejo de regresso, quando não se regressa nunca e apenas se acelera a vertigem em que nos possui a certeza dessa aglutinação final, dessa ausência para sempre, como quem entra num nevoeiro sem fim, e sucessivamente perde o olhar, o sentir, a consciência

      Hoje, sobre a terra rolando pelo tempo, dentro deste labirinto cada vez mais estreito, onde as paredes mais se comprimem e o ar se rarefaz, coalhado de ameaças, de sinais indecifráveis, reflexos de povos e de memórias, ecos de acções e de sonhos, ruir de paredes que outras paredes cercam, gemidos de naufrágios e tempestades, girar de planetas

     Uma voz abafada, longínqua, do peito do homem se levanta, segura, lenta, uma voz que não se esquece nunca, vibrátil, ardente, correndo pelo íntimo da terra como um fogo secular, um murmúrio ameaçador, humano, implacável




ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986




05 agosto 2017

ernesto sampaio / poesia da miséria




«Poetas porquê no tempo da miséria?» pergunta Holderlin. Esta «miséria» não deve interpretar-se apenas como atributo da época, mas também como elemento constitutivo da poesia que à época pertence. Tal poesia é «mísera» porque é poesia de si própria, interrogação do seu próprio sentido, e não possessão do mundo. E «mísera» é esta época, assinalada como está por uma dupla negação. O «já não» dos deuses desaparecidos e o «ainda não», do deus vindouro. É uma época negativa pela sua própria essência; por isso, na medida em que se «poematiza» a si própria, a poesia é poesia desta época.

E, no entanto, esta poesia é excessiva. Não podendo acomodar-se em hipotéticas universalidades comunicativas, é obrigada pela sua própria «miséria» a fermentar, revolver, ferir continuamente as hierarquias e articulações do discurso. Talvez deva a inocência à sua prática do excesso, entendendo por «excesso» o que é também perda, desgaste e sobretudo não possuir e não querer possuir. É um dar-se, um não ser avaro de si mesmo, um não «tesaurizar» as palavras.

A linguagem desta poesia, porém, pode tornar-se o mais perigoso dos bens: quando o «excesso» encontra a «medida» e consegue finalmente dizer o negativo da sua época, evocando-lhe toda a insuportável «miséria», pondo o homem em luta com ela e consigo mesmo. «Nós estamos em luta com a linguagem» dirá Wittgenstein; esta linguagem já não é a nossa casa. O deus abandonou-a, ausentou-se, e os novos deuses ainda não existem. Esta ausência produz o excesso. Mas quando a escrita deste excesso alcança uma lei, uma ordem, a medida – a poesia reflecte com medida sobre si própria, conhece o sentido da perda e transforma-se em poesia da época.

A poesia da época é a poesia da perda, a Dichtung que torna «sagrada» a Noite que atravessamos, a palavra que nomeia os deuses e o ser, que evoca a presença dos deuses na sua original, essencial proximidade das coisas. A poesia é, portanto, teoria – não um «ver» comum, mas o ver que dá nome aos deus entre nós». O sentido da perda é este: a poesia da «miséria» não possui «teoria», não conduz à presença dos deuses, à Aletheia grega, termo que os romanos traduziram por Veritas.

Veritas, contudo, já não é Aletheia: e apenas a interior coerência e «harmonia» das nossas formas de conhecimento, da nossa «pura» razão. Esta Veritas – já abandonada pelos deuses, já incapaz de vê-los - «saqueou», com os seus preceitos morais, deveres, conflitos, estética e razão, a teoria grega. Holderlin é o único dos «modernos» a compreender o clássico como tragédia. A nossa «miséria» é exactamente incapacidade, impossibilidade da tragédia. E a nossa poesia é autêntica não simplesmente por não ser clássica, mas por reconhecer na raiz o sentido desta perda. E nisso que consiste a sua Medida.

Teremos chegado, como sugere Holderlin, demasiada tarde à poesia? À poesia que é tragédia e sacrifício que nos reconcilia com o divino, decerto. Mas qual é a poesia da Gottferne, da ausência dos deuses, da «miséria»? Qual é a poesia da vida tornada «sonho»? A poesia do Luto, segundo Hegel; a poesia do adeus ao Dia, à Presença, segundo Holderlin; a poesia que duramente recusa todas as consolações, segundo ambos.

A poesia de Holderlin guarda e defende o sentido da perda, da ausência, contra as forças eu hoje pretendem trair aquela memória, apagar a Aletheia na sua «verdade», proclamar conciliações ou o domínio sobre as coisas e os fenómenos. Em Holderlin, a poesia no tempo da «miséria» é a «louca» utopia antinihilista, um custodiar o «possível» regresso dos deuses. Lukacs apresenta Holderlin como o modelo do «heroísmo poético» que «se desfaz contra a realidade» sem conseguir representar as contradições da sociedade pós-termidoriana e da nascente «prosa» burguesa. Esta «prosa» é o resultado da perda de tudo, e dir-se-ia que escrever, hoje, nesta encruzilhada do «já não» e do «ainda não», não é mais do que preencher com ninharias o abissal espaço vazio criado pela ruptura entre o nome e a coisa.

Holderlin envolveu a sua mensagem numa forma críptica voluntariamente mítica e obscura, indecifrável para os «maus» e para os «brutos» tal como outrora – diz ele – quando das invasões bárbaras, se enterravam os vasos sagrados, confiando-os ao seio da terra-mãe para que um dia, muito mais tarde, outras gerações os exumassem, reanimando com o seu fervor o culto da verdade e da beleza. Do mesmo modo, quando o vento invernal varre a planície, a semente secretamente viva aguarda, na noite profunda da terra, o reaquecimento vindouro, a libertação pela luz o sol primaveril. «Agora – diz Holderlin – é noite, é inverno. Todos os meus pensamentos se voltam para as gerações futuras».

Em cada dia o poeta deve «chamar a divindade desaparecida» e em cada dia «aludir»à divindade «possível», futura, da qual não possui o nome. Este Holderlin é irredutível à sacralidade da cerrada perfeição. Às consoladoras imagens de uma cultura onde todos os artistas e todas as imagens têm o seu lugar destinado, numa recíproca e «construtiva» harmonia, Holderlin opõe o «excesso». É uma voz de vanguarda, em antecipação sobre o seu tempo. «Mas toda a vanguarda – diria Wittgenstein – mais cedo ou mais tarde é alcançada pelo seu tempo.»

[Publicado no Diário de Lisboa, de 11/12/87.]   



  
ernesto sampaio
ideias lebres
fenda
1999





23 maio 2016

ernesto sampaio / estrada



Noite sem rasto guia-me até ao meu destino
escondido na solidão das ruas
inconcreto na vastidão das horas
onde tu existes misteriosa e nocturna
no teu perfil de bruxa e da rainha
apátrida e nostálgica
deslizando no vidro da madrugada
azulando de raios gelados o dia que nasce
viva e oculta
cada vez mais viva e oculta
cada vez mais única de amor humano
com a tristeza das luzes marítimas
com a gravidade de quem parte
suavemente para sempre


ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986



15 abril 2015

ernesto sampaio / para uma cultura fascinante


Uma arte poética, admitida a relação analógica tradicional entre as estruturas do homem e do universo, é sempre uma cosmogonia. As leis que regem os mais íntimos e essenciais fenómenos da criação humana dizem respeito à mesma realidade que criou o homem, dele fez a sua expressão impermanente, mutável como a expressão do próprio homem, mas mais livre, porquanto a humana expressão é reflexo doutra realidade prestigiosa e a expressão dessoutra realidade não é reflexo senão do infinito, cujo conceito e cuja imagem próxima do olhar humano nos espiam por trás de cada objecto, órbitas vazias geradoras da angústia que raspa, imagem após imagem, todas as que não reflectem a Lei, e estas são as que exprimem termos de encontro superficiais e falsos, ou simplesmente menos reais, com o mundo e com a vida, comodamente integrados na consciência humana por tudo o que no homem é criação intelectual mas não é conhecimento.

A análise dos fenómenos da criação humana à luz de uma mítica Consciência universal pode, por alguns, ser considerada demasiado arbitrária, embora, e no plano sensível, sejam muitos os fenómenos que permitam  elaborar uma relação entre o incriado e a sua emanação — o cosmos, e a inconsciência e a sua emanação — a consciência, cosmos e consciência que se organizam similarmente segundo uma sua interna necessidade— a de saírem do caos e revelarem-se, limitando-se num objecto onde a ideia encarna para que a consciência que a criou se conheça. O objecto criado é depois reabsorvido pela noite de onde saiu, regressa ao caos, apagada a Ideia viva que o formou,  extinto o reflexo do arquétipo universal, da Ideia pura que alimenta o homem e os seus esforços para alcançar de si mesmo a Consciência absoluta, Ideia que é ela própria alimentada por esses esforços, sem os quais, admitindo que a consciência humana dela não teria conhecimento se dela não fosse um reflexo, não existiria.

Considerar arbitraria a realidade mítica do mundo que o homem pretende alcançar equivale a negar a possibilidade de o sujeito se poder equivaler ao seu objecto, equivale a negar ao homem a conquista de um estado unificado da consciência, equivale a negar a Poesia. Porque o poeta é o homem que consegue, quando o seu Verbo encarna, alcançar estados de consciência absoluta, de absoluta vidência. O poeta é precisamente o único homem cujo funcionamento espiritual não é arbitrário, é real, o único que consegue mover-se no presente e dele falar. O resto é ignorância.

É claro que este poeta a que me refiro é raro, tão raro como são raros os verdadeiros iniciados, e isto porque o conhecimento pressupõe a anulação individual de quem conhece, depende da capacidade que o eu porventura possua de substituir o seu inconsciente particular pelo inconsciente colectivo, aplicando contra este a sua consciência, diluciidando-o, e assim dilucidando uma primeira realidade mais vasta e concreta que a realidade do eu, condição básica para o conhecimento da Realidade Mítica, o qual é pura descontingenciação, libertação.

Para que o eu prossiga sem falhas o seu esforço pelo conhecimento, precisa de encontrar formas definitivas, reais formas de comunicação com os outros eus. Sem essa comunicação não pode provar, não pode medir absolutamente a veracidade da expressão do real no seu corpo.

A expressão do real é a Poesia.

A expressão do real no meu corpo é o Teatro.

O Teatro é a Poesia concreta.

Ritmos e sons, eis o concreto. Eis o objecto original, a redução ao sensível de todo o conceito, de toda a ideia criadora. O Teatro é a expressão da necessidade demiúrgica da consciência humana: concretizar ritualmente, por transmutação analógica, o primeiro ritmo e o primeiro som. Integrar a consciência no corpo, carregar o corpo dos prestígios criadores que circulam na natureza — eis a função do Teatro. O lugar onde esta operação se efectua é o único onde o homem se pode inserir na sua realidade total, o único onde o poeta-actor pode fazer agir a realidade total sobre a humana inconsciência da sociedade e pode vencê-la, o único onde pode obrigar a sociedade a participar da sua consciência, a ser dela elemento activo e integrante.

Ser absolutamente consciente — eis o primeiro objectivo. Eis a condição especiosa e teatral para ultrapassar a nojenta situação de ser condicionado, fantoche do Bom e do Justo, imundo agente dos sentimentos, dos juízos, da luxúria, do temperamento «humano, demasiado humano». «O homem é uma coisa que deve ser ultrapassada» (suponho que a afirmação é de Nietzsche), esta é a primeira aquisição a purificar a nossa vontade, o primeiro esboço terrivelmente inquieto de um sangue destinado a ser livre ou, pelo menos, a tentar sê-lo até onde o permitir a sua resistência à força da dor.


ernesto sampaio
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985





06 fevereiro 2015

ernesto sampaio / o menos possível



Respirar
o menos possível
nestas cidades
de uma tristeza
sem idade
abrindo o espaço
com os gestos lentos de um náufrago
a caminho
do fundo

A noite sobe-me
na voz
como um lugar
capaz de imaginar
sozinho
o seu cenário
onde o azul
dorme
numa cave
com os cães



ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




20 fevereiro 2013

ernesto sampaio / adeus, luz que giravas sobre o mundo




Adeus, luz que giravas sobre o mundo.
Adeus, beleza das horas.
A lua sobre a casa. Os morcegos sobre a lua.
A lua sobre o pântano.
A lua no fundo do pântano.
A lua sobre as árvores.
A brisa nas árvores.
A bruma nos campos.


ernesto sampaio
fernanda
fenda
2005



04 junho 2012

ernesto sampaio / o fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria


  



    O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada
    poro da aurora
    Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma
    Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim
    dos tempos
    E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o
    mar das grandes lanças de água
    É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem
    véus de rios que começam a vida de gestos no crepúsculo
    São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade
    É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado
    com que abres as pálpebras deixando sair os lagos da tua infância
    e a luz louca da crisálida que nos gerou dissimulada em cada pedra
    em cada cama onde morremos juntos

    Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem
    de ver nascer uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível
    Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus
    pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante
    Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em
    cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável
    Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos
    puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra
    Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio
    que esmaga e canta e ninguém deterá

    Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num
    sinal vermelho
    Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da
    porrada que nos deram no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu
   Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias
    minha jovem eterna de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas
   meu grande ventre de movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de   meteoros
    meu sopro de todas as potências minhas costas de Mar e de Terra
    minhas coxas de deboche minha mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos
    minha flor de sangue de ferro de esperma minha destruição luminosa
    minhas nádegas de noite e de loucura
                                           
                                            MEU AMOR

    Habito a lealdade dos presságios
    Começo a ser um bom leito para o meu sangue





ernesto sampaio
you are welcome to elsinore
poesia surrealista portuguesa
antologia de perfecto e. cuadrado
edicións laiovento, compostela
1996





29 março 2011

ernesto sampaio / no tarot…


No Tarot, há uma correspondência exacta entre os primeiros termos do 2.º e do 5.º ternários, representados pelos arcanos IV e XII. O arcano IV (Imperador) representa o enxofre dos alquimistas, o fogo interior, princípio activo da vida individual. Ao arder, este fogo consome reservas que se vão esgotando, de onde a diminuirão gradual do seu ardor e a sua extinção final naquilo a que chamamos a Morte (arcano XIII), a qual , na realidade, não extingue nada, mas liberta as energias sufocadas sob o peso de uma matéria cada vez mais inerte. Longe de matar, a morte revivifica, dissociando o que já não pode continuar a viver. Sem a sua intervenção, tudo desfalecia, de tal modo que a vida, finalmente, já não se distinguiria da imagem que o vulgo tem da morte.



ernesto sampaio
fernanda

fenda
2005



26 janeiro 2010

ernesto sampaio / geografia








A oriente
o horizonte escarlate
da dor humana
a ocidente
o crepúsculo
no fim do percurso
a norte
o Senhor da Morte
a sul
o vento do deserto
em cima
o olho do mundo
em baixo
o sonho indestrutível








ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999









22 janeiro 2009

ernesto sampaio / um texto poético








(…)

O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada
poro da aurora
Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma
Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim
dos tempos
E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o
mar das grandes lanças de água
É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem
véus de rios que começam a vida de gestos no crepúsculo
São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade
É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado
com que abres as pálpebras deixando sair os lagos da tua infância
e a luz louca da crisálida que nos gerou dissimulada em cada pedra
em cada cama onde morremos juntos

Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem
de ver nascer uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível
Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus
pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante
Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em
cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável
Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos
puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra
Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio
que esmaga e canta e ninguém deterá

Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num
sinal vermelho
Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da
porrada que nos deram no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu
Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias
minha jovem eterna de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas
meu grande ventre de movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de meteoros
meu sopro de todas as potências minhas costas de Mar e de Terra
minhas coxas de deboche minha mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos
minha flor de sangue de ferro de esperma minha destruição luminosa
minhas nádegas de noite e de loucura

MEU AMOR

Habito a lealdade dos presságios
Começo a ser um bom leito para o meu sangue

(…)








ernesto sampaio
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




05 março 2007

perfil do idiota



O IDIOTA é geralmente competente, moralmente irrepreensível e socialmente necessário. Faz o que tem a fazer sem dúvidas ou hesitações, respeita as hierarquias, toma sempre o partido do bem e acredita religiosamente nas grandes ficções sociais.

A incapacidade de relacionar as coisas, as ideias e as sensações transforma-a ele em força, e como lhe escapam as causas e os fins do que lhe mandaram fazer, fá-lo com prontidão e limpeza, sem introspecções inúteis. Do mesmo modo, como vê no destino o único regulador da vida, acha que se uns dão ordens e outros obedecem é porque todos cumprem misteriosas injunções da providência, as quais é não só inútil, mas criminoso sondar.

O idiota só pode ser bom. Para o mal, precisa-se de imaginação, inteligência descriminativa, espírito científico. Corno também não dispõe de virtualidades poéticas e é, portanto, incapaz de se criar a si próprio, idolatra quem o criou: Deus em primeiro de tudo, e depois os pais.

O idiota é um bom cidadão. Sem ele, a sociedade entraria em curto-circuito, incendiada entre os polos do dever heróico e da desobediência revolucionária. Dado ser-lhe vedado apreender o nexo que liga a evolução dos meios de produção à transformação das relações de propriedade acredita de facto que o corolário das novas tecnologias é o reforço da iniciativa privada, da livre empresa e do livre mercado. É o único que acredita nisso e ainda bem. Se ninguém acreditasse, esta sociedade parava. O idiota é todo liberdades.

A idiotia também faz bem às artes, principalmente às audiovisuais. A concentração do idiota numa ideia fixa, torna-o especialmente receptivo às músicas de ritmo simples e batida forte, o que facilita extraordinariamente o comércio discográfico, com todas as vantagens que daí advêm para producers e performers, enfim, para o tecido social. No que diz respeito às artes plásticas, tudo é mais fecundo se não houver interferências entre os olhos e as mãos. As ideias perturbam, turvam o olhar, atrapalham o gesto e, nos casos de ideologite aguda, daltonizam as cores. Sem imagens, uma cabeça vazia endoidece.

Embora para um idiota seja uma desvantagem não saber que o é, normalmente ninguém lho diz:: segundo Brecht, «tornar-se-ia vingativo como todos os idiotas». Aliás, o mesmo Brecht diz que ser idiota não é grave: «É assim que você poderá chegar aos 80 anos. Em matéria de negócios é mesmo uma vantagem. E então na política!»

O idiota puro é o idiota jovem. Com o tempo, torna-se cínico, adquire hábitos esquisitos, sempre à procura do que lhe serve ou lhe rende, em busca de técnicas para obter sucesso e se sentir bem, sereno, de boa saúde e belo aspecto: cristianismo, ioga, dieta macrobiótica, drogas, parapsicologia, psicanálise, etc.

Para o idiota, os sentimento e as emoções são «uma boa», constituindo dados manipuláveis. Em si mesmos, não lhes acha qualquer sentido ou valor, mas de qualquer modo são coisas que lhe podem trazer vantagens ou desvantagens: é preciso, portanto, avaliar-lhes as implicações e consequências. Ao lidar com sentimentos e emoções, os próprios e os alheios, o problema, para o idiota, consiste em controlá-los, guiá-los, desfrutá-los, e isso implica trabalho, cálculos complicados e a aprendizagem de técnicas nem sempre fáceis.

Impossível, realmente, para o idiota, é a espontaneidade criativa. É algo que lhe surge como uma perspectiva insegura e assustadora. À criação, prefere os sucedâneos que se aprendem nos «workshops» e nas escolas. É uma vida dura, a do idiota: de curso em curso, de colóquio em colóquio, de ciclo em ciclo. Se tem dinheiro, o idiota não se priva de ir ao sexologista e ao psicanalista aprender a libertar os apetites e fantasias sexuais e sentimentais. Com o tempo, tudo se torna para ele aprendizagem e contabilidade: do prazer, da espontaneidade, da criatividade. Cautelosa, como a contabilidade do dinheiro. Ao idiota, repugnam os ímpetos passionais, poéticos e místicos: procura prazeres seguros, previsíveis, e afasta tudo o que possa perturbá-lo.

No plano do consumo e na vida social, o idiota português aprecia as coisas cómodas, os pequenos e grandes privilégios, planeando com minúcia o modo de obtê-los. Sejam quais forem as suas petições de princípio políticas, no fundo é um céptico, despreza o «povinho», vive fechado para os outros. Aos generosos e altruístas, considera-os parvos ou hipócritas. O idiota circula à volta do sucesso como a borboleta em redor da chama, agarrando-se como lapa ou mexilhão a quem o alcança. Espertalhão, agrada-lhe receber, mas dá o menos possível, e arranja sempre qualquer explicação ética para justificar este comportamento. Na realidade, a sua lógica, elementar como as suas poucas ideias e imagens, consiste apenas em receber sempre mais do que dá.

Na actividade económica, não existe em Portugal correspondência entre o surto idiotista e o crescimento empresarial. Em muitos cavaleiros da phinança idiotófila prevalece ainda um conceito patrimonial da riqueza. Uma bela casa no campo é ainda o sinal mais espaventoso de bem-estar e opulência.

Entre os idiotas, também começa a manifestar-se, se bem que de modo caricatural, algo que recorda o hedonismo e o utilitarismo da aristocracia de outrora: o gosto de ser servido, de se distinguir do «vulgar». Como única crítica a filmes, espectáculos, livros, etc., é frequente ouvi-los dizer: «Mas que mau gosto!»

Os idiotas andam sempre juntos: consomem os mesmos produtos, frequentam os mesmos locais, lêem os mesmos livros e jornais, e têm uma habilidade notável para descobrir e evitar quem não é idiota. Graças a Deus! A política, porém, unifica o conjunto da sociedade sob o signo da idiotia: pessoas estimáveis, notáveis até nos diversos domínios do saber e da cultura, quando chegam à política tornam-se idiotas. Triunfam, quer-se dizer. Tornam-se, enfim, públicas.


[Publicado no Diário de Lisboa, de 12/6/87.]






ernesto sampaio
ideias lebres
fenda
1999