20 outubro 2019

ernesto sampaio / a única real tradição viva





                Uma tremenda força reacionária cobre de noite a Poesia. Aos raros espíritos que tentam reivindicar para ela os antigos prestígios, o seu poder de encantação, de transposição dos secretos ritmos do mundo, de vidência, magia e ciência, mal lhes chega a força e o tempo para elevar o seu amor um tudo nada acima das paupérrimas formas de vida deste século onde a conjunção tenebrosa da religião, do capital e do resto dispõe de um eficaz arsenal de artifícios para aviltar os homens: técnicas psicológicas para mutilar a tensão inicial que os liga à realidade exterior; coacções económicas para limitar a liberdade propulsora do seu acesso às grandes zonas perigosas onde as forças obscuras arpoadas pela necessidade humana se objectivam, se transformam em realidade tangível; valores, noções e obrigações para torna-los vis degradando o seu sentido do Maravilhoso, substituindo o Amor e as altas circunstâncias da vida que o realizam – único contexto da Dignidade e da Grandeza humanas – por fórmulas obtusas e vulgares que são o penhor do poderio da mediocridade e da miséria moral; enfim, uma religião masoquista para os habituar, para fazer deles cidadãos submissos, viciando-lhes a sensibilidade e fechando-lhes o espírito.
                É esta a orla dum tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai dar ao inferno. Mas em todos os tempos, naturalmente, a sua tendência não foi acomodar-se ao sono do tempo, não foi pacificar as querelas e contradições que o uniam, a sua tendência foi exasperá-las. O inferno, a noite, o caos, a natural violência dos monstros, dos dilúvios, das convulsões da terra, dos vapores venenosos das origens sempre foram o crivo onde o pensamento se teve de perder antes de encontrar o porto interdito aos que em vez do universal demandaram o particular, em vez do verdadeiro só puderam ver o comum. Em todos os tempos, também, tal como a água a insinuar-se por entre as falhas das rochas, lá longe, absolutamente a sós, à frente, os guardas-avançados do espírito têm estado atentos às falhas da grande noite que os rodeia, procurando aberturas, espaços iluminados onde possam abrir a estrada da emancipação do homem, num combate árduo pela conquista duma absoluta semelhança entre o que ele é e a mais alta ideia de si mesmo. Foram já dados alguns passos em frente, etapas que nenhum Thermidor, nenhum refluxo reaccionário conseguiu fazer recuar porque foram definitivas, forneceram novas e superiores perspectivas à luta pela interpretação e transformação do homem e do mundo. Em vão se procurará fundamentar validamente qualquer acção que, reclamando-se do conhecimento e da criação, se inscreva fora dos quadros dessa luta. Ela apela para todas as forças objectivas e subjectivas dos diversos modos de actividade libertadora. Apela para a Poesia – função do desejo e raiz do conhecimento, o qual incide sobre a descoberta do elemento que permite ao sujeito organizar-se de maneira a se integrar totalmente no objecto que o reclama, que permite à particularidade de cada homem, num excesso de real, harmonizar-se com a universalidade, como um homem e uma mulher, quando o desejo é tão grande que o contacto dos seus corpos é conhecimento, sem domínio nem escravidão, se harmonizam – no ponto onde toda a energia se cristaliza nessa maravilhosa jóia negra que obriga a perder quem a quiser ganhar, que dana quem por ela se quiser salvar. É essa aceitação dos riscos extremos, mediada pelos danadores-salvadores que interceptam a corrente magnética e a distribuem, que dá aos homens a senha das sucessivas passagens das trevas para a luz, do caótico para o ordenado, da realidade dispersa do sonho para a realidade concentrada do estar acordado.
                Atento a todos os sinais reveladores, o poeta espera acordar. O prémio desta espera, mais ainda do que as partidas e chegadas, é ela própria: sexualização da vida, casamento do homem com o mundo para além de todo o desespero, toda a angústia, toda a merda – cuidadosamente organizada pelos macacos pensantes – que os séculos acumularam enterrando o homem num fosso de miséria e de injustiça. O poeta quer tornar essa espera extensiva à humanidade inteira. É esse – nenhum outro! – o seu compromisso. O sentido e a medida da sua acção ultrapassam de longe todas as soluções de continuidade das condições actuais: é que ele, considerando bons e estimáveis alguns lances do caminho já andado, acha que em verdade ainda está tudo por fazer. Quanto aos que exploram a actual situação (os que não deixam passar), o poeta não pode senão – e da maneira mais activa – desejar o seu extermínio.
                A Moral é a acção da Poesia. Quero dizer: o poeta é exemplar. Ele não pode aceitar que à sua volta se coisifique o homem. Sabe muito bem precisar a sua subsistência da liberdade dos outros, porque sem a crítica engendrada por essa liberdade as suas perspectivas não se definem, ficando ele como uma máquina a projectar um belo filme sobre um espaço vazio; sabe muito bem que sem a disponibilidade condicionada por essa liberdade o trabalho altamente poético de vagabundagem à procura de choques reveladores, transforma-se, de exaltante, em amargurado. Para ele, ser livre é conservar intacta a necessidade da consciência que visa à transformação do estado entre a multiplicidade de estados relativos do ser, que mais se ajusta ao ponto equilibrante onde fundem a lei contingente da matéria e a liberdade do espírito. A preservação dessa necessidade vai de par, nele, com a denúncia de todo os sistema arbitrário cuja estrutura seja precária e pretenda possuir um valor absoluto. Ele tem de descobrir o seu próprio sistema de aferição do real, a sua própria física, arruinado a actual, comportando-se sempre em relação às «verdades» do mundo e em relação à sua própria percepção duma maneira subversiva. Nas condições actuais, não há nada mais miserável do que a «recuperação» social dos poetas, nem há nada mais canino do que o prestarem-se os poetas a uma tal recuperação, ou por envelhecerem ou por não terem sabido manter a distância suficiente, conscientes da sua direcção única: essa «vontade prática» que procura restabelecer os verdadeiros fundamentos da relação homem-mundo e de alguma maneira coincide com a obscura sensação de gravitarmos em volta de um objecto que, mesmo sendo desconhecido, corresponde concretamente à nossa mais íntima e essencial necessidade. Pertence este fenómeno a uma ordem galvanizada de relações interiores tão determinante e incoercível que dificilmente cabe em qualquer esquema da consciência. Trata-se dum desses fenómenos psíquicos mais obscuros e axiais por referência à direcção do espírito, à vibração da sensibilidade e à consciência moral. São as migrações das forças que atravessam a matéria e o espírito, ambos permanentemente animados por um dinamismo a que os alquimistas procuravam descobrir as correspondências e as afinidades que o produzem. O choque, o encontro com esse objecto – condutor duma força que simultaneamente é atraída e se opõe à que nós próprios conduzimos – é susceptível de produzir uma descarga capaz de iluminar, ainda que brevemente, o campo vago eternamente cerrado de bruma onde o que o homem é e o que o homem não é têm os seus «rendez-vous» numa ambiência subitamente prenhe de reminiscências encantadas e infantis. Essa descarga luminosa – a imagem poética tal como a concebo – resulta do choque de forças atractivas puras e ocupa um lugar essencial no esquema motor do surrealismo que, procedendo a uma sensibilização absoluta da relação sujeito-objecto, considera a sensação estética igual à sensação de passagem de corrente e da vibração dessa passagem que pode vir algum remédio para o estado viciado em que se encontram as estruturas da percepção reputadas de normais. Efectivamente, é esse viciamento cuja génese não faremos agora que fundamenta todas as inversões do verdadeiro funcionamento do espírito, especialmente a mania da descrição dos objectos que tanto atenta contra a principal virtude do espírito: reproduzir a virtude das coisas, recriando-as. O poeta, existindo pelo que lhe é reversível, está menos sujeito a esse viciamento que separa a vida latente da vida manifesta. Ele acha (devemos também ao surrealismo a formulação objectiva desse instinto milenário) ser a vida para o contexto de forças que definiremos por destino o que a linguagem é para o pensamento. O poeta sente conduzir a vida e ser conduzido por ela. Crê ser um dever o procurar ler um destino na trama emaranhada dos seus encontros, nas neves da sua existência orgânica, com esse ar das grandes montanhas que «exalta antes de matar», esse ar que já é outro. Da gravidade duma tal concepção da vida, resulta o poeta atribuir aos seus valores a mesma importância que os antigos navegadores davam às conjunções celestes que os orientavam. Esses valores, esses ímans correspondem a necessidades concretas da vida humana. Esses valores puxam o homem, orientam-no, são estrelas que ele utiliza para tirar o seu ponto, pólos magnéticos que se chamam o Sonho, o Amor, a Liberdade – tutelas da única real tradição viva que a Poesia encarna.

1963



ernesto sampaio
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
por perfecto e. cudrado
assírio & alvim
1998






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