31 julho 2022

daniel faria / do inesgotável

 
 
Abriu-se em ferida a cerca do teu corpo
E deixas vindimar-me quem quer
Que passe
 
Até o muro é sombra que não floresce
Enquanto me repetem a pergunta
 
Tu me cultivaste
Tu deixaste a geada sobrevir
 
 
 
daniel faria
poesia
do inesgotável
quasi
2003




30 julho 2022

rui lage / a demora do carteiro

 
 
Pela aurora a miríade canora
Amotina ausência geométrica,
Alfaiates sobre água inodora
Decifram-me saudade aritmética.
 
Partiu-se-me a manhã num envelope,
Extravio porventura da vigília
Do sonho anterior, parente da morte,
Afastada mas da mesma família.
 
Ir à varanda é estar só chegada
Uma carta endereçada ao peito
E quem sabe se neste perdoada.
 
Demorada a caneta na madrugada,
Com dedos ágeis e desassossegados,
Ontem, descoberto, deus jogou os dados.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002
 


29 julho 2022

marta navarro; paola d´agostino / medo, eu?

 
 
 
Medo, eu?
Sim, tive uma vez
 
 
Acabara de bater a meia-noite
eu voltava para casa
pela Rua do Jardim do Tabaco
e num dos armazéns uma sombra
a sombra alta e fléxil de um homem
tira a luva direita
e oferece-me a palma da mão
há pautas no lugar de linhas
 
 
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
 
 
reconheço a música
já a dancei antes
mas não quero enganar-me outra vez
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014



 

28 julho 2022

antónio manuel couto viana / café de subúrbio

  
2.
Choram para o chão os guarda-chuvas.
Chove e faz frio. O café está cheio.
Lento, descalço as luvas,
Pego num livro e leio.
 
É um livro de antiquada poesia:
Uns versos démodés, de um dandismo epocal,
Certa melancolia
E um satanismo gris de Flores do Mal.
 
(Café parisiense. Século XIX.
O absinto e a lavalliére.
Lá fora, como agora, chove, chove…
Ai, com que sugestões a inspiração me fere!)
 
Jovem, alguém, na mesa ao lado,
Espia-me a leitura, num sorriso de dó.
E fecho o livro, desencantado,
Com os olhos e os dedos já manchados de pó.
 
 
 
antónio manuel couto viana
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991





 
 

27 julho 2022

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido

 
 
46
Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difusa duma ausência
que não magoa e sabe bem
 
Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto
 
O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente
 
Que longe tudo o que procuro!
 
Ser como os outros todos um instante que seja é tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




26 julho 2022

saint-john perse / canção do presumido

 
 
 
Honro os vivos, tenho rosto entre vós.
E um fala à minha direita debaixo do ruído da sua alma
e o outro sobe para os navios,
o Cavaleiro ampara-se na sua lança para beber.
(Trazei para a sombra, debaixo do umbral, a cadeira pintada do
        ancião.)
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho graça entre vós.
Dizei às mulheres que alimentem,
que alimentem na terra esse estreito fio de fumo…
E o homem caminha dentro dos sonhos e dirige-se para o mar
e o fumo sobe à ponta dos promontórios.
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho pressa entre vós.
Cães, oh! meus cães, a vós assobiamos…
E a casa pejada de honrarias e o ano amarelo entre a folhagem
nada são para o coração do homem quando pensa:
todos os caminhos do mundo vêm comer-nos à mão!
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




 

25 julho 2022

josé luis piquero / no parque de campismo

 
 
A sua beleza – um escândalo
de riso e juventude –
não direi que era o único motivo.
Pois é certo talvez que nos podemos
enamorar de pormenores tolos
e queridos – dizia sempre «oh!»
antes de responder; mas além disso dançava
maravilhosamente; e depois aquela
maneira tão graciosa
de usar a madeixa sobre os olhos.
 
No parque de campismo tinha má fama,
um fox-terrier e uma irmã mais nova.
Descíamos à povoação muitas vezes
e eu pagava o cinema, os refrescos,
como um namorado feliz e complacente
que faz festas nas cabeças dos cães e das crianças.
Na noite antes de partir trocámos,
com as direcções, promessas de escrever.
 
E embora seja certo que tenho
o seu postal de Roma e várias cartas,
desse verão guardo sobretudo
a penosa impressão do fracasso cobarde,
certo desassossego que nos dias de sol
me parece vergonha.
                                      Teria sido
muito melhor ter-lhe dado um beijo naquela noite
e perder-me com honra, e não lhe escrever.
 
 
 
josé luis piquero
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




24 julho 2022

ruy belo / homem perto do chão

 
Na primavera quando as tardes se arredondam
e já nas praias nascem as primeiras ondas
e volta sobre o mar a ave solitária
o homem enche de ar o peito vespertino
arranca o corpo à chuva e às nuvens do inverno
e chega a ter desejos de ficar
Mas em que rosto isento de contradição
há-de ele peregrino erguer a tenda?
Não abrem na cidade à sua frente as ruas
caminha ante deus como se visse
esse deus invisível
Florescem quando passa contraditórios clarins
cantando cada um sua ideia diversa
nenhuma o levará à pátria que procura
Tenham outros tambores ele tem
a pesada cabeça entre as mãos caída
Ele que desça ao fundo de todos os olhos
que nos trazem a alma à flor da pele
também não serão lá o coração ou a infância
Quando a tarde morrer ou o outono vier
do seu olhar é que as aves todas partirão
Aí temos um homem perto como nunca nem ninguém do chão


ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates

assírio & alvim
2004





23 julho 2022

henry deluy / o mar tratava da paisagem

 
 
O mar tratava da paisagem. – Era
A mim que calhava estar sentado, - ali
Perto de um sopro incolor. – Uma luz
Púrpura tombava em ondulações densas
E azuladas. – Retalhos de conversas
Da véspera vinham-nos à memória.
O mar estava nu.
 
             *
 
Estava verdadeiramente nu.
 
 
 
henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002




22 julho 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
III
Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

21 julho 2022

hans-ulrich treichel / ao atravessar a paisagem

 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui, atrás
desta janela, a sombra
do homem, a minha sombra, aqui
nesta porta, a mulher, a minha mulher.
 
E ali a árvore,
o muro, a cova, plantada, levantado,
cavada por mim.
 
O bode ao pé da estaca,
preso, abatido por mim, o menino
de bicicleta, diante da cancela
fechada, o meu menino, a cancela
fechada por mim.
 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui os
carris cintilantes, o
leito da via, o horizonte de fumo, deslocados,
ensaibrado, atravessado por mim.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




20 julho 2022

antónio manuel azevedo / pedido de empréstimo

 
 
 
Arranja-me uns versos para o verão.
Coisas de areia, de memória
e sem futuro. Passos das tuas coisas
em volta, a luz perdendo
que guia o pescador, o turista
e o amante em aventuras com o regresso
aos quartos onde repousa para o fim
a escassa vida.
 
Escreve como quem descreve quase
o fim do amor, da casa, do caminho
o teu ao meio-dia de agosto
quase inteiro de sol
e outras poentes alegrias.
 
 
 
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
 



19 julho 2022

sandro penna / tinham-me deixado só

 
 
 
Tinham-me deixado só
no campo, sob
a chuva fina, só.
Olhavam-se espantados
mudos
os choupos nus: sofriam
com o meu castigo: castigo
de não saber claramente…
 
E a terra molhada
e os negros altíssimos montes
calavam-se vencidos. Era como
se um deus ruim
tivesse com um só gesto
petrificado tudo.
 
E a chuva lavava aquelas pedras.
 
 
sandro penna
trad. albano martins
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





 

18 julho 2022

josé carlos llop / modus vivendi

 
 
Cruzar de caleche estas terras
esquecidas pelo homem.
Viver um regime antigo
Caçar de madrugada. Cuidar das cartas
para os amigos, do quintal
junto dos muros da casa
– a doçura da tâmara
a sombra da figueira –.
Pôr ordem num pequeno jardim
onde ler ao sol no inverno,
e no verão atrás da gelosia,
toda enlaçada pelas heras
e pelos jasmins. Estar só;
contemplar como se cumprem
os ciclos da natureza,
como crescem os teus filhos.
Escrever ao cair da tarde.
Passear debaixo das estrelas
e o ladrar dos cães
ao longe. Dormir pouco.
Atiçar o fogo na noite,
enquanto os pavões reais
pousam na copa de azinheiras
e tu te submerges nos tomos
daqueles velhos mestres
que já não existem.
 
 
 
josé carlos llop
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997



 

17 julho 2022

gonçalo m. tavares / envelhecer

 
 
O Perigo não tem lugares fixos, como se sabe.
          Nem todos podem morrer de frente
ou com um tiro na nuca,
                    por vezes o assunto último
          é manuseado com tiques mesquinhos,
dedos como bicadas de galinhas imbecis
          a bicar o inútil, o impossível e a pedra.
Morres mas não morres de vez como os animais.
Apodreces, sim, como as plantas (quando envelheces)
          como uma rosa disputada à força por dez mulheres,
ou como um deus imortal atingido cem vezes.
          Talvez eu preferisse ver a erva
como os ratos vêem,
olhando em frente com os olhos minúsculos.
          Mas não.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



16 julho 2022

armando silva carvalho / agrário e agreste

 
 
                           ao António Rego Chaves
 

 
Sobre as árvores encolhidas que gastavam
a ternura de tudo; severo,
o céu desajeitado avolumou-se.
Na testa do silêncio ao pé dos montes
as pedras adoecem entre o sangue
derrota que se imprime por palavras
se imite diminuta nos alqueives.
Sob a capa da terra e no alcance
dos dedos de fora inesperados
a rotura simples dum soluço
ferindo o estrume em breves plantas novas.
Ao longe o grito do abraço em pé
com as vergonhas cobertas de papel
os prumos os cabos o pão um ovo
o vinho deitado, aqui ao pé do choro.



armando silva carvalho
lírica consumível 1965
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007




 

15 julho 2022

rené char / folhas de hipno

 
 
132
Parece que a imaginação, que em graus diversos assombra o espírito de cada criatura, é constrangida a separar-se dela quando não lhe propõe menos do que o «impossível» e o «inacessível» por missão extrema. Há que admitir que a poesia não é soberana em toda a parte.
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




14 julho 2022

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
3
 
os olhos da amizade não necessitam de perfil.
A presença das tuas mãos
acorda-me, a meio
da tarde e do lume,
no horizonte da planície.
E entretanto pequenos animais transmitem
o som interior do vento
ao teu ouvido sério e distraído.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



13 julho 2022

albano martins / quase marinha

 
 
 
Desta luz, mais branca
do que o branco – ou
do que o leite, como diria Safo –,
o que pode dizer-se
é isto: um dia
o céu
acordou sem nuvens e a linha
do horizonte, de tão fresca
e tão nítida
e tão próxima, era o parapeito
onde a infância vivia
debruçada. E era
ali que o voo
das gaivotas começava.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
castália e outros poemas (2001)
glaciar
2021




 

12 julho 2022

wislawa szymborska / uma gente

 
 
Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
 
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira.
 
Levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
 
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
 
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
ao alto, um avião errante rodopia.
 
Oportuna seria a invisibilidade,
uma parda rochosidade,
ou ainda melhor a inexistência
durante um pouquinho ou por mais tempo.
 
Mais ainda está por acontecer, apenas onde e o quê.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem,
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




11 julho 2022

louise glück / a janela aberta

 
 
Um velho escritor ganhara o hábito de escrever a palavra FIM num papel antes de começar as suas histórias, posto o que juntava uma resma de folhas, normalmente fina no Inverno quando a luz do dia era breve, e espessa, por comparação, no Verão quando o seu pensamento se tornava outra vez solto e associativo, expansivo como o pensamento de um jovem. Independentemente da quantidade, colocava essas folhas em branco sobre a última, escondendo-a de tal forma. Só então é que lhe vinha a história, casta e refinada no Inverno, mais livre no Verão. Com este método tornara-se um mestre reconhecido.
 
Trabalhava de preferência numa divisão sem relógios, confiando na luz para lhe dizer quando terminava o dia. No Verão, gostava da janela aberta. Então como é que, no Verão, o vento de Inverno entrava nessa assoalhada? Pois é, gritou ele ao vento, é isto que me tem faltado, esta determinação e rispidez, esta surpresa – Oh, se o pudesse fazer, seria um deus! E deitou-se no chão frio do escritório, a ver o vento voltar os papéis, a misturar o escrito e o que estava por escrever, entre eles o fim.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021



10 julho 2022

peter levitt / uma centena de borboletas

 
 
25
Para onde tu vais
e o lugar onde ficas
é sempre a mesma coisa.
O que sempre desejaste
e o que deixaste ara trás
é tão inútil como o teu nome.
Pelo menos por uma vez, sai
para o campo e olha
para aquele imponente carvalho –
uma bolota continua a pulsar no seu coração.
 
 
 
peter levitt
uma centena de borboletas
trad. sérgio ninguém
edições eufeme
2020
 




09 julho 2022

egito gonçalves / julho

 
 
Julho abria as suas portas, preparava a armadilha, retirou da caixa o violino, os primeiros acordes prometeram o que não podiam dar, peixes de loucura que espadanam no trigo, pastéis de creme em manhãs de domingo, a cor da ternura que incendeia os gestos, anéis de esmeraldas avançando na linha do oceano. Enganador, partiu, deixando sobre a mesa alguns destroços, pedaços de caliça, o rosto da asfixia que retira o horizonte e transforma a solidão em pedra tumular. A casa arrefece, não encontro a paz, sigo a sombra dos meus pensamentos que desenha com cinza a superfície fria onde nenhum verso, nenhuma imagem ressuscita. As portas de julho já fecharam, uma visão agreste de ferrugem chove nos gonzos.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020




08 julho 2022

joaquim manuel magalhães / um amigo

 
 
dado a crepúsculos.
À primeira falsa estrela.
Moço burguês medíocre
de olhar doce como o pez.
 
Disposto às músicas e
ao manso diálogo com mulheres.
De gestos ambíguos mas
fáceis de integrar pelos atentos.
 
Como podes suportar esses desejos
maioritários, injectado de heroína
e com o cabelo grego,
 
jovem heterossexual sensível,
 
entre cervejas, livros de poemas
e cheiros a perfumes importados?
 
 
 
joaquim manuel magalhães
descrições
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981




 

07 julho 2022

ilma rakusa / mala

 
 
Malas são malas
são despedidas
são couro
são vamos embora
são põe-tudo-aí-dentro
de novo
são barrigas
são casas
são nós-vamos-daqui-
para-ali
e dali para
oh sim
muito longe
 
 
 
ilma rakusa
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021




 

06 julho 2022

salvador dali /novembro 1962

 
 
 
6) Entorno café sobre a minha camisa. A primeira reacção dos que não são como eu uns génios, quer dizer, os outros, é de se limparem. Eu sou completamente o contrário. Desde a infância que tenho o hábito de espiar o instante em que as criadas e os meus pais não me pudessem surpreender para, lesta e furtivamente, entornar entre a camisa e a pele, o mais viscoso resto de açúcar do meu café com leite. Além da indizível voluptuosidade que o líquido me causava, correndo gota a gota até ao umbigo, a sua secagem progressiva, e em seguida o tecido colando-se à minha pele, ofereciam-me a possibilidade de persistentes constatações periódicas. Puxando lentamente, progressivamente ou por sacudidelas esperadas durante muito tempo como delícias, eu provocava novas adesões da pele e da camisa, frutuosas em emoções e filosóficos pensamentos que duravam todo o dia. Esse prazer secreto da minha precoce inteligência atingiu o seu paroxismo quando, já um adolescente, os pelos vieram acrescentar à colagem do centro do meu peito (no mesmo sítio onde eu localizava a potencialidade da minha fé religiosa) e do tecido da camisa (invólucro litúrgico) uma nova complicação. De facto, os pelos sujos de açúcar unidos ao tecido eram, sei-o agora, aqueles que mantêm o contacto electrónico graças ao qual o sempre inconstante elemento viscoso se tornava no elemento mole de uma autêntica máquina cibernética, mística que nesta manhã de 6 de Novembro acabo de inventar, entornando por cima de mim, pela graça de Deus (e de uma maneira aparentemente involuntária), o meu café com leite muito açucarado (pelo meu inconsciente) de uma forma delirante. É uma verdadeira pasta açucarada que cola a minha mais delicada camisa aos pelos do meu peito tão cheio de fé religiosa.
 
Deveria acrescentar, sintetizando-me, que sendo um génio, poder-se-ia muito, muito bem que Dali desse simples acidente (que para muitos seria simplesmente um insignificante aborrecimento) soubesse converter todas as possibilidades numa máquina mole que me permitisse alcançar ou antes, tender para a fé que, até ao presente, não era senão uma extraordinária prerrogativa da omnipotência de Deus.
 
 
 
salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965
 




05 julho 2022

paul éluard / dito do amor

 
 
I
 
O nosso silêncio fará calar a tempestade
Tornará sensata a folhagem profunda
 
Tenho nas mãos duas mãos abandonadas
 
 
II
 
Este barco estava mergulhado para sempre na bruma
 
Quem fala de ódio de longe em longe
Mais de perto vai dizendo o amor
 
 
III
 
Os olhos penetrantes soberana inocente
Os seios leves de tudo ela ria
 
E o mar dispersou a areia do seu trono.
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar 1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002

04 julho 2022

louis aragon / arte poética

 
 
 
Perguntam-me com insistência
Porque é que de vez em quando mudo
De linha
É por uma razão
Verdadeiramente indigna
De ser ex
Pressa
 
 
 
louis aragon
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




 

03 julho 2022

emily dickinson / há uma zona cujos anos iguais

 
 
Há uma Zona cujos Anos iguais
Nenhum Solstício interrompe –
Cujo Sol constrói um perpétuo Meio-Dia
E as Estações perfeitas se detêm –
 
Cujo Verão chega ao Verão, até
Que os Século de Junho
E os Séculos de Agosto cessam
E a Consciência – o Meio-Dia.
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014