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06 julho 2022

salvador dali /novembro 1962

 
 
 
6) Entorno café sobre a minha camisa. A primeira reacção dos que não são como eu uns génios, quer dizer, os outros, é de se limparem. Eu sou completamente o contrário. Desde a infância que tenho o hábito de espiar o instante em que as criadas e os meus pais não me pudessem surpreender para, lesta e furtivamente, entornar entre a camisa e a pele, o mais viscoso resto de açúcar do meu café com leite. Além da indizível voluptuosidade que o líquido me causava, correndo gota a gota até ao umbigo, a sua secagem progressiva, e em seguida o tecido colando-se à minha pele, ofereciam-me a possibilidade de persistentes constatações periódicas. Puxando lentamente, progressivamente ou por sacudidelas esperadas durante muito tempo como delícias, eu provocava novas adesões da pele e da camisa, frutuosas em emoções e filosóficos pensamentos que duravam todo o dia. Esse prazer secreto da minha precoce inteligência atingiu o seu paroxismo quando, já um adolescente, os pelos vieram acrescentar à colagem do centro do meu peito (no mesmo sítio onde eu localizava a potencialidade da minha fé religiosa) e do tecido da camisa (invólucro litúrgico) uma nova complicação. De facto, os pelos sujos de açúcar unidos ao tecido eram, sei-o agora, aqueles que mantêm o contacto electrónico graças ao qual o sempre inconstante elemento viscoso se tornava no elemento mole de uma autêntica máquina cibernética, mística que nesta manhã de 6 de Novembro acabo de inventar, entornando por cima de mim, pela graça de Deus (e de uma maneira aparentemente involuntária), o meu café com leite muito açucarado (pelo meu inconsciente) de uma forma delirante. É uma verdadeira pasta açucarada que cola a minha mais delicada camisa aos pelos do meu peito tão cheio de fé religiosa.
 
Deveria acrescentar, sintetizando-me, que sendo um génio, poder-se-ia muito, muito bem que Dali desse simples acidente (que para muitos seria simplesmente um insignificante aborrecimento) soubesse converter todas as possibilidades numa máquina mole que me permitisse alcançar ou antes, tender para a fé que, até ao presente, não era senão uma extraordinária prerrogativa da omnipotência de Deus.
 
 
 
salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965
 




14 setembro 2009

salvador dali / a conquista do irracional





(Extracto do texto inserto em Edições Surrealistas - 1935)


Em 1935, Dali consagrou a Picasso um poema que reunia todas as suas ideias e premonições sobre a experiência genial daquele que considera como o seu outro pai.




O fenómeno biológico
e dinástico
que constitui o cubismo
de
Picasso
foi
o primeiro grande canibalismo imaginativo
que ultrapassa as ambições experimentais
da física matemática
moderna.

A vida de Picasso
constituirá a base polémica
ainda incompreendida
segundo a qual
a psicologia física
abrirá de novo
uma brecha de carne viva
e de obscuridade
na filosofia.
Visto que por causa
do pensamento materialista
anárquico
e sistemático
de
Picasso
poderemos conhecer fisicamente
experimentalmente
e sem necessidade
as novidades «problemáticas» psicológicas
de sabor kantiano
dos «gestaltistas»
toda a miséria
dos
objectos de consciência
localizados e confortáveis
com os seus infames átomos
as sensações infinitas
e
diplomatas.

Porque o pensamento hipermaterialista
de Picasso
demonstra
que o canibalismo da raça
devora
«a espécie intelectual»
que o vinho regional
compromete
a berguilha familiar
das matemáticas fenornelogistas
do futuro
que existem «figuras estritas»
extrapsicológicas
intermediárias
entre
a gordura imaginativa
e
os idealismos monetários
entre
as aritméticas transfinitas
e as matemáticas sanguinárias
entre a entidade «estrutural»
de um «linguado obsidiante»
e a conduta dos seres vivos
em contacto com o «linguado obsidiante»
porque o linguado em questão
permanece
totalmente alheio
à compreensão
da
teoria gestaltista
já que
essa teoria da figura
estrita
e da estrutura
não possui
meios físicos
que permitam
a análise
nem mesmo
o registo
do comportamento humano
em comparação
com as estruturas
e as figuras
representando-se
objectivamente
como
fisicamente delirantes
pois
não existe
nos nossos dias
que eu saiba
uma física
da psico patologia
uma física da paranóia
o que não poderia ser considerado
senão
como
a base experimental
da próxima
filosofia
da
psico-patologia
da próxima
filosofia da actividade «crítico-paranóica»
a qual um dia
tentarei examinar polemicamente
se tiver tempo
e disposição.









salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965








13 agosto 2007

agosto






1) Esta noite pela primeira vez desde há pelo menos um ano, olho o céu estrelado. Acho-o pequeno. Sou eu que cresço ou é o Universo que se encolhe? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Que diferença das dolorosas contemplações siderais da minha adolescência. Reduziam-me no que o meu romantismo de então acreditava: as insondáveis e infinitas imensidades cósmicas. Estava inteiramente dominado pela melancolia porque todas as minhas emoções eram indefiníveis. Agora, pelo contrário, a emoção é tão definível que poderia moldá-la. Decidi neste instante encomendar um molde de gesso, representando, com o máximo de exactidão, a emoção provocada pela contemplação da abóbada celeste.


Estou reconhecido à física moderna por ter fortalecido, com as suas investigações, a agradável noção, sibarítica e antiromântica entre outras que «o espaço é finito». A minha emoção tem a forma perfeita de um «continuum» com quatro nádegas, a própria ternura da carne do Universo. Ao deitar-me, extenuado pelo dia de trabalho, faço o possível para conservar na cama a minha emoção, reconfortando-me cada vez mais e dizendo-me que, no final de contas, o Universo – mesmo expandível com toda a matéria que contém, por mais abundante que possa parecer – não é senão uma pura e simples questão de favas contadas. Estou tão contente por ver finalmente o Cosmos reduzido a estas proporções razoáveis que seria capaz de esfregar as mãos se esse gesto abominável não fosse tipicamente anti-daliano. Antes de adormecer, em vez de esfregar as mãos, beijá-las-ei com a mais pura alegria, repetindo que o Universo, como qualquer coisa material, tem o ar terrivelmente mesquinho e acanhado se o compararmos, por exemplo, com a amplidão de uma fronte pintada por Rafael.









salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965