6) Entorno café sobre a minha camisa. A primeira
reacção dos que não são como eu uns génios, quer dizer, os outros, é de se
limparem. Eu sou completamente o contrário. Desde a infância que tenho o hábito
de espiar o instante em que as criadas e os meus pais não me pudessem
surpreender para, lesta e furtivamente, entornar entre a camisa e a pele, o
mais viscoso resto de açúcar do meu café com leite. Além da indizível
voluptuosidade que o líquido me causava, correndo gota a gota até ao umbigo, a
sua secagem progressiva, e em seguida o tecido colando-se à minha pele,
ofereciam-me a possibilidade de persistentes constatações periódicas. Puxando lentamente,
progressivamente ou por sacudidelas esperadas durante muito tempo como
delícias, eu provocava novas adesões da pele e da camisa, frutuosas em emoções
e filosóficos pensamentos que duravam todo o dia. Esse prazer secreto da minha
precoce inteligência atingiu o seu paroxismo quando, já um adolescente, os pelos
vieram acrescentar à colagem do centro do meu peito (no mesmo sítio onde eu
localizava a potencialidade da minha fé religiosa) e do tecido da camisa
(invólucro litúrgico) uma nova complicação. De facto, os pelos sujos de açúcar
unidos ao tecido eram, sei-o agora, aqueles que mantêm o contacto electrónico
graças ao qual o sempre inconstante elemento viscoso se tornava no elemento
mole de uma autêntica máquina cibernética, mística que nesta manhã de 6 de Novembro
acabo de inventar, entornando por cima de mim, pela graça de Deus (e de uma
maneira aparentemente involuntária), o meu café com leite muito açucarado (pelo
meu inconsciente) de uma forma delirante. É uma verdadeira pasta açucarada que
cola a minha mais delicada camisa aos pelos do meu peito tão cheio de fé
religiosa.
Deveria acrescentar, sintetizando-me, que sendo um
génio, poder-se-ia muito, muito bem que Dali desse simples acidente (que para
muitos seria simplesmente um insignificante aborrecimento) soubesse converter
todas as possibilidades numa máquina mole que me permitisse alcançar ou antes,
tender para a fé que, até ao presente, não era senão uma extraordinária
prerrogativa da omnipotência de Deus.
salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965