31 maio 2018

herberto helder / narração de um homem em maio




Estou deitado no nome: maio, e sou uma pessoa
que saiu
violenta e violentamente para o campo.
Um homem deitado entre os malmequeres
rotativos do mês através- 
sado pelo movimento.
É a noite aproximada com o livro
dentro. Deitado sobre bocados
de estrelas no pensamento.
Era a casa absorvida na manhã
embatente.
Livro da poesia arrebatada. Poesia
da mulher emparedada no amor
e o homem emparedado na destruição
do amor.
É agora o leitor com a atenção corrupta
sobre o livro.
O livro que arde nos ossos
do leitor afogado no poema arrebatado.
Estou estendido como autor na ligeira
palavra que a noite molha
e os ventos sopram como se sopra
uma brasa.
Um homem que saiu de casa, com toda
a magnífica violência do amor.
É o tempo revelador.
Agora inteligente deste lado,
contra o lado exemplar de maio aglomerado
Espécie de primavera comburente.
A dor total. O livro.
O pensamento do amor. A
experiência.
E a vida ardente do autor.

Deitei-me também no campo
de outras coisas. Com discurso. Com
rigoroso segredo.
Vi o caçador levantar o arco-íris
e atirar, fechada, a morte
ao cabrito primaveril.
E tudo calei como experiência
de um sono inspirado.
Vi a ressurreição, maio
infestado. Ouvi
passar o ciclista da primavera
sobre o ruído da ressurreição.
Conheci a existência do roubador, o ciclista
que penetra no exemplo da fábula.
Estou deitado em meio campo
de uma espécie de despedida.
Meio campo de maio, e outro meio
de pessoalíssima vida.

São coisas que já não estão mais
do que na maturidade da idade.
Fiz comércio. Indústria. Dor.
A garganta lavrada pelo canto.
Ia a bicicleta com o seu poeta que punha a mão
no poema da bicicleta.
E iam todos — poema, bicicleta, poeta e mão —
por sobre o coração da terra e a ressurreição
da primavera. Ganhei
a minha idade concluída.
Cacei. Ou plantei. Ou cortei.
A vida vida.
Havia o movimento com a sua bicicleta
e a canção com o seu poeta.
A vida merecida.

Vejo ervas movimentadas e estreias paradas.
E a consumação das coisas universais.
Geram-se de novo as coisas
universais. A pureza.
A natureza da pureza.
A própria natureza das coisas universais.
Da dor sei o amor.
O amor do ardor. Sei mais
do que posso saber da matéria do amor.
Fico deitado no campo revolucionário:
a paciente brutalidade da primavera
é como a brutalidade
delicada da paixão.
O violentamente demorado amor,
e a sua ressurreição.

Já estivera deitado ao lado das mulheres.
Elas paravam completamente
como caçadores ou bichos fascinados.
Não tinham pensamento nem idade.
Era a força do corpo. O movimento.
Estou neste lado desse lado
do corpo. Sei o poema
do conhecimento informulado.
Respira monotonamente uma estrela
entre os ossos.
Estrela levemente destruída.
Roída pelo louco rato lírico
da idade. Estou no pensamento.
Parado no movimento de uma vida.

Mexo a boca, mexo os dedos, mexo
a ideia da experiência.
Não mexo no arrependimento.
Pois o corpo é interno e eterno
do seu corpo.
Não tenho inocência, mas o dom
de toda uma inocência.
E lentidão ou harmonia.
Poesia sem perdão ou esquecimento.
Idade de poesia.

1953-60


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996









30 maio 2018

gil t. sousa / instantes solares




manhãs inteiras
atados com cordas de luz

ao soneto solar
que inundava as pedras

os anjos à espera
de soltarem a voz

asas pacientes
tecendo nuvem a nuvem

castelos de céu
para onde, perfeita,

se ia amurar  
a solidão



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014










29 maio 2018

eugénio de andrade / arte de navegar




Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.




eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000









28 maio 2018

konstandinos kavafis / prece




Nos seus fundos tomou um marinheiro o mar. –
Sua mãe vai e acende, por ignorar,

diante da Virgem uma alta vela
que volte depressa e faça bom tempo apela –

e não pára de escutar se o vento esmorece.
Porém enquanto ela reza e faz uma prece,

aquele ícone ouve, sério e triste,
que seu filho ao qual espera já não existe.


konstandinos kavafis
os poemas
adenda, 1.ª  (1897-1904)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







27 maio 2018

fernando pessoa / corpos




O meu corpo é o abismo entre eu e eu.

Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
E possuir-te é sonhar-te de mais perto

As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem

Eu porque me conheço, me separo
De mim, e penso, e o pensamento é avaro

A hora passa. Mas meu sonho é meu.

s.d.




fernando pessoa
pessoa inédito
livros horizonte
1993







26 maio 2018

ezra pound / o olho que vê




Os cães pequenos olham para os cães grandes;
Observam as intratáveis dimensões
E as curiosas imperfeições do odor.
Eis um grupo de machos compenetrados:
Os homens jovens olham de cima os mais velhos
Consideram-lhes a mente de meia-idade
Observam-lhes as correlações inexplicáveis.

Tsin-Tsu disse:
Somente nos cães pequenos e nos jovens
 Encontramos a observação minuciosa.



ezra pound
antologia poética
personae
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960








25 maio 2018

carlos de oliveira / descida aos infernos



3
Descendo sempre
em redor me projecto
na lama escura quase por criar
e pelas margens ácidas deste mortal trajecto
arrepiam-me estrelas a levedar.

Toldam-me os olhos gigantes de placenta,
génios abortados no parto destas furnas
onde não chega nunca, ó coisas diurnas,
a vossa luz piedosa,




carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001








24 maio 2018

mário-henrique leiria / um dia estarei na praça




um dia estarei na praça
lá onde se ergue a enorme
estátua vertical
brilhando ao sol

em silêncio     
encontrarei o grande segredo
da tua vinda
porque
tu aparecerás
olhos     sexo     boca
seios fulgurantes
enquanto vários homens
vão escavando lentamente o solo

eu sei
que caminharás para mim
nada poderás fazer
senão isso
o leito onde existiremos
já estará construído

caminharemos     abraçados
eu e tu
o grande milagre
das aves que voam para a noite
o caminho para o poço
povoado de seres desconhecidos
e amados por nós dois



mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







23 maio 2018

luis alberto de cuenca / a casa da minha infância





Fui feliz naquela casa repleta de flores
e de livros proibidos. A casa em que tu eras
Ginevra nos nossos jogos, e eu era o rei Artur
(não havia Lancelote para arruinar tudo).
A casa onde foste donzela das minhas ânsias,
senhora dos meus suspiros, muralha em meu peito,
cofre do meu tesouro, brinde dos meus soldados.
A casa que tinha uma arca misteriosa
que guardava o segredo da sabedoria
e do amor eterno, e a droga da fé,
a taça do esquecimento, o cálice da coragem.
A casa onde, à tarde, com sonhos partilhados,
enquanto a roupa dourava ao sol lá na varanda,
te nomeei soberana de um reino em que a noite
não existia e a morte não ditava as leis.



luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






22 maio 2018

luís filipe parrado / a maçã mordida





À primeira dentada,
como um daqueles peixes
escorregadios, raiados de sangue,
derramados sobre o mármore das bancadas,
a maçã foge-me
por entre os dedos e desaba
no chão sujo coberto
de escamas e água negra,
consigo vê-la a cair, a chocar,
depois, num sufoco, a rolar
até embater numa caixa de madeira
cheia de folhas de alface
apodrecidas. E ali fica, perdida,
mordida uma única
vez, longe das minhas mãos,
pardais tombados
no ar com assombro. Descubro que
no mundo não há coisa mais triste
que os olhos castanhos
da minha jovem
mãe.



luís filipe parrado
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018










21 maio 2018

rui costa / narciso


  
No rio a tua imagem parece menos tua:
A memória é uma líquida mensagem de aloendros
e o teu opaco ardor apenas o resultado disso:
Um coração já pasmado de algum travo
mordendo uma outra água com vértices ao fundo.
Não te iludas. O que tu vês és mesmo tu:
Restos de um homem às portas de outro homem
e o futuro de olhos baixos, o mar a ver.




rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017









20 maio 2018

ricardo reis / sê dono de ti




Sê o dono de ti
Sem fechares os olhos.

 
Na dura mão aperta
Com um tacto encavado
O mundo exterior
Contra a palma sentindo
Outra cousa que a palma.

11-8-1918



poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional-casa da moeda
1994






19 maio 2018

marguerite duras / textos secretos




Dizem que o tempo do pleno verão já se anun-
cia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão,
no fundo do parque. Que às vezes não são vistas
por ninguém durante o tempo da sua vida e que
ficam  assim ali no seu perfume esquartejadas
durante alguns dias e que depois se deixam cair.
Nunca vistas por esta mulher solitária que
esquece. Nunca vistas por mim, morrem.



marguerite duras
textos secretos
o homem atlântico
trad. tereza coelho
quetzal
1999








18 maio 2018

nicolás guillén / dois meninos




DOIS meninos, dois ramos de um mesmo arbusto de miséria,
juntos, na noite quente, sob o mesmo portal,
dois meninos, mendigos cheios de pústulas,
comem de um mesmo prato como cães esfomeados
a comida lançada por preia-mar de banquetes.
Dois meninos: um negro, o outro branco.

Suas cabeças unidas, semeadas de piolhos;
seus pés muito juntos e descalços;
as bocas incansáveis num mesmo frenesim de mandíbulas,
e sobre a comida gordurenta, azeda,
duas mãos: uma negra, outra branca.

Que união tão sincera e tão forte!
Estão ligados pelos estômagos e pelas noites foscas,
e pelas tardes melancólicas nos passeios brilhantes,
e pelas manhãs explosivas,
quando o dia desperta com seus olhos alcoólicos.

Estão unidos como dois bons cães…
Juntos assim como dois bons cães,
um negro, o outro branco,
quando chegar a hora de marchar
irão querer marchar como dois homens bons,
um negro, o outro branco?

Dois meninos, dois ramos de um mesmo arbusto de miséria,
Comem, na noite quente, sob o mesmo portal.


nicolas guillen
antologia poética I
tradução de carlos grifo
editorial presença
1970







17 maio 2018

vladimir maiakóvski / ordem n.º 2 ao exército da arte




É a vós –
barítonos bem alimentados –
que desde Adão
até hoje
comoveis as espeluncas – a que chamam teatros –
com as árias dos Romeus, árias das Julietas.

É a vós –
artistas-pintores,  
gordos como cavalos
ornato relinchante e devorador da Rússia,
acachapados no fundo dos estúdios,
a aperfeiçoar constantemente florinhas e engodos.

É a vós –
escondidos à sombra de místicos folhetos,
arando com mil rugas vossas frontes –
pequenos futuristas,
pequenos imaginistas,
pequenos acmeistas,
embaraçados entre a teia das rimas.

É a vós –
que em mechas hirsutas tendes transformado
vossos cabelos bem penteados,
e o verniz dos sapatos em tamancos
«prolecultistas»
que remendais
o fraque desbotado de Puchkine.


É a vós –
bailarinos, tocadores de trompete,
que vos entregais abertamente,
ou calmamente pescais,
e imaginais o futuro
como uma academia imensa.
É a vós que o digo,
eu…
genial ou não genial,
que abandonei a quinquilharia da arte
e trabalhei na Rosta,
eu vo-lo digo –
antes que vos expulsem à coronhada.
Deixem-se disso!

Deixem-se disso!
esqueçam,
ponham de lado
rimas,
romances,
roseiras em flor,
e todas as outras «melrancolias»
dos arsenais das artes.

A quem interessa que
«- Ah, pobre criança!
como ele a amava
e como era infeliz…»?
Hoje
necessitamos de mestres
e não cabeludos pregadores.
Oiçam-nas!
As locomotivas gemem,
sopram pelas fendas, pelo chão:
«Dêem-nos o carvão do Don!
Serralheiros,
mecânicos, ao Depósito!»

Em cada embocadura de rio
vemos os barcos deitados,
um buraco no flanco, gritarem nas docas:
«Dêem-nos a nafta de Baku!»

Enquanto nos perdemos em querelas vãs,
buscando não sei que secreto sentido,
atravessa as coisas um enorme soluço:
«Dêem-nos formas novas!»

Já não há imbecis
para, multidão boquiaberta,
esperar que caia dos lábios do «mestre» uma palavra.
Camaradas,
inventai uma arte nova
que arranque
a República da lama.

(1922)



vladimiro maiakowski
autobiografia e poemas
trad. de carlos grifo
presença
1977