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17 dezembro 2023

konstandinos kaváfis / trouxe à arte

 
 
Dou-me ao enleio aqui.     Desejos e sensações
trouxe à Arte –     umas meio vistas,
caras e linhas;     de inacabados amores
umas memórias incertas.     A ela me deixe.
Sabe formar     Figura da Beleza;
quase imperceptível     completa a vida,
combina impressões,      combina os dias.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005





21 novembro 2023

konstandinos kavafis / o espelho na entrada

 




 

A casa rica tinha no vestíbulo
um espelho enorme, imenso, muito antigo,
comprado há pelo menos oitenta anos.
 
Um perfeito rapaz, aprendiz de alfaiate –
e aos domingos atleta amador –
chegou com um embrulho. Entregou-o
a alguém da casa que o levou p’ra dentro
por causa do recibo. O mandarete
ficou sòzinho à espera ali na entrada.
E foi até ao espelho e começou a ver-se
e a ajeitar a gravata. Uns minutos depois,
trouxeram-lhe o recibo, e foi-se embora.
 
Porém o espelho antigo que já vira,
nos tantos anos em que fora espelho,
milhares e milhares de imagens várias,
ficou contente enfim, cheio de orgulho,
pois recebera em si, dentro de si,
inteira, tal beleza, por instantes.
 
(1930)
 
 
 
constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003


05 maio 2023

konstantinos kaváfis / na aldeia aborrecida




 

Na aldeia aborrecida em que trabalha –
empregado num estabelecimento
comercial; muito jovem – e onde aguarda
que passem ainda dois ou três meses,
dois ou três meses ainda para que o trabalho abrande,
e assim possa ir para a cidade e todo
se entregar ao bulício e à diversão;
na aldeia aborrecida em que aguarda –
caiu esta noite na cama tomado pelo amor,
abrasada toda a sua juventude na paixão da carne,
numa bela intensidade toda a sua formosa juventude.
E com o sono chegou o prazer; no sono
vê e faz sua a imagem, a carne que desejava…
 
1925
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017


 



05 outubro 2022

konstandinos kavafis / no porto

 


 

Por um barco de Tenos, jovem, há vinte e oito anos nascido,
Émès a este porto sírio foi trazido
com o intuito de aprender a ser de essências vendedor.
Porém adoeceu na viagem de mar. E logo ao pôr
os pés em terra, morreu. O enterro pobre até mais não poder ser
teve lugar aqui. Algo, poucas horas antes de morrer,
«casa», «pais muito velhos», num murmúrio dizia.
Mas quem eram estes ninguém sabia,
nem qual no grande mundo heleno a dele terá sido.
Melhor. Pois enquanto assim
jaz neste porto falecido,
hão-de esperá-lo vivo seus pais até ao fim.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




04 março 2022

konstandinos kavafis / muitas vezes verifiquei…

 
 
 
Muitas vezes verifiquei que os homens dão pouca importância às palavras. Vou explicar-me. Uma pessoa banal (com banal não quero eu dizer que seja tola, apenas alguém que não é relevante) tem uma ideia qualquer que é de censura a uma instituição ou a uma opinião generalizada; sabe que a grande maioria pensa o contrário e por tal razão cala-se, pensa que não lhe convém falar e argumenta que a discussão não altera nada. É um grande erro. Eu actuo de outra maneira. Censuro, por exemplo, a pena de morte. Quando a ocasião se proporciona declaro-o, não porque esteja convencido de que os Estados vão fazer a sua abolição no dia seguinte, mas por estar convencido de que vou contribuir para o triunfo da minha opinião. É indiferente que ninguém esteja de acordo. As minhas palavras não caem em saco roto. Talvez alguém chegue a repeti-las, e possam ir ter a ouvidos que as oiçam e apoiem. Pode ser que alguém, entre os que não concordam agora, no futuro vá recordá-las em circunstância favorável e, havendo o concurso de outras circunstâncias, se convença ou ponha em dúvida a sua convicção, que lhe é contrária. E o mesmo se passa com outros problemas sociais, e outras coisas em que é sobretudo necessário haver Acção. Reconheço que sou um cobarde e não posso actuar. Limito-me, por isso, a falar. Embora não acredite que as minhas palavras sejam supérfluas. Outro existirá que vai actuar. E as minhas palavras – palavras de um cobarde – vão facilitar-lhe a actuação. Prepara-lhe o terreno.
 
(19-10-1902)
 
 
 
konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994




01 janeiro 2022

konstandinos kaváfis / ítaca

 
 
Quando saíres a caminho da ida para Ítaca,
faz votos para que seja longo o caminho,
cheio de aventuras, cheio de conhecimentos.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o zangado Poséidon não temas,
coisas assim no teu caminho não acharás nunca,
se o teu pensamento permanecer elevado, se emoção
requintada o teu espírito e o teu corpo tocar.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o selvagem Poséidon não encontrarás,
se com eles não carregares na tua alma,
se a tua alma não os colocar à tua frente.
 
Faz votos para que seja longo o caminho.
Para que sejam muitas as manhãs de verão
nas quais com que contentamento, com que alegria
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para que páres em feitorias fenícias,
e para que adquiras as boas compras
coisas de nácar e coral, de âmbar e de ébano,
e essências de prazer de qualquer espécie,
quanto mais abundantes puderes essências de prazer;
para que vás a muitas cidades egípcias,
para que aprendas a e aprendas com os letrados.
 
Deves ter sempre Ítaca na tua mente.
A chegada ali é o teu destino.
Mas não apresses em nada a tua viagem.
É melhor durar muitos anos;
e já velho fundeares na ilha,
rico do que ganhaste no caminho,
sem esperares que te dê Ítaca riquezas.
 
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem Ítaca não terias saído ao caminho.
Mas já não tem para te dar.
 
E se um tanto pobre a encontrares, Ítaca não te enganou.
Sábio como te tornaste, com tanta experiência,
já hás-de compreender o que significam Ítacas.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1905-1915)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




06 outubro 2021

konstantinos kaváfis / as almas dos velhos

 
 
Dentro dos velhos corpos estragados
quedam-se as almas dos velhos.
Que tristes estão as pobres
e como aborrecem a mísera vida que arrastam.
Como a temem perder e como a amam
essas almas confusas e contraditórias
que – tragicómicas – se acolhem
à velha pele gasta.
 
 
1901
 
 

 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017




12 maio 2021

konstantinos kaváfis / prazer

 
 
Alegria e bálsamo da minha vida, recordar as horas
em que achei e retive o prazer como o qu’ria.
Alegria e bálsamo da minha vida, ter rejeitado
todo o prazer de amores rotineiros.
 
 
1917
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017







22 fevereiro 2021

konstantinos kaváfis / a mesa do lado

 
 
Terá apenas vinte anos.
E, no entanto, estou certo de que, quase os mesmos
anos antes, gozei desse mesmo corpo.
 
Não é de modo algum excitação erótica.
Há pouco tempo que entrei neste casino:
nem sequer tive tempo de beber demais.
Esse mesmo corpo gozei-o eu.
 
Se não recordo onde – não importa o ter esquecido.
 
Ah, e agora, ei-lo que está sentado na mesa do lado,
reconheço cada gesto seu – e sob a roupa
volto a ver os amados membros nus.
 
1918
 
 
 
konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





11 dezembro 2020

konstandinos kavafis / cinzentos

 
 
Ao olhar uma opala meio cinzenta
lembrei-me de dois belos olhos cinzentos
que vi; haverá uns vinte anos…
 
………………………………………………………………
 
Durante um mês amámo-nos.
Foi-se embora depois creio que para Esmirna,
para lá trabalhar, e nunca mais nos vimos.
 
Ter-se-ão desfeado – se vive – os olhos cinzentos;
ter-se-á estragado o belo rosto.
 
Memória minha, guarda-os tu tais como eram.
E, memória, o que podes deste meu amor,
o que podes traz-me de volta esta noite.
 
 
 
 
konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994




07 setembro 2020

konstantinos kaváfis / desejos



Como corpos formosos de mortos que não envelheceram
e que em pranto sepultaram em esplêndido mausoléu,
rosas na cabeça e jasmins a seus pés –
a isto se assemelham os desejos que passaram
sem se cumprir; sem merecer uma única
noite de prazer ou um luminoso amanhecer.

1904



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017










19 junho 2020

konstantinos kaváfis / sabem os sábios o que se avizinha




                               «Pois sabem os deuses o que há-de ser; os homens,
                               o que está a ser, e os sábios, o que está para ser.»

                               Filóstrato, Vida de Apolónio de Tiana, 8.7.



Os homens sabem o que está a ser.
O que há-de ser conhecem-no os deuses,
únicos e absolutos senhores das luzes.
Mas, do que há-de ser, os sábios apercebem
o que se avizinha. O ouvido deles

em horas de grave estudo,
se sobressalta. O secreto rumor
lhes chega de feitos que se acercam.
E a ele atendem reverentes. Entanto, na rua,
lá fora, as gentes nada ouvem.

1915



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





02 março 2020

konstantinos kaváfis / che fece… il gran rifiuto



Para algumas pessoas há-de chegar o instante
em que têm de dizer o grande Não ou o grande Sim.
Nessa altura se mostra qual delas tem dentro de si
pronto o Sim, qual o diz e logo segue adiante

do seu valor segura, e da sua certeza.
Quem nega não renega. E à pergunta, repetida,
“Não” diria. Porém durante toda a vida
Aquele “Não” tão certo lhe há-de ter a vida presa.

1901



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





13 janeiro 2020

konstandinos kaváfis / quando se excitam



Procura guardá-las, poeta
por muito que sejam poucas as coisas que podem ser detidas.
As visões do teu erotismo.
Mete-as, meio escondidas, nas tuas frases.
Procura segurá-las, poeta,
quando se excitam na tua mente,
à noite, ou no esplendor do meio-dia.



konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005








22 outubro 2019

konstantinos kaváfis / compreensão




Os anos da minha juventude, a minha vida de prazer –
que claramente vejo agora o seu sentido.

Que inúteis remorsos, que estéreis…

Mas não via o sentido nessa altura.

Em meio à minha dissoluta vida jovem
ia tomando forma a minha poesia,
ia-se desenhando o contorno da minha arte.

Por isso nunca houve firmes arrependimentos.
E as decisões de me dominar, de mudar
duravam duas semanas se tanto.


1918



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





27 setembro 2019

konstandinos kaváfis / veio ficar




Seria uma hora da noite
ou uma e meia.

Num canto da taberna,
por trás de um tabique de madeira.
Para além de nós dois, estava o local deserto,
mal iluminado por uma lâmpada de petróleo.
Na porta dormitava o empregado
cansado da vigília.

Ninguém nos podia ver. Mas já
tanto nos tínhamos excitado,
que não éramos capazes de precaução.

As roupas entreabriam-se – não eram muitas,
já que ardia o divino mês de Julho.

Da carne o prazer por entre
a roupa entreaberta:
breve nudez da carne – cuja imagem
percorreu vinte e seis anos; e agora veio
ficar neste poema.

1919



konstantinos kaváfis
konstantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





31 maio 2019

konstandinos kavafis / lembra-te, corpo…



Corpo, lembra-te não só do quanto foste amado,
não só das camas onde te deitaste,
mas também daqueles desejos que para ti
brilhavam nos olhos abertamente,
e tremiam na voz – e algum
obstáculo casual os frustrou.
Agora que tudo está no passado,
quase parece como também àqueles
desejos tivesses sido dado – como brilhavam,
lembra-te, nos olhos que para ti olhavam;
como tremiam na voz, para ti, lembra-te, corpo.


konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005






06 maio 2019

konstandinos kavafis / dias de 1903




Não voltei a encontrá-los – esses dias tão depressa perdidos…
esses olhos poéticos, esse pálido
rosto… no anoitecer da rua…

Não os encontrei mais – aos adquiridos inteiramente por acaso,
que tão facilmente deixei;
e que depois com ansiedade queria.
Esses olhos poéticos, esse pálido rosto,
aqueles lábios não os encontrei mais.


konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







07 janeiro 2019

konstandinos kavafis / quanto puderes




E se não podes fazer a tua vida como a queres,
pelo menos procura isto
quanto puderes: não a aviltes
na muita afinidade com o mundo,
nos muitos movimentos e conversas.

Não a aviltes levando-a,
passeando-a frequentemente e expondo-a
em relações e convívios
da parvoíce do dia-a-dia,
até se tornar como uma estranha pesada.



konstandinos kavafis
os poemas
I (1905-1915)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







13 agosto 2018

konstandinos kavafis / vozes




Vozes ideais e amadas
daqueles que morreram, e daqueles que são
para nós perdidos como os mortos.

Às vezes nos nossos sonhos falam;
às vezes no pensamento as ouve a mente.

E com o seu som por um momento regressam
sons da primeira poesia da nossa vida –
qual música, à noite, longínqua, que se apaga.



konstandinos kavafis
os poemas
adenda, 1.ª  (1897-1904)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005