30 abril 2025

sophia de mello breyner andresen / fragmento de «os gracos»

 
 
 
«…………………………………………………………..»
 
Os ricos nunca perdem a jogada
Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam os erros dos outros
Administram os erros dos outros
São hábeis e sábios
Têm uma longa experiência do poder
E quando não podem usar a própria força
Usam a fraqueza dos outros
Apostam na fraqueza dos outros
E ganham
 
Tecem uma grande rede de estratagemas
Uma grande armadilha invisível
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um touro na arena
 
«……………………………………………………………»
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética
poemas reencontrados
assírio & alvim
2015




 

29 abril 2025

fernando pinto do amaral / elegia do porto

  
 
Fechei o círculo: a minha adolescência
jaz morta e arrefece. Ainda é noite
e os caminhos já não se bifurcam
enquanto a lua vai sorrindo. A esperança,
sabemos que é a última a morrer,
mas a cidade é toda um déjá vu,
um abismo de imagens repetidas
por espelhos iludindo outros espelhos
acompanhando um rio que nunca teve
quem o cantasse – diz-nos a Agustina
na frase inicial do seu romance
sobre a filha infeliz do coronel Owen,
um desses ingleses que este Porto
soube adoptar num século romântico
de jardins desbotados e emoções
por vezes muito óbvias, embebidas
na treva e no silêncio. Alguns passos
feitos de sombra e água e logo tudo
recupera o perfil do esquecimento,
a consistência mole das coisas surdas
que adormecem as dores e os prazeres
em casulos de vidro litoral
a meio de um percurso que retoma
nobrezas, burguesias, novos-ricos,
pessoas sempre sólidas, compactas,
povoando os anódinos destinos
com sinais quase sempre obrigatórios
da serena fortuna: Maseratis,
B.M.W.’s série sete ou mesmo
um Jaguar tão azul, tão luminoso
como o da minha infância. Tantas vezes
duvidei do passado e do futuro
como se o tempo não me conhecesse
e a verdade brilhasse, distraída,
para lá do horizonte. Cada voz
é o sangue do nada que circula
e vai coalhando agora no tranquilo
sono dos automóveis pelas ruas
entre uma escória de recordações
que mal sei distinguir e no entanto
me deixam hoje absorto na esplanada,
quase submerso em estranhas avarias
do sentimento ou da imaginação
– só literatura, mera literatura.
Fechei de novo o círculo: esta vida
começa a ser igual às outras vidas
que alguém viveu em mim antes de mim
nesta e noutras cidades. A memória
é um poço vazio, quase um deserto
onde vislumbro vagas caravanas
à procura do rumo que não há
nos corpos ou nas almas segregando
outros corpos e almas. Entro e saio
dos cem ou mil lugares onde vicejam
a flora e a fauna predadora
das quatro da manhã. Não me submeto
às inúteis mensagens da alegria
em cada rosto e sinto que encontrei
a velocidade de cruzeiro: é isto,
escrever talvez ao ritmo de apelos
a que este mundo chama ainda música
e serão simplesmente contracções
de vísceras aflitas, vãos esgares
imitando o sorriso de ninguém
no instante em que nasce ou em que morre
o estilhaçado som de um coração
quando se parte sem nenhum remédio,
sem promessas que o salvem da catástrofe,
até ficar sozinho para sempre,
à mercê de outro sonho ainda mais forte,
mais rápido que o álcool, transformando
a vida em morte, a morte em vida, agora
exactamente iguais – perfeita ekphrasis
do universo inteiro. Ah, fogo e gelo,
continuem felizes a queimar
os anónimos nomes que se elevam
da madrugada aqui na Foz do Douro
onde a névoa da água é mais que névoa
no mar feito de fumo onde os meus olhos
sobrevivem já cegos, noutra luz.
 
 
 
fernando pinto do amaral
dez elegias para o fim do milénio
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





28 abril 2025

josé manuel teixeira da silva / acabar, começar

 
 
 
Da antiguidade da vida
O arco aberto da primeira maré
a chuva concêntrica no musgo dos lagos
o fio incerto dos pássaros no trânsito das nuvens
os olhos que se olham nas cidades aquáticas
Como se ainda voltasses dizendo
no espelho das janelas mergulham para sempre
os peixes sombrios das constelações
Súbitas permanências
 
 
 
josé manuel teixeira da silva
as súbitas permanências
quasi
2001




27 abril 2025

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
433
 
Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam sua fúria com sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 




26 abril 2025

josé gomes ferreira / comboio

 
 
 
IX
 
Hoje vim para a rua
de cabeça levantada
– desdém de frutos mordidos.
 
Eu, o príncipe dos dias lúcidos
que dei os olhos ao sol
para de lá ver melhor o mundo
– onde os corações dos presos nos subterrâneos
tecem a luz própria da Terra
com o sexo das pedras e da lama.
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia IV
comboio (1955-1956)
portugália
1971




25 abril 2025

josé carlos ary dos santos / as portas que abril abriu

 

 
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
 
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
 
Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.
 
 
Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.
 
Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.
 
Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.
 
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
 
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
 
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
 
Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.
 
Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
 
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.
 
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
 
Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
 
Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.
 
Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.
 
Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.
 
Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.
 
Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!
 
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
 
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
 
E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.
 
Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.
 
Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.
 
Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.
 
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.
 
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.
 
Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
 
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.
 
Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.
 
Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.
 
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
 
Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.
 
Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.
 
E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.
 
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
 
E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.
 
A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.
 
Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.
 
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.
 
Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.
 
Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.
 
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.
 
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
 
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.
 
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.
 
Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.
 
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.
 
Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.
 
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
 
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
 
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.
 
E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
 
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.
 
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.
 
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.
 
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.
 
Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.
 
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
 
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.
 
Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.
 
Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.
 
E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
 
Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
 
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.
 
No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!
 
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.
 
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
 
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
 
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
 
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
 
 
                 Lisboa, Julho-Agosto de 1975
 
 
 
ary dos santos
as portas que abril abriu (1975)
ary, obra poética
edições avante!
2017
 


 

24 abril 2025

juan vicente piqueras / testemunho do homem da gávea

 
 
 
Para dizer a verdade,
pareceu-me um gesto de presunção,
muito dele,
a urgência com que nos pediu
que o atássemos ao mastro
para escapar ao canto das sereias.
 
As sereias cantavam, é certo,
mas não exactamente para o seduzir.
 
Porque não a qualquer um de nós?
Porque teriam de pretender seduzir alguém?
Quem pode assegurar que não cantavam simplesmente?
Ou que estavam em silêncio e cada um de nós ouvia
dentro de si o seu próprio canto das sereias?
 
Era ele que lutava contra a sua vocação de perdediço.
Era ele que acreditava que as sereias o amavam.
Era ele que, com qualquer pretexto, nos punha às suas ordens.
Era ele que não sabia mais o que inventar
para adiar o nosso regresso a Ítaca.
 
Eu queria voltar à minha pátria, abraçar a minha mulher,
cuidar dos meus pais já velhos,
ver crescer os meus filhos.
 
Deu-nos a ordem e atámo-lo.
Por mim tê-lo-íamos deixado no mar alto,
tivéssemos rumado a Ítaca e ali teria ficado,
atado ao mastro, só, de novo à deriva.
 
E teria morrido assim, amarrado ao seu delírio,
enquanto as sereias continuavam, continuarão,
a cantar para ninguém, como sempre.
 
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019





23 abril 2025

elio pecora / liberdade

 
 
 
Talvez esteja só nisto:
do fundo de uma escarpa
acenar uma saudação,
sobrevoar rasando
um aviso de morte,
escancarar as portas
da ausência,
procurar seguindo
no seu nome acentuado
a passagem obrigatória.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
novos poemas (inéditos)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 



22 abril 2025

denise levertov / noblesse oblige



 

 
Com grande clareza, grande exactidão, hoje
a montanha mostra-se
em toda a sua altitude, num apurado entendimento
do fôlego. Parece
mais próxima do que é costume;
ainda assim mantém
uma grandeza solitária, incontestada:
esta proximidade franca,
este modo de anunciar a primavera
enfim chegada, este cerimonioso
desnudar de seios nevados, como se
braços se espraiassem, não é
querer a intimidade.
                            (Entretanto
                       o sol de Abril, ainda frio,
                       floriu as pequenas margaridas,
                       tantas e humildes que se fazem espezinhar –
                       e que importa? Há em cada flor
                       a forma de uma gargalhada.)
A montanha prossegue graciosa
o seu sóbrio desvelamento.
 
 
 
denise levertov
este grande não-saber
trad. andreia c. faria e bruno m. silva
flâneur
2021







 

21 abril 2025

john freeman / do amor



 

 
Se o vento se fizesse rogado
talvez pudéssemos ficar e ouvir
como se a noite pausasse a sua cortina
azul e o trigo se curvasse sem dissipar
a esperança no que se passa no escuro,
e só por acaso se passa.
 
 
john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019
 




 

20 abril 2025

josé augusto mourão / das coisas peregrinas




 

 

que ousemos o entusiasmo
da luz de cada dia,
a agilidade dos vindimadores
socalco acima
 
mantém-nos, Deus, ao rés da terra,
e altos, de inquietos, vigilantes voos
 
não se esgotem as cisternas
da paciência para a vida,
nem os agapantos azuis
nos encharquem de clandestina morte
 
dá-nos o paladar das coisas peregrinas,
o lugar do vento que não sabe donde,
o sítio dos comboios nos apeadeiros breves
 
que no rodopio das horas
a tua mão nos mostre o pino do sol
e o cheiro a mosto e a pão de milho
anuncie a ceia, a mesa da justiça, do bem e da beleza
 
 
 
josé augusto mourão
o nome e a forma
poesia reunida
pedra angular
2009
 
 

 

19 abril 2025

rui costa / branco

 
 
 
queremos eternidade
e o mais que cabemos
é rodar nesta corola.
ser imortal dentro de cada mão
pois que perder os dedos
é uma súbita maneira
de caminhar no silêncio.
Mas foi isto tudo que eu sei
que não existe quem me ensinou:
o teu rosto é um laranjal ao sol
que nunca principia
nem acaba.
 
 
 
rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




 

18 abril 2025

jesús lizano / encontra-me, beleza




 

Encontra-me, Beleza, necessito
que me abraces, sinto-me despovoado,
vem ao meu sentimento descuidado,
que a tua ausência é o único delito.
 
Tu és inalcançável e eu o maldito,
idêntico latido desolado,
eu por fruto no tempo encarcerado
livre por sombra tu no infinito.
 
Encontra-me, Beleza, que outra coisa
pode desejar o meu coração cercado
que viver da tua essência, aurora minha.
 
E que podes, altiva e silenciosa,
desejar no teu frio descampado
senão a forma, fazer-te poesia.
 
 
 
jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019






 

17 abril 2025

gastão cruz / primavera

 
 
 
Tanto quanto é irregular ou excessiva, ora negando ora exagerando a sua imagem, a primavera de Lisboa, assim em Londres reencontro o filme límpido da mudança do tempo, o transitório aparentemente eterno.
A luz de um sol que sopra devagar por entre as pequenas vagas da manhã – e todavia divide e define as imagens do mundo em perfeitos perfis – fixa as cores, os parques, torna os tijolos brancos.
Na rua de colunas, quando a ondulação da manhã finda, as casas param por detrás da luz.
O cheiro que vem dos pubs com as portas abertas, como de um mundo interior que se revela e altera com o ar da tarde, faz-me subitamente conhecer a identidade de um tempo tão meu como o da face exacta de Lisboa ou o que nele resta, tempo dentro do tempo, da primavera revelada.
 
 
 
gastão cruz
o pianista
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009



16 abril 2025

nuno júdice / declaração

 
 
 
Gosto das mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




 

15 abril 2025

maria do rosário pedreira / há pouco…




Há pouco quis ir lá acima para ver como estavas; se

ainda tinhas dores, ou febre – ou medo (porque já
estava a escurecer); se querias que te lesse o que vem
no jornal sobre as feridas do mundo (mesmo sabendo
que esse mundo já não vai ser o teu) ou que te levasse
para junto da janela, onde ao cair da noite o vento
deixa as dunas desgrenhadas e as aves são como lenços
rasgados sobre o mar. a meio da escada, o olhar órfão
 
da cadela e as flores secas no vaso lembraram-me
que era tarde de mais para tudo isso: nesta casa,
a partir de agora, os degraus só se podem descer.
 
 
 
maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001






 

14 abril 2025

margaret atwood / canções para irmãs assassinadas

 
 
 
6. Perdidas
 
Tantas irmãs perdemos
Tantas irmãs perdidas
 
Ao longo dos anos, milhares de anos
Tantas mandadas para longe
 
Demasiado cedo na noite
Por homens que pensavam ter o direito
 
Raiva e ódio
Ciúme e medo
 
Tantas irmãs mortas
Ao longo de anos, milhares de anos
 
Mortas por homens terríveis
Que queriam ser mais altos
 
Ao longo de anos, milhares de anos
Tantas irmãs perdidas
 
Tantas lágrimas…
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021



13 abril 2025

júlio dinis / não te amo

 



 

 

Amo as noites de luar.
Amo a lua, o sol, o céu.
Amo as estrelas e o mar;
Mas não amo o rosto teu.
 
Amo das aves o canto,
Dos bosques o sussurrar,
Na voz da brisa acho encanto;
Mas não amo o teu cantar.
 
Amo a cor da branca rosa
Entre as flores bela flor,
Da violeta a cor mimosa;
Mas não amo a tua cor.
 
Amo o brilho das estrelas
Que fulguram lá nos céus,
O da lua em noites belas
Mas não o dos olhos teus.
 
Amo toda a natureza,
Tudo nela me sorri,
Em tudo encontro beleza;
Mas não sinto amor por ti.
 
1857
 
 
 
júlio dinis
obras completas de julio dinis vol. II
poesias
círculo de leitores
1979
 



12 abril 2025

alberto caeiro / esta tarde a trovoada caiu

 
 
 
IV
 
 Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos...
 
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
Pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...
 
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
 
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
 
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente visível
Ou que julgará dela?)
 
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o Sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós…
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
 
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega...
 
s.d.
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946



11 abril 2025

lawrence ferlinghetti / a rua comprida

 
 
A rua comprida
que é a rua do mundo
passa em volta do mundo
cheia de toda a gente do mundo
para não falar de todas as vozes
de todas as pessoas
que jamais existiram
Amantes e choramingas
virgens e dorminhocos
vendedores chulos e homens-sanduíche
leiteiros e oradores
banqueiros sem tusa
donas de casa friáveis
com snobs ligaduras de nylon
desertos de publicitários
rebanhos de poldras do ensino secundário
hordas de universitários
todos a falar pelos cotovelos
e a dar as suas voltas
ou a dependurar-se em janelas
para ver o que está a dar
lá fora no mundo
onde tudo acontece
mais tarde ou mais cedo
se é que acontece
E a rua comprida
que é a mais comprida
do mundo inteiro
mas não é tão comprida
como parece
vai passando
por todas as cidades e todas as cenas
descendo cada viela
subindo todas as avenidas
através de todos os cruzamentos
através de semáforos vermelhos e verdes
as cidades à luz do sol
os continentes à chuva
as esfomeadas Hong Kongs
as Tuscaloosas áridas
as Oaklands da alma
as Dublins da imaginação
E a rua comprida
desenrola-se por toda a parte
como um enorme comboio de brincar
apitando e baforando pelo mundo
com passageiros ao rubro
e bebés e cestas de piquenique
e cães e gatos
e todos eles a quererem saber
quem será que lá vai
à frente na cabine
a conduzir o comboio
se é que vai
o comboio que corre à volta do mundo
como um mundo às voltas
todos a quererem saber
o que haverá à frente
se houver
e há pessoas que se debruçam
e espreitam para longe
a ver se conseguem
vislumbrar o maquinista
na sua cabine de um só olho
a ver se conseguem vê-lo
relancear-lhe o rosto
deitar-lhe o olho
no giro de uma curva
mas nunca conseguem
embora de vez em quando
pareçam quase
E a rua segue a gingar
o comboio segue a disparar
com as suas janelas a subir
as suas janelas as janelas
de todos os prédios
de todas as ruas do mundo
a disparar
através da luz do mundo
através da noite do mundo
com luzinhas nos cruzamentos
luzes perdidas piscando
hordas nos carnavais
circos dos bosques da noite
bordéis e parlamentos
fontes esquecidas
portas para sótãos e portas por sitiar
silhuetas nos lampiões
pálidos ídolos bailando
enquanto segue o mundo a gingar
Mas chegamos agora
à parte solitária da rua
a parte da rua
que dá a volta
à parte solitária do mundo
E este é o sítio
onde se muda de comboio
para o expresso de Brighton Beach
Este não é o sítio
onde se faça alguma coisa
Esta é a parte do mundo
onde não acontece nada
onde ninguém faz nada
acontecer
onde não há ninguém em lado nenhum
ninguém em parte alguma
a não ser tu
nem sequer um espelho
para fazer dois de ti
nem vivalma
a não ser a tua
se calhar
e mesmo essa
não existe
se calhar
ou não te pertence
se calhar
porque tu estás o que se chama
morto
chegaste à tua estação
 
 
É favor descer



lawrence ferlinghetti
mensagens orais
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024
 


10 abril 2025

wislawa szymborska / tudo

 
 
 
Tudo –
palavra atrevida e enfunada de soberba.
Deveria escrever-se entre aspas.
Aparenta nada omitir,
tudo reunir, abarcar, conter e ter.
Porém, não é mais
do que um farrapo do caos
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





09 abril 2025

primo levi / aos amigos

 
 
Caros amigos, aqui digo amigos
No sentido mais amplo da palavra:
Mulher, irmã, camaradas, parentes,
Pessoas vistas uma só vez,
Ou com quem se conviveu toda a vida:
Contanto que entre nós, pelo menos um momento,
Se tenha estendido um segmento,
Uma corda bem definida.
 
A vocês vos digo, companheiros de um caminho
Denso, não poupado a trabalhos,
E também a vocês, que perderam
A alma, o ânimo, a vontade de viver.
Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti
Que me lês: lembra o tempo,
Antes da cera endurecida,
Em que cada um era como um sinete.
Entre nós cada um traz a marca
Do amigo encontrado no caminho;
Em cada um o rasto de cada um.
Para o bem e para o mal
Em sageza ou em folia
Cada um estampado em cada um.
 
Agora que o tempo urge apressado,
Que as tarefas terminaram,
A todos faço o humilde voto
De que o Outono seja longo e brando.
 
16 de Dezembro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024




 

08 abril 2025

paul celan / flor

 
 
A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.
 
Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do Verão:
flor.
 
Flor – uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca
de água.
 
Crescimento.
folha a folha acrescenta
as paredes do coração.
 
Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. joão barrento e y. k. centeno
relógio d´água
2023




07 abril 2025

zbigniew herbert / a aldrava

 
 
 
Há quem cultive um jardim
na cabeça
e seus cabelos sejam veredas
para cidades soalheiras e brancas
 
é-lhes fácil escrever
fecham os olhos
e da testa já escorrem
cardumes de imagens
 
minha imaginação
é um pedaço de tábua
e meu único instrumento
é uma vara de pau
 
bato na tábua
e ela responde-me
sim-sim
não-não
 
outros têm o sino verde da árvore
o sino azul da água
eu tenho a aldrava
de jardins desprotegidos
 
bato na tábua
e ela sussurra
um poema árido de moralista
sim-sim
não-não
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024





 

06 abril 2025

antonio moreno / geografia II

 
 
 
Debaixo do ardor do meio-dia o canto
que enevoa o pensamento
bulício das cigarras e do estio.
Onde estão as ideias que ateavam
o mundo e, junto dele, o vigor,
a antiga forma de olhar em redor?
Ali, onde antes tive certezas
como torres com que alcançar as coisas,
um espaço de figueiras amadurecidas,
um legado de terra se estende para mim.
Percorro com os olhos o seu silêncio
enquanto se afirma paralelo o meu:
quantas leituras houve,
as concórdias trazidas,
os rumos que tracei,
abandonados ao presente, ficam
inertes com as horas passageiras.
Ainda que seja na inércia do baldio,
na geografia da paisagem,
onde, certa, se encontre a unidade
de quanto sou face ao esquecimento.
 
 
 
antonio moreno
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




 

05 abril 2025

juan manuel villalba / extravio

 
 
 
Os lugares dourados que o futuro
prometeu são agora um grupo
de guerrilheiros mortos
na clareira de um bosque.
Dor mais invisível do que a dor.
Mas aceito a vida que me cabe
debaixo do peso gelado da noite,
a noite que em qualquer outro destino
– porventura menos incerto –
me pudera ter confortado.
Como quem vive com roupa emprestada;
como quem anda dentro
de um sobretudo que cheira a outra pessoa.
 
 
 
juan manuel villalba
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



04 abril 2025

federico garcia lorca / malaguenha

 
 
 
A morte
entra e sai
da taberna.
 
Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.
 
E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.
 
A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



03 abril 2025

konstandinos kaváfis / o sol da tarde

 
 
 
Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.
 
Ah este quarto, não é nada estranho.
 
Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.
 
Estarão ainda os coitados nalgum lugar.
 
Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.
 
… De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só… Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
II (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




02 abril 2025

giórgios seféris / o jardim e suas fontes sob a chuva

 
 
 
VI
 
                                            M.R.
 
O jardim e suas fontes sob a chuva,
hás-de vê-lo apenas da janela baixa
por trás do vidro fosco. O teu quarto
de luz só terá a chama da lareira
e às vezes ao luzir longínquo dos raios ver-se-ão
as rugas da tua fronte, velho amigo.
 
O jardim e suas fontes, que nas tuas mãos eram
ritmos de outra vida, para lá dos mármores
quebrados e das colunas trágicas
e um espaço entre os loureiros
junto à nova pedreira,
 
um vidro turvo ter-to-á cerceado de tuas horas;
não hás-de respirar; a terra e a seiva das árvores
saltarão dos teus sonhos para virem bater
a esta vidraça onde bate a chuva
do mundo lá fora.
 
 
De Mythistorema, 1935
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 


01 abril 2025

kiki dimoulá / 1 de abril

 
 
 
Abril
– o famoso jardineiro –
pulou de manhã para o meu jardim maninho
e plantou uma maravilhosa rosa.
 
A primavera,
escondida atrás da rosa,
vê o meu espanto e ri-se,
e com a minha alegria sem limites
condecora o mago jardineiro.
 
 
 
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003