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18 julho 2016

kiki dimoulá / quadro biográfico



A casa
fita o caminho público
e o mar
com a lógica de quatro janelas,
rindo-se estereotipadamente
com uma ampla varanda
cor-de-laranja.

Nessa varanda
nesse sorriso
às tardes, a minha mãe
expõe o rosto
ilegível.

O tempo o compôs
sem impulsos
noite após noite
numa língua que escorre dor,
enchendo
páginas de usura.
E nem sequer o erro dum riso.

Senta-se
na pontinha da cadeira
para não pesar na tarde
com todo o peso do seu coração adoentado,
apenas para existir
parada no meio da vida
por uma suspensão do destino,
apenas para poder aguentar agora
o espasmo do seu espanto:

«Existem mares
e barcos nervosos
que empurram soluções
para aquilo que não tem obstáculos?
E ventos que desenraízam aquilo que estagna?
E aquilo que é compreensível onde bebe cores
a tarde alcoólica,
existe?» Não sabe.
Não o soube a sua vida.

Agora
ousa um movimento estranho:
lança o corpo um pouco em frente,
torna a encostá-lo para trás,
dá fortes remadas da memória,
vidro vidro as suas lágrimas.

Pouco a pouco
tarde, rosto e varanda
são mimados pelo crepúsculo.
A sua forma enlouquece.
Fecham-se num espaço tumular
para não voltarem a entrar-nos no olhar.
Anoitece.



kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003




27 junho 2015

kiki dimoulá / 1 de abril



Abril
─ o famoso jardineiro ─
pulou de manhã para o meu jardim maninho
e plantou uma maravilhosa rosa.

A primavera,
escondida atrás da rosa,
vê o meu espanto e ri-se,
e com a minha alegria sem limites
condecora o mago jardineiro.



kiki dimoulá
inimigo rumor, nº 14
traduzido do grego por manuel resende
livros cotovia
2003




27 outubro 2012

kiki dimoulá / do sonho





O dia acordou.
Levantou-se na ponta dos pés
e viu o mundo
ainda deitado com os sonhos
e encantações da noite.

Subiu aos montes,
deslizou pelas colinas
e escorreu para a cidade
apressado.

Apagou os candeeiros das ruas
esganou
sombras escondidas nos pátios e nas esquinas,
e depois de repartir pelos humanos
angústias e problemas
encarregou-os de o levar até ao fim.

Depois deu pela minha ausência
(estava ainda no meio do sonho
a negociar uma felicidade),
abriu a minha janela fechada
e com todo o seu peso caiu sobre mim
interrompendo as negociações.




kiki dimoulá
inimigo rumor, nº 14
traduzido do grego por manuel resende
livros cotovia
2003



05 fevereiro 2011

kiki dimoulá / a juventude do esquecimento








Espero um pouco
que escureçam as diferenças e as indiferenças
e abro as janelas. Não há pressa
mas faço-o para que não se me empenem os movimentos.
Peço emprestada a cabeça da minha anterior curiosidade
e rodo-a. Rodar, não é bem.
Dou as boas-tardes servilmente a todas as bajuladoras
dos medos, as estrelas. Boas-tardes, não é bem.
Reforço com o fio do olhar os fios
dos prateados botõezinhos da distância
alguns que se desfiaram estão tem-te não caias.
Não há pressa. Faço-o apenas para mostrar à distância
quanto lhe agradeço a oferta.

Se não houvesse a distância
murchariam as longas viagens
viriam de motorizada trazer-nos a casa
como pizzas o mundo que a nossa partida desejava.
A velhice seria uma sanguessuga
colada à juventude
e chamar-me-iam vovó desde os meus verdes anos
netos e amores indiferentemente.
E que seriam os astros
sem o apoio que lhes dá a distância?
Pratarias terrestres, alguns candelabros, cinzeiros
para que neles deite a cinza o rico belicoso
para que a admiração invista a sua sobrevalorização.

Se não houvesse a distância
a saudade tratar-nos-ia por tu.
E os pudores dos agora tão raros encontros
com a plural necessidade nossa
fatalmente se afeiçoariam
à linguagem grosseira do hábito.

É claro, se não houvesse a distância
o nosso próximo não seria essa estrela longínqua
viria à primeira aproximação
só dois passos separariam os sonhos
da sua silhueta.
Assim como junto a nós ficaria
a derradeira partida da alma.
Para onde tanto deambular? Há
um espaço vazio. Nós desceríamos
para vivermos no nosso corpo subterrâneo
e ela com a sua fábula e os seus pertences
reencarnaria em corpo.

Se não existisses ó distância
o esquecimento passaria mais facilmente
mais depressa numa só noite
a difícil prolongada juventude sua
aquilo que por melhor soar chamamos recordação.

Recordação não é bem. Reforço
Com o fio do olhar semelhanças
Que se desfiaram e estão tem-te não caias.
Reforço, não é bem. Servilmente volto-me
desviando-me desses bajuladores do tempo que
por brevidade chamei recordação.
Recordação, não é bem. Reabasteço estrelas cadentes
com prolongada aniquilação. Há pressa.









kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003





21 maio 2010

kiki dimoulá / anúncios






Oferece-se desespero
em excelente estado,
e espaçoso beco-sem-saída.
A preços vantajosos.


Vende-se terreno
baldio e fértil
por falta de sorte e disposição.


E tempo
totalmente por utilizar.

Informações: no beco.
Horário: sempre.









kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003







19 agosto 2008

kiki dimoulá / como quem escolhe







É sexta-feira hoje vou à praça do mercado
dar uma volta nos jardins decapitados
a ver o perfume dos orégãos
cativos nos molhos.

Vou ao meidia quando caem as cotações
encontra-se fácil o verde
entre feijões abóboras malvas e lírios.
Ouço ali com que coragem falam as árvores
com a língua cortada dos frutos
oradoras empilhadas as laranjas e as maçãs
e alguma convalescença começa a ganhar cor
nas faces amareladas
de uma mudez interior.

Raramente compro. É que nos dizem escolhe.
Isso é facilidade ou problema? Escolhemos e depois
como levantar o peso insustentável
que tem a nossa escolha?
Ao passo que aquele aconteceu, que pluma! No princípio.
É que depois as consequências põem-nos de rastos.
Também insustentáveis. No fundo é como quem escolhe.

Quando muito compro um pouco de terra. Não para flores.
Para me ir habituando.
Nisto não há escolha. Nisto, é de olhos fechados.






kiki dimoulá
grécia (n. 1931)
trad . de manuel resende