05 julho 2025

miguel serras pereira / rebentação

  
 
Pela rebentação dos anos vai o meu amor
Vai no coração branco dos astros e ao alto dos mastros
Recordo-o de repente desconhecido a caminho
porque é ele o navio que me embarca e esqueci
 
Chama-se ilha que habita as encruzilhadas da brisa
Repassa de infinito o silêncio da amada
É o sono do tempo é uma planície de trigo
e no seu voo quem sou ondula entre dois passos
 
Regressa mais que a morte ao rosto de ninguém
como se houvesse mar partiríamos os dois
E nos surpreenderia a noite e eu poderia ao partir
tocar no teu rosto que nunca toquei
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
o mar a bordo do último navio (1998)
barricada de livros
2022




 

04 julho 2025

sandra costa / manual da vida breve

  
 
2.
 
Por detrás da casa onde cresci,
havia uma velha ameixoeira.
 
Quando os pássaros começam
a cantar entre os telhados,
as ameixoeiras têm flores
muito juntas, muito brancas,
que nunca esqueço.
 
Consta que certas árvores
dão frutos.
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021
 


03 julho 2025

isabel de sá / ela escreveu-me duas palavras…

  
 
Ela escreveu-me duas palavras nem sei bem porquê. Nunca compreendeu não haver em mim qualquer aderência ao mundo. Considerando que o desejo é uma coisa da alma, terei que realizá-lo sem a presença do corpo.
 
Existe a tentação d eme deixar levar pela corrente da vida. Talvez, no fim dela, eu possa escrever uma frase que contenha todo o sentido, sabedoria e impulso que procurei dar-lhe.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
o nosso amor desfaz o trio
officium lectionis edições
2022
 


02 julho 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
IX Madrigal
 
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




01 julho 2025

fernando namora / aforismo

  
Entre o arco e o alvo
há a conivência do gesto
e da paixão.
Cada um de nós
é ele mesmo
e o seu adversário.
Por isso o amor
jamais se purga
do que nele é pressentido
ressentimento.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984
 



30 junho 2025

ana hatherly / 463 tisanas

  
 
212
 
Era uma vez um país de coveiros. Apertados uns contra os outros abriam as respectivas covas dos inimigos, correspondendo fielmente à sua mútua inimizade. As pás subiam e desciam brilhantes, aéreas, rítmicas, e a terra era atirada de uma cova para a outra, numa chuvada feericamente pesada. Nesse país todos estavam enlouquecidos pelo desejo de retribuir a retribuição. Tinham muito sangue português.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



29 junho 2025

josé saramago / história antiga

  

 
Compromissos, não tinha, mas faltei;
Não prestei juramento, mas traí:
Sentir-se réu alguém, não depende
Do juízo dos outros, mas de si.
 
É fácil companhia a consciência
Se mansamente aceita e concilia,
Difícil é calá-la quando somos
Mais retos afinal do que se cria.
 
Um dia tornarei às dores do mundo,
À luta onde talvez já não me esperam,
Antes, seja diferente outra mulher,
Companheira, não de ferros que me ferram.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018


28 junho 2025

diego doncel / para um lugar de ninguém

  
 
Não é necessário fugir, perder-se em qualquer sítio
debaixo de uma identidade que não é a minha?
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
e tenho os olhos cheios da minha própria cinza.
No écran do céu, por cima desta cidade abstracta,
acossadas pelas sirenes e pelo tráfico das auto-estradas
vi-as lá no alto a serem pasto do frio,
porventura símbolos de domínios alheios, mensagens de uma íntima irrealidade.
 
Certas ocasiões tinham forma de fronteira como folhas que voam
de um mistério para não sabemos onde, noutras eram o rosto
mutável dos sonhos ou pareciam planetas desertos,
grandes rochedos cósmicos, objectos esquecidos
nos limites de uma tragédia que estava prestes a chegar.
 
Soube que as suas metamorfoses me falavam
de qual era o destino dos homens
e decidi renuncia à sua beleza.
Debaixo da sua fragilidade, debaixo da sua enganadora doçura,
debaixo da sua aparência humilde e quase introvertida
são um lugar de ninguém, como o Génesis.
E o seu cheiro a terra húmida, as gotas
com que às vezes caíam nos meus gerânios
apenas assinalavam o caminho do pouco que sou, do meu abandono.
 
Por isso pergunto se não é preciso fugir.
ser outra vez um grão de areia na poeira de outro tempo.
Embora saiba que há-de levar-me a este mesmo lugar, embora ali me esperem
estas mesmas alamedas brilhantes e sonâmbulas como uma furgonete de distribuição,
estes mesmos pombos pensativos criados com a combustão
dos motores e com flocos achocolatados de cereais,
embora me esperem este mesmo vento e estas mesmas folhas secas
que se arrastam ao pé de dias igualmente escuros e fugazes.
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
sem consolo, como um homem perdido,
enquanto elas reflectiam pouco a pouco nos vidros
da minha casa as coisas que perdi, o meu desamparo.
Nuvens que eram tempo e que passavam mudas, nuvens
que eram restos de mim e cuja passagem não deixava qualquer marca
sobre a geografia desta cidade, só um punhado de sombras,
quase nada, perplexidades e desvarios no meu coração.
 
Vi-as descer à minha pele e encheram-me o rosto
de silêncio, do silêncio que vem dos bairros adormecidos,
do silêncio que vem do outro lado das coisas,
de um insuportável desdém.
Vi-as arrastar a gordura dos seus ventres
pelo que esta cidade oferece:
sexo, laboratórios de condutas do prazer,
fábricas de tratamento de resíduos afectivos, cruzamentos ferroviários
onde convergem diferentes nostalgias,
áreas de oração para estimular o consumo
e a obesidade sentimental.
 
Quando senti a ferrugem dos seus nervos
nos nervos dos meus olhos, quando senti que elas
eram eu próprio, só um punhado de cinza,
o tele-predicante do novo dia gritava de um estúdio de televisão:
– Sai daqui, desaparece, que ninguém te conheça.
Deixa atrás de ti os passos da tua fuga.
Corre, os países hão-de passar um após outro,
os diferentes estados de consciência.
Apenas necessitas da mecânica dos teus pulmões
para receberes umas migalhas de misericórdia. Por seres homem.
Por veres que tudo se acelera. A velocidade cardíaca,
os pensamentos, a elevada temperatura da tua espinha dorsal.
Toda a tua miséria. Os rumos do teu exílio à margem,
sempre à margem das coisas.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007




 

27 junho 2025

bertolt brecht / quem é o teu inimigo?

  
 
O que tem fome e te rouba
O último pedaço de pão chama-lo teu inimigo
Mas não saltas ao pescoço
Do teu ladrão que nunca teve fome.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976





26 junho 2025

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
 
VII
 
Este vapor em trânsito no tejo
é como branca gôndola descendo
as colinas de um rio;
de rosto ao vento, sou como o gondoleiro
na laguna serena a procurar o mar.
fez.me a vida este corpo de rã seca
a debitar no charco um som de flauta;
já nada nem ninguém me traz a sede
quando a chuva não cessa de crescer
e a neve cobre as pontes mais recentes.
Um negro louco nos dirige as tropas,
distribuindo ervas doces de chipre
pelos atarefados passageiros; e assim
eu, que ao sol cantei em minhas horas
esperando que o mundo me não leve a mal
embarco, quase noite, na praia ocidental.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



25 junho 2025

antónio dacosta / ó dia de sol e morte

 


 
3.
 
Ó dia de sol e morte
 
As flores eram venenosas
As moscas eram negras
O azul tenebroso
 
Tanta luz impiedosa
Sobre o luto da terra
 
 
 
antónio dacosta
saudade
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



24 junho 2025

eduardo pitta / meia dúzia de linhas

 
 
 
Meia dúzia de linhas
para me dizeres que tudo mudou.
Agora é outro mar
outra terra, outra gente.
 
Eu continuo por aqui.
Somos como pássaros que o horizonte recusasse.
Perdemos o azul
e perdemo-nos.
 
 
 
eduardo pitta
sílaba a sílaba
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 



23 junho 2025

joão miguel fernandes jorge / palavras dos remadores

 
 
Como se não restasse
nem sequer a ilha
desci à fundura do lago. Não vi
o barco nem os remadores.
Na distância, um ténue amarelo de enxofre.
Mesmo esse brilho
extinguiu-se.
Por um instante de desejo e medo
ouvi as suas vozes nítidas sobre
as águas paradas.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004