11 maio 2025

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
13
 
A asa ferida da pequena perdiz
concilia-te agora com o poder do sol.
 
Sobre o centro da luz o curativo vinga
o absoluto abandono em que te encontrei.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999






10 maio 2025

jorge melícias / são belos os instrumentos da minha morte

 



 
 
São belos os instrumentos da minha morte
nas suas mãos, a destreza da ira
sobre os trépanos, a forma
como o grito se abre de cânulas.
 
 
 
jorge melícias
incûbus
quasi
2004
 



09 maio 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
 
CCLXXVI
 
Não fujas do teu medo procurando
a tua audácia. Isto é só vestir
com outra roupa o mesmo espanta pássaros.
Se dás um nome ao medo, dás-lhe sombras
onde melhor te esconde a natureza
verdadeira, a que importa. Vais mais fundo
não à sua raiz, mas às carências
que elas são a raiz, mas às carências
que elas são a raiz do conflito.
Aparências opostas do real,
Teu medo ou tua audácia nada são.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 



08 maio 2025

adília lopes / irmã barata, irmã batata

 
 
 
Fez-se do sexo um bicho de sete cabeças. Parece que mais vale morrer violada do que virgem, quando isso é um grande disparate. A castidade é um valor, infelizmente confunde-se castidade com ausência de relações sexuais e de masturbação. O sexo não é porco nem deixa de ser. Nada na vida dá a garantia de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o outro. Às vezes tenho medo de me despir na rua e de falar muito alto. Chamo a isto o sentimento da irrealidade.
 
 
 
adilia lopes
irmã barata, irmã batata (2000)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




07 maio 2025

adam zagajewski / a europa adormece

 
 
 
                                    para Gosia
 
 
A Europa adormece; em Lisboa
franzem as sobrancelhas velhos xadrezistas.
 
No céu de Cracóvia paira um nevoeiro cinzento
que apaga os contornos das veneráveis velas.
 
O Mediterrâneo embala-se suavemente
e daqui a pouco vai-se transformar numa canção de embalar.
 
Quando a Europa finalmente cair num sono profundo,
a América há-de velar
 
o pobre, mudo mundo
desconfiadamente, como uma irmã mais nova.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




06 maio 2025

a. m. pires cabral / poeira

 
 
 
A poeira que a noite levantou
enquanto ardia
ainda anda no ar e é seca como
uma pistola disposta a disparar.
 
E tarde assentará
essa poeira.
 
Só espero que quando repousar
sobre o tampo da mesa
seja tão espessa que eu possa escrever nela
à ponta do dedo
alguns madrigais.
 
Ou então heresias, se estiver
para aí virado.
 
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




05 maio 2025

a. c. swinburne / um camafeu

 
 
 
Havia uma imagem esculpida do Desejo
     Pintada com sangue vermelho num campo de ouro,
     Passando entre os jovens e os velhos,
E a seu lado a Dor cujo corpo brilhava como o fogo,
E o Prazer com mãos descarnadas agarrando o seu salário.
     Com a mão esquerda, os dedos crispados e frios,
     Segurava-o a insaciável Saciedade,
Caminhando com pés descalços que tocavam a lama.
Os sentidos e as dores e os pecados,
     E os estranhos amores que sugam os seios do Ódio
Até que os lábios e os dentes mordam a sua profunda ferida,
Iam também, como animais batendo as asas ou as suas
                                                                barbatanas.
     A Morte mantinha-se afastada atrás de uma grade toda aberta,
Em cuja fechadura estava escrito: Talvez.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria lourdes guimarães
relógio d’ água
2006




 

04 maio 2025

adolfo casais monteiro / fruta do tempo

 



 

 
Tempos houve em que ainda me perdia…
Hoje
de antemão tudo sonho já vivido,
inútil e pesado,
passos que dou com olhos distraídos…
isto mesmo não é embora certo:
que venha um pouco de sol, e toda a sombra
há-de esvair-se em bruma pelos cantos…
 
 
 
adolfo casais monteiro
poemas do tempo incerto (1934)
poesias completas
imprensa nacional-casa da moeda
1993




03 maio 2025

zetho cunha gonçalves / pelo meu nome

 
 
 
Escavo a esta mão os ventos – da onça,
sustentam a noite: quem contraceno em gesto,
e os seus olhos. Se dou um passo
tropeço noutro passo – simétrico, tropeço
na flecha. O dorso é todo o horizonte,
a sua escultura movediça.
 
Eu trazia o fogo na cabeça, era um pássaro.
O canto das águas seria a minha voz – a pedra,
Terra
de outra carne,
e osso –
não me houvessem roubado o fogo, não me houvessem
justificado em lenda, pelo meu nome.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
o testamento do mundo
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021
 



02 maio 2025

josé miguel silva / em suma

 
                                        
 
Um a um foram saindo de cena
os companheiros. Partiam, com a tarde,
para fins empobrecidos,
na rota dos eleitos para filhos e despesas.
As noites faziam-se livrescas,
estendiam sobre mim o seu império
de silêncios e desfalques.
 
Entretanto, engrossava o meu diário
de rasuras, de cálculos moídos,
partilhado por verrinas e recados
sem resposta. Bebia o desalento
por canecas de latão, corria
as persianas. É muito pouca sorte.
 
Os versos, com o tempo, tornavam-se mais longos,
cresciam para trás, para fora
dos cadernos, ocupavam minha vida
tal a morte na semente de madeira.
Afeiçoava-me isso sim à solidão, cortava
o negativo dos afectos, protegido na cabeça
por um chapéu de feltro;
pois essas são as coisas e as coisas
que ontem nos pareciam boas
não existem.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





01 maio 2025

josé emílio pacheco / «moralidades lendárias»

   
 
Odeiam César e o poder romano.
Privam-se de comer a última uvinha
pensando nos escravos estourados
nas minas de sal ou nas galeras.
 
Falam das crueldades do exército
em Ilíria e nas gálias.
Empanturrados
de javali, perdizes e vitela
bebem um gole
de vinho siciliano
para empinar os lábios pronunciando
as mais belas palavras:
a uuumaaaniiidaadee, o ooomeeem, todas essas
– tão rotundas, tão grandes, tão sonoras –
que apagam a humildade de outras mais breves
– como, digamos, por exemplo, as pessoas.
 
Termina a função. Entram os servos
para levarem os restos do banquete.
Então os patrícios acomodam-se
aos seus mantos de Chipre.
Com o fogo do prazer nos olhinhos,
como um gladiador que afunda o tridente,
enumeram felizes os abortos
de Clódia a Toscana,
a impotência de Lívio, os avanços
do cancro em Vitélio.
Afirmam que é cornudo o velho Cláudio
e condenam Flávio à cadeia,
um escravo liberto, um arrivista.
 
Depois à saída acordam aos pontapés
o cocheiro insolado
e marcham com fervor em direcção ao Palatino
para oferecerem mansamente o triste cu
ao magnânimo César.
 
 
 
josé emílio pacheco
irás y no volverás (1969-1972)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024




 

30 abril 2025

sophia de mello breyner andresen / fragmento de «os gracos»

 
 
 
«…………………………………………………………..»
 
Os ricos nunca perdem a jogada
Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam os erros dos outros
Administram os erros dos outros
São hábeis e sábios
Têm uma longa experiência do poder
E quando não podem usar a própria força
Usam a fraqueza dos outros
Apostam na fraqueza dos outros
E ganham
 
Tecem uma grande rede de estratagemas
Uma grande armadilha invisível
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um touro na arena
 
«……………………………………………………………»
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética
poemas reencontrados
assírio & alvim
2015




 

29 abril 2025

fernando pinto do amaral / elegia do porto

  
 
Fechei o círculo: a minha adolescência
jaz morta e arrefece. Ainda é noite
e os caminhos já não se bifurcam
enquanto a lua vai sorrindo. A esperança,
sabemos que é a última a morrer,
mas a cidade é toda um déjá vu,
um abismo de imagens repetidas
por espelhos iludindo outros espelhos
acompanhando um rio que nunca teve
quem o cantasse – diz-nos a Agustina
na frase inicial do seu romance
sobre a filha infeliz do coronel Owen,
um desses ingleses que este Porto
soube adoptar num século romântico
de jardins desbotados e emoções
por vezes muito óbvias, embebidas
na treva e no silêncio. Alguns passos
feitos de sombra e água e logo tudo
recupera o perfil do esquecimento,
a consistência mole das coisas surdas
que adormecem as dores e os prazeres
em casulos de vidro litoral
a meio de um percurso que retoma
nobrezas, burguesias, novos-ricos,
pessoas sempre sólidas, compactas,
povoando os anódinos destinos
com sinais quase sempre obrigatórios
da serena fortuna: Maseratis,
B.M.W.’s série sete ou mesmo
um Jaguar tão azul, tão luminoso
como o da minha infância. Tantas vezes
duvidei do passado e do futuro
como se o tempo não me conhecesse
e a verdade brilhasse, distraída,
para lá do horizonte. Cada voz
é o sangue do nada que circula
e vai coalhando agora no tranquilo
sono dos automóveis pelas ruas
entre uma escória de recordações
que mal sei distinguir e no entanto
me deixam hoje absorto na esplanada,
quase submerso em estranhas avarias
do sentimento ou da imaginação
– só literatura, mera literatura.
Fechei de novo o círculo: esta vida
começa a ser igual às outras vidas
que alguém viveu em mim antes de mim
nesta e noutras cidades. A memória
é um poço vazio, quase um deserto
onde vislumbro vagas caravanas
à procura do rumo que não há
nos corpos ou nas almas segregando
outros corpos e almas. Entro e saio
dos cem ou mil lugares onde vicejam
a flora e a fauna predadora
das quatro da manhã. Não me submeto
às inúteis mensagens da alegria
em cada rosto e sinto que encontrei
a velocidade de cruzeiro: é isto,
escrever talvez ao ritmo de apelos
a que este mundo chama ainda música
e serão simplesmente contracções
de vísceras aflitas, vãos esgares
imitando o sorriso de ninguém
no instante em que nasce ou em que morre
o estilhaçado som de um coração
quando se parte sem nenhum remédio,
sem promessas que o salvem da catástrofe,
até ficar sozinho para sempre,
à mercê de outro sonho ainda mais forte,
mais rápido que o álcool, transformando
a vida em morte, a morte em vida, agora
exactamente iguais – perfeita ekphrasis
do universo inteiro. Ah, fogo e gelo,
continuem felizes a queimar
os anónimos nomes que se elevam
da madrugada aqui na Foz do Douro
onde a névoa da água é mais que névoa
no mar feito de fumo onde os meus olhos
sobrevivem já cegos, noutra luz.
 
 
 
fernando pinto do amaral
dez elegias para o fim do milénio
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000