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27 julho 2024

eduardo pitta / foi longa e dura…

 
 
 
Foi longa e dura a batalha do silêncio
por mesas de café, improváveis becos,
pátios e terraços.
 
 
Nada mais havia para argumentar.
 
 
Decerto haveria gente capaz de supor
que seria fácil
fazer as malas aos sentimentos.
 
 
Os outros continuariam como dantes.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





 

03 junho 2024

eduardo pitta / houve ali um rosto



 

 
                                          A minha mãe
 
 
Houve ali um rosto
muito belo, mal disfarçado
na teia geométrica
de uma finíssima máscara.
 
Sulcos de um antigo
ardor.
Tranquilo e arbitrário
desapego.
 
A luz baixou tanto.
Aquele rosto é
um mapa: um mapa
crivado de cidades saqueadas.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 




 

21 junho 2023

eduardo pitta / ligações perigosas

 
 
A história deles pode ter sido,
por vontade alheia,
a simulação excessiva
e luminosa
de outra culpa maior.
Ainda que Inês fosse um chavalo
 
Pedro não andaria ali à toa
e a legenda dos algozes trucidados quadra
de viés numa corte predadora.
Importa pouco a conexão
estrangeira, as dezassete léguas
de um cortejo
 
siderante como aqueloutro que à luz
de seiscentas arrobas de cera
para sempre mediatizou
D. João Afonso Telo, miminho
de cantareira de el-rei.
A boca à mercê de novas dominações.
 
 
eduardo pitta
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



06 agosto 2022

eduardo pitta / no enredo dos caminhos

 
 
1.
 
Os cães eram mudos e deu com eles por
acaso, farejando relógios de areia.
Naquela terra árdua havia ainda o enigma
dos homens e do seu alfabeto traído.
 
Podia pensar-se num simulacro. Era apenas
método. A obstinada construção de uma vontade
sem objecto.
Teria voltado fosse como fosse.
 
2.
 
Antes de nós outros tentaram.
Muitos não sabem que viagem alguma
se repetirá. Toda a demanda é vã.
Aquele muro não está ali
 
por acidente. Sequer a gosto de qualquer
feitor com inclinações pré-rafaelitas.
A manhã tinha ficado parecida com um pedaço
de vidro e era nítida a evidência de desastre.
 
 
3.
 
As coisas são como são.
Sempre haverá uma mão senhora de exemplar
desprendimento, atenta ao sufoco
e à deslocação da alma.
 
Assim foi, por socalcos de tabaco,
o enredo dos caminhos, ardente
magia. Pouco importa saber
que toda a paisagem mente.
 
 
4.
 
Gente propensa a ver a luz por um funil
a vê-la assim em corredores,
esplendidamente ignorante das forças vitais,
de qualquer alegoria. Esse sentido
 
mediúnico, três vezes milenário, de fabular
a perversa mudez dos animais.
Contudo eles estão onde os encontramos.
E estão simplesmente calados.
 
 
 
eduardo pitta
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989




 

09 junho 2021

eduardo pitta / hesita bastante

 
 
Hesita bastante. O inferno
é uma disciplina como qualquer outra.
Dias de vinho e rosas
pagos a peso de flagelo.
O arrebatado comércio dos sentidos?
Na cidade aberta a dementada
 
 
 
eduardo pitta
arbítrio
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





19 novembro 2020

eduardo pitta / vejo-os chegar à velocidade

 
 
Vejo-os chegar à velocidade
da erva
inquietos mais que desolados.
 
Vêm mudos, sujos
quase sempre, periféricos
a qualquer melancolia.
 
O campo, a cidade
e mesmo as gentes
lhes são estrangeiras.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011

 




20 setembro 2020

eduardo pitta / a tua ausência



A tua ausência
a encher-se de dunas.

Aquele bater de vidraças
na orla da praia.

O silêncio a insistir
a recusar-se ao rumor.

E a vida a fluir
lá fora.



eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011






07 agosto 2020

eduardo pitta / os meus amigos andam perdidos



Os meus amigos andam perdidos
um pouco por toda a parte.
De Lausanne ao Rio é o vasto mundo
dos desencontros, os mesmos que
de Naxos a Londres e de Manhattan ao Cabo
animam exílios vários.

Andam em diáspora os meus amigos.
Une-os, porventura, a mesma nostalgia.

Feridas antigas hipotecadas
ao futuro.


eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







23 abril 2019

eduardo pitta / detenho-me a roer



Detenho-me a roer
os dias que ainda faltam
e conto a mim mesmo
com desencanto
histórias velhas como o tempo
histórias que sirvam de ponte
entre o passado e o futuro.

E tão pouco tempo para as contar.


eduardo pitta
um cão de angústia progride
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







15 fevereiro 2019

eduardo pitta / nenhum de nós passeia impune




Nenhum de nós passeia impune
pelos retratos: fazem-nos doer
os recessos da memória.

Deles saltam, por vezes, sustos,
primeiras noites, secreta
loucura, lábios que foram.

Interditam-nos sempre.
Trepam-nos pelo torpor
mais desprevenido, subsistem.

A sua perenidade é volátil
e cheia de venenosos ardis.
Um sopro no oceano.

Distintos, os seus contornos
não são nunca
os que supomos.



eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011