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21 junho 2023

eduardo pitta / ligações perigosas

 
 
A história deles pode ter sido,
por vontade alheia,
a simulação excessiva
e luminosa
de outra culpa maior.
Ainda que Inês fosse um chavalo
 
Pedro não andaria ali à toa
e a legenda dos algozes trucidados quadra
de viés numa corte predadora.
Importa pouco a conexão
estrangeira, as dezassete léguas
de um cortejo
 
siderante como aqueloutro que à luz
de seiscentas arrobas de cera
para sempre mediatizou
D. João Afonso Telo, miminho
de cantareira de el-rei.
A boca à mercê de novas dominações.
 
 
eduardo pitta
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



06 agosto 2022

eduardo pitta / no enredo dos caminhos

 
 
1.
 
Os cães eram mudos e deu com eles por
acaso, farejando relógios de areia.
Naquela terra árdua havia ainda o enigma
dos homens e do seu alfabeto traído.
 
Podia pensar-se num simulacro. Era apenas
método. A obstinada construção de uma vontade
sem objecto.
Teria voltado fosse como fosse.
 
2.
 
Antes de nós outros tentaram.
Muitos não sabem que viagem alguma
se repetirá. Toda a demanda é vã.
Aquele muro não está ali
 
por acidente. Sequer a gosto de qualquer
feitor com inclinações pré-rafaelitas.
A manhã tinha ficado parecida com um pedaço
de vidro e era nítida a evidência de desastre.
 
 
3.
 
As coisas são como são.
Sempre haverá uma mão senhora de exemplar
desprendimento, atenta ao sufoco
e à deslocação da alma.
 
Assim foi, por socalcos de tabaco,
o enredo dos caminhos, ardente
magia. Pouco importa saber
que toda a paisagem mente.
 
 
4.
 
Gente propensa a ver a luz por um funil
a vê-la assim em corredores,
esplendidamente ignorante das forças vitais,
de qualquer alegoria. Esse sentido
 
mediúnico, três vezes milenário, de fabular
a perversa mudez dos animais.
Contudo eles estão onde os encontramos.
E estão simplesmente calados.
 
 
 
eduardo pitta
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989




 

09 junho 2021

eduardo pitta / hesita bastante

 
 
Hesita bastante. O inferno
é uma disciplina como qualquer outra.
Dias de vinho e rosas
pagos a peso de flagelo.
O arrebatado comércio dos sentidos?
Na cidade aberta a dementada
 
 
 
eduardo pitta
arbítrio
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





19 novembro 2020

eduardo pitta / vejo-os chegar à velocidade

 
 
Vejo-os chegar à velocidade
da erva
inquietos mais que desolados.
 
Vêm mudos, sujos
quase sempre, periféricos
a qualquer melancolia.
 
O campo, a cidade
e mesmo as gentes
lhes são estrangeiras.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011

 




20 setembro 2020

eduardo pitta / a tua ausência



A tua ausência
a encher-se de dunas.

Aquele bater de vidraças
na orla da praia.

O silêncio a insistir
a recusar-se ao rumor.

E a vida a fluir
lá fora.



eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011






07 agosto 2020

eduardo pitta / os meus amigos andam perdidos



Os meus amigos andam perdidos
um pouco por toda a parte.
De Lausanne ao Rio é o vasto mundo
dos desencontros, os mesmos que
de Naxos a Londres e de Manhattan ao Cabo
animam exílios vários.

Andam em diáspora os meus amigos.
Une-os, porventura, a mesma nostalgia.

Feridas antigas hipotecadas
ao futuro.


eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







23 abril 2019

eduardo pitta / detenho-me a roer



Detenho-me a roer
os dias que ainda faltam
e conto a mim mesmo
com desencanto
histórias velhas como o tempo
histórias que sirvam de ponte
entre o passado e o futuro.

E tão pouco tempo para as contar.


eduardo pitta
um cão de angústia progride
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







15 fevereiro 2019

eduardo pitta / nenhum de nós passeia impune




Nenhum de nós passeia impune
pelos retratos: fazem-nos doer
os recessos da memória.

Deles saltam, por vezes, sustos,
primeiras noites, secreta
loucura, lábios que foram.

Interditam-nos sempre.
Trepam-nos pelo torpor
mais desprevenido, subsistem.

A sua perenidade é volátil
e cheia de venenosos ardis.
Um sopro no oceano.

Distintos, os seus contornos
não são nunca
os que supomos.



eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011