31 agosto 2018

wislawa szymborska / as três palavras mais estranhas




Quando pronuncio aa palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006











30 agosto 2018

adonis / seis notas do lado do vento




I

                Que a poesia seja uma viagem aos confins do fora ou até ao mais íntimo do dentro, vivi nela, desde o início da minha empresa, um dentro que é no seu todo um fora, um fora indissociável do dentro. Senti porém que esse acto de escrita me exprimia menos do que designava o que eu queria exprimir de mim próprio, e o meu sentimento não variou desde então. A poesia, aos meus olhos, completa o homem, não é em nada a sua imagem. Não tinha nenhuma preocupação em criar uma harmonia entre o mundo e eu, mas tinha sempre o olhar fixo no abismo que se situa entre nós. Não escrevi portanto poesia no desígnio de encher esse abismo, mas como errância dentro dele e como exploração. Embora seja solicitado pela busca do sentido, ou de um sentido, adivinho que a minha identidade não se estabelece no que é estável, mas no que se move. Sinto que estou do lado do vento e da vaga.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016







29 agosto 2018

eduardo moga / sempre o soubemos: somos erro, erro




[…]

Sempre o soubemos: somos erro, erro
que caminha e constrói pirâmides, erro
que julga e apedreja e se solidifica
e reza a Deus e quebra as ancas do vinho.
E antes de perceber ao nosso redor
a lentidão com que trabalham os fósseis, muito antes
de saber que só há um mundo – espera ser –
o que o vento que move os plátanos também
move as nossas correias e que um mesmo escoamento
luminoso – detém-te – arrasta a gangrena
e o silício e o pânico e as folhas do ácer
para um mar de silêncio onde tudo se anula
e dolorosamente recomeça, muito antes
de nos darmos conta da nossa radical
penumbra, construímos a casa dos sabres
e caímos, cobertos de língua, num nadir
de destruição, de edemas e de recifes, de gruas,
de enxertos e suor, de seiva acorrentada,
com a única ambição de iludir o crónico
esqueleto, mas indo até ele, vendo-o erguer-se,
sentindo que se incarna no voo exausto
do condor e da farinha, na polpa indómita
dos assassinados, na hérnia do bosque
que já não vê a luz, que só sente o hálito
dos astros mais negros, lentamente invocados.



eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







28 agosto 2018

luís garcia montero / espelhos




                   Para Luis Muñoz



Não importa se dormiste pouco ou muito,
os espelhos de hotel nunca perdoam
e são como animais de montanha
que não aceitam o convívio dos homens.

A luz dos espelhos familiares
compadece-se de nós, porém,
ajuda-nos a fingir, e por afecto
ou por hábito consegue perdoar-nos.

Eu sei que os espelhos são a água
estagnada de um rio que se move.
E vi como o sol que se reverbera
pode ocultar o lodo das sombras.

Mas quem espreita o fundo dos teus olhos
vê as gretas do tempo, as aranhas
de um passado que surge inesperado
em manhã de hotel e nos ofende.

Para quê responder. Feche os olhos,
porque não há outra coisas que envelheça
pior do que o teu olhar.



luis garcia montero
quartos separados (1994)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018







27 agosto 2018

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos




perdi – quando partiste –
o completo sentido das metáforas…
terei adiado para outras tardes
abreviadas conversas
de suspeitos projectos?
– ou arrastado os olhos
para verdes mares
de idênticas cores?!
falo do Império
como do teu;
não mais fustigarei as palavras:
possibilidade inscrita no corpo
pela exaustão do silêncio,
deste
que fala o que digo
– em vez de mim para ti,
como se pelo espelho –
enquanto agarro
este e outro
coração nos meus gestos.


r. lino
palavras do imperador hadriano
segunda série
políptico
companhia das ilhas
2016







26 agosto 2018

josé gomes ferreira / memória



VIII

         (Skerzo)


Enterrava-se a noite
e às vezes também os astros
na alegria das férias
– para dar destinos azuis
Às raízes dos cardos
Cheias de estrelas
Estéreis.


josé gomes ferreira
poesia V
memória-II  1959
portugália
1973






25 agosto 2018

joaquim manuel magalhães / antónio palolo




oito

Quando a sair da juventude, um dia separaram-se. Nunca mais se viram. Apenas jeitos do corpo um do outro guardaram. Devem ter morrido pouco tempo depois, talvez junto de um rio, talvez junto da água a mágoa da memória perdoe. As luzes fogem, encontram-se muito ao longe, ignoradas de homens para outros homens prontos a morrer sem saber a quem chegarão suas verdades, sua solidão, os restos azuis das chamas.


joaquim manuel magalhães
antónio palolo
consequência do lugar
relógio d´água
2001








24 agosto 2018

rui costa / breve ensaio sobre a potência




1
a luz é a metáfora do verbo,
a matéria escura. ilumina
as paredes da água, é como
um vidro com as imagens
do avesso. o animal furtivo
que instaura a violência,
a mãe ao redor do silêncio.



rui costa
breve ensaio sobre a potência
(texto-ensaio composto por 31 fragmentos)
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017






23 agosto 2018

carlos poças falcão / há sempre a laranjeira no quintal




Há sempre a laranjeira no quintal.
Ali a verde salsa. Além a hortelã.
Ao fundo o limoeiro. Do caleiro
o marulhar da água. Sobre a casa
a sonolência. O gato a ronronar.
Abra-se a janela para me maravilhar.
Ainda sou pequeno. Estou ainda a acumular
tardes como essa, liquidas e verdes.
Passem muitos anos para aqui as inventar.



carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







22 agosto 2018

mário cesariny / muito acima das nuvens seja o centro





Muito acima das nuvens seja o centro
                das nossas misteriosas poéticas
                o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
                     nos ermos mais altos
                          mais desaparecidos



mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







21 agosto 2018

sophia de mello breyner andresen / che guevara





Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece


Lisboa, 1972



sophia de mello breyner andresen
o nome das coisas  I (1972-73)
obra poética
assírio & alvim
2015









20 agosto 2018

joão rebocho / chegamos iluminando






chegamos iluminando:
formidáveis deuses novos
adolescentes com revólveres
rapazolas a fumar
duas da manhã e a louça intacta
no balcão dos bares
caímos de pé
absolutos absolut
advocacy e excesso
puros olhos de joalharia
transparentes
imberbes esterilizados
água tónica gin e
arquitectura
Homero em língua francesa
os porteiros apagavam-se
e as discotecas?
o maior rio da Europa


joão rebocho
mentira vontade
edição do autor
2018





19 agosto 2018

fernando pessoa / como é por dentro outra pessoa




Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

1934



fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955








18 agosto 2018

carlos de oliveira / vento




As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.


carlos de oliveira
cantata
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001








17 agosto 2018

eugénio de andrade / sul




Podia ser do feno, ou dos limoeiros, mas não: era da juventude, aquele aroma. Atravessa o pátio, entra pela varanda. Tenho que defender-me desta lâmina aguda. Sobre a garganta.



eugénio de andrade
memória doutro rio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000












16 agosto 2018

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci




III

Um trapo vermelho, como o que
cinge o pescoço dos partigiani
e, junto da urna, na terra cor de cera,

dois gerânios de um vermelho diferente.
Aí estás, banido, na tua graça austera,
não caótica, registado entre os mortos

estrangeiros: As cinzas de Gramsci… Entre esperança
e velha desconfiança, aproximo-me, chegado
por acaso a esta descarnada estufa, diante

do teu túmulo, e do teu espírito que ficou
neste mundo entre os homens livres. (Ou talvez seja
uma coisa diferente, mais extasiada

e mais humilde, ébria e adolescente
simbiose de sexo e morte …)
E nesta terra onde nunca a tua paixão

teve repouso, sinto o mal que fizeste
– aqui, no sossego dos túmulos – e ao mesmo tempo
o bem – no nosso inquieto

destino – ao escreveres as derradeiras
páginas nos dias do teu assassinato.
Aqui estão, a confirmar a semente

ainda não dispersa do poder antigo,
estes mortos ligados a uma posse
que enterra nos séculos a sua iniquidade

e a sua grandeza: e ao mesmo tempo, obcecada,
a vibração de bigornas, em surdina,
sufocada e pungente – vinda do bairro

humilde – a confirmar o seu fim.
E aqui estou eu… pobre, vestido
com roupas que os pobres cobiçam em montras

de esplendor grosseiro, desbotadas
pelo lixo das ruas mais perdidas,
dos bancos dos eléctricos, que atordoaram

todo este meu dia, a mim, que cada vez mais
raros tenho ócios destes, no suplício
de me manter vivo; e se por acaso

me acontece amar o mundo, é só com violento
e ingénuo amor sensual,
tal como, confuso adolescente, noutro tempo

o odiei, quando nele me feria o mal
burguês de mim burguês: e se agora o mundo
está – contigo – dividido, não será objecto

de rancor e de desprezo quase
místico a parte que nele tem o poder?
Mas sem o teu rigor, subsisto

porque não escolho. Vivo no não querer
do pós-guerra passado: amando
o mundo que odeio – desdenhoso

e perdido na sua miséria – para obscuro escândalo
da minha consciência…




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005








15 agosto 2018

gil t. sousa / desertos





1-

à água
dávamos as mãos secas

os olhos
se a beleza nos tentasse

e esperávamos




gil t. sousa
desertos