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02 outubro 2024

sophia de mello breyner andresen / manhã de outono num palácio de sintra

 
 
 
 
Um brilho de azulejo e de folhagem
Povoa o palácio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado
 
Ele não quis ouvir o alaúde dos dias
Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mão rejeitou o sussurro das águas
 
Mas o pequeno palácio é nítido – sem nenhum fantasma –
Sua sombra é clara como a sombra de um palmar
No seu pátio canta um alvoroço de início
Em suas águas brilha a juventude do tempo
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 



06 agosto 2024

sophia de mello breyner andresen / mãos

 
 
 
Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999
 



26 dezembro 2023

sophia de mello breyner andresen / a pequena praça

 




 
A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça
Naquele outono em que a tua morte se organizava
                                               [meticulosamente
Eu agarrava-me à praça porque tu amavas
A humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojas
Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer
E a vida toda deixava ali de ser a minha
Eu procurava sorrir como tu sorrias
Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco
E à mulher sem pernas que vendia violetas
Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti
Eu acendia velas em todos os altares
Das igrejas que ficam no canto desta praça
Pois mal abri os olhos e vi foi para ler
A vocação do eterno escrita no teu rosto
Eu convocava as ruas os lugares as gentes
Que foram as testemunhas do teu rosto
Para que eles te chamassem para que eles desfizessem
O tecido que a morte entrelaçava em ti
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 




05 outubro 2023

sophia de mello breyner andresen / intervalo

 




 
Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
 
Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
 
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma
 
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999
 



17 julho 2023

sophia de mello breyner andresen / espera

 
 
Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa
 
É então que se vê o passar do silêncio
 
Navegação antiquíssima e solene
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
a noite e a casa
obra poética
assírio & alvim
2015
 

23 dezembro 2022

sophia de mello breyner andresen / evadir-me

 
 
Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dia do mar
obra poética
assírio & alvim
2015





01 outubro 2022

sophia de mello breyner andresen / l’ âge d´airain

 (Rodin)
 
 
 
Devagar, devagar, em frente à luz
Carregado de sombras e de peso
Arrancando o seu corpo da raiz
 
No extremo dos seus dedos nasce um voo
No vértice do vento e da manhã
Uma asa vai – perdida dos seus dedos.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999




26 abril 2022

sophia de mello breyner andresen / é por ti

 
 
É por ti que se enfeita e se consome,
Desgrenhada e florida, a Primavera
É por ti que a noite chama e espera
 
És tu quem anuncia o poente nas estradas.
E o vento torcendo as árvores desfolhadas
Canta e grita que tu vais chegar.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999




07 janeiro 2022

sophia de mello breyner andresen / longe e nítidos

 
 
Longe e nítidos caminham os caminhos
Duma aventura perdida.
Próxima a brisa
Abre-se no ar.
 
É o azul e o verde e o fresco duma idade
Morta mas que regressa
Com os seus claros cavalos de cristal
Que se vão esbarrar no horizonte.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral
obra poética
assírio & alvim
2015




04 maio 2021

sophia de mello breyner andresen / sequência

 
 
I
 
Como esquecida voz de um amor muito antigo
Desgarram-se no ar as pancadas de um sino
A casa onde moro não fica rente às águas da laguna
Mas a parede é branca e vê-se o rio
E embora hydras e fúrias nos desfiem
A diversidade de coisas como Ponge diz
Não constrói
 
 
II
 
A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas tomar em minha voz a veemência das coisas
Fazer do mundo exterior substância da minha mente
Semelhante ao que devora o coração do leão
 
Vê o que viste
Atenta para a caçada no quarto penumbroso
 
 
III
 
Mimesis
E vós Musas filhas da memória
De leves passos no cimo do Parnaso
Suave a brisa a fonte impetuosa
– Princípio fundamento rosto-início
Espelho para sempre os olhos verdes
As longas mãos as azuladas veias
 
1989
  
 
 
sophia de mello breyner andresen
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





25 fevereiro 2021

sophia de mello breyner andresen / inverno

 
 
Este Inverno é longo gélido
E confuso
Na varanda só o vento passa
E o vento olha-nos de esguelha quando passa
 
Nenhum poema aflora
Entre as linhas finas e aéreas
Da página em branco
 
 
Inverno de 1999
 
 

 
sophia de mello breyner andresen
poemas dispersos
obra poética
assírio & alvim
2015





 

09 novembro 2020

sophia de mello breyner andresen / estrada

 
 
Passo muito depressa no país de Caeiro
Pelas rectas da estrada como se voasse
Mas cada coisa surge nomeada
Clara e nítida
Como se a mão do instante a recortasse.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004

 






15 julho 2020

sophia de mello breyner andresen / as casas



Há sempre um deus fantástico nas casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contém todo o vento dos espaços.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999











03 abril 2020

sophia de mello breyner andresen / a hora da partida



A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


sophia de mello breyner andresen
poesia III
obra poética
assírio & alvim
2015





21 novembro 2019

sophia de mello breyner andresen / descobrimento




Saudavam com alvoroço as coisas
Novas
O mundo parecia criado nessa mesma
Manhã



sophia de mello breyner andresen
poemas reencontrados
obra poética
assírio & alvim
2015











16 agosto 2019

sophia de mello breyner andresen / serenamente…




Serenamente sem tocar nos ecos
Ergue a tua voz
E conduz cada palavra
Pelo estreito caminho.

Vive com a memória exacta
De todos os desastres
Aos deuses não perdoes os naufrágios
Nem a divisão cruel dos teus membros.

No dia puro procura um rosto puro
Um rosto voluntário que apesar
Dos tempo dos suplícios e dos nojos
Enfrente a imagem límpida do mar.



sophia de mello breyner andresen
no tempo dividido
obra poética
assírio & alvim
2015








07 junho 2019

sophia de mello breyner andresen / aqui



Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu – eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou e em tudo quanto amei.

Não por aquilo que só atravessei,
Não p´lo meu rumor que só perdi
Não p´los incertos actos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.



sophia de mello breyner andresen
dia do mar
obra poética
assírio & alvim
2015







26 abril 2019

sophia de mello breyner andresen / quadrado



Deixai-me com a sombra
Pensada na parede
Deixai-me com a luz
Medida no meu ombro
Em frente do quadrado
Nocturno da janela



sophia de mello breyner andresen
a noite e a casa
obra poética
assírio & alvim
2015








29 março 2019

sophia de mello breyner andresen / se alguém passa agora nos areais,




Se alguém passa agora nos areais,
Se alguém passa agora nos pinhais,
Diz,
Em gestos plenos e naturais,
Tudo o que eu, tão em vão, perdidamente quis.



sophia de mello breyner andresen
dia do mar
obra poética
assírio & alvim
2015









14 dezembro 2018

sophia de mello breyner andresen / espera-me




Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido

Mas espera-me
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.



sophia de mello breyner andresen
coral
obra poética
assírio & alvim
2015