31 julho 2017

samuel beckett / dortmunder



No mágico homérico crepúsculo
para além do pináculo vermelho do santuário
Eu nulo era velho navio real
apressamo-nos a ir à lâmpada violeta ao som
                   [esganiçado da música K'in da proxeneta.
Ela está de pé perante mim na barraca
                                             [iluminada
sustentando os estilhaços de jade
signaculum escalavrado da quietude da pureza
os olhos olhos pretos até que o oriente plagal
resolva a longa frase da noite.
Depois, como um rolo, enrolado
e a glória da sua dissolução ampliada
em mim, Habacuque, excremento de todos os
                                                           [pecadores.
Schopenhauer morreu, a proxeneta
guarda o alaúde.


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



30 julho 2017

álvaro de campos /cul de lampe




Pouco a pouco,
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja exactamente na mesma posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo morrendo,
Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem ser.
Vou sendo tudo menos eu.
Acabei.
Pouco a pouco,
Sem que ninguém me falasse
(Que importa tudo quanto me tem sido dito na vida?),
Sem que ninguém me escutasse
(Que importa quanto disse e me ouviram dizer?)
Sem que ninguém me quisesse
(Que importa o que disse quem me disse que queria?),
Muito bem...
Pouco a pouco,
Sem nada disso,
Sem nada que não seja isso,
Vou parando,
Vou parar,
Acabei.
Qual acabei!
Estou farto de sentir e de fingir em pensar,
E não acabei ainda.
Ainda estou a escrever versos.
Ainda estou a escrever.
Ainda estou.
(Não, não vou acabar
Ainda...
Não vou acabar.
Acabei.)
Subitamente, na rua transversal, uma janela no alto e que vulto nela?
E o horror de ter perdido a infância em que ali não estive
E o caminho vagabundo da minha consciência inexequível.
Que mais querem? Acabei.
Nem falta o canário da vizinha ó manhã de outro tempo,
Nem som (cheio de cesto) do padeiro na escada
Nem os pregões que não sei já onde estão —
Nem o enterro (ouço as vozes) na rua,
Nem trovão súbito da madeira das tabuinhas de defronte no ar de verão
Nem... quanta coisa, quanta alma, quanto irreparável!
Afinal, agora tudo cocaína...
Meu amor infância!
Meu passado bibe!
Meu repouso pão com manteiga boa à janela!
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!

2-7-1930




álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993





29 julho 2017

miguel-manso / percorrendo os antigos gozos me deparo




percorrendo os antigos gozos me deparo
com o estreito meridiano e para lá

um tempo de férias ara grandes crianças
folgando sem pé na ribeira do começo

pena que tivéssemos ceifado (não era obrigatório)
tamanha soma de rãs



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015




28 julho 2017

herberto helder / fonte




VI
Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo
onde rolam os cálices transparentes da primavera
de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras
ou descubro o teu nome como uma paisagem,
só há grutas virgens onde os candelabros se apagam.
Mãe, pouco resta de ti na exaltação deste mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste,
através das palavras impuras da minha vida
de poeta.


No outro lado da mesa estás inteiramente
morta. Parece que sorris de leve no meu
pensamento, mas sei que é apenas
a solidão espantada. Como pudeste morrer assim
tão violenta e fria,
quando ainda meus dedos começavam a agarrar-te
a cabeça inclinada dentro
das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos
onde procuro afogar-me como uma criança
nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras,
perdidos um no outro, sorrindo,
como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna.


Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.
Tu desapareceste. É um erro
das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas,
onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou ainda
ligeiramente tocada pelo ardor
de uma existência pura. Conheço grandes casas
onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,
laranjas que devoro sentindo o gosto da vida, desde a garganta
às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.


Imagino que seria possível tocares porventura
a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente
que eu estremecesse nas trevas
da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus
ombros, até que as lágrimas
na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse
perdido entre os pilares e os túneis das cidades
ressoantes.


 – Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira,
e os olhos delicados de mulher restituída,
e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado,
– talvez
pudesses salvar-me, como uma palavra pode
salvar um pensamento, ou uma
breve música pode acordar do abismo inocente
da noite
um instrumento encerrado em suas cordas extenuadas
– e firmes.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





27 julho 2017

fernando echevarría / tem a secura virtual do luto




Tem a secura virtual do luto
a sua luz implícita.
E o ímpeto convulso
que há-de inflamar a energia
do estrépito compacto. Para o susto
percutir a dureza de faísca.
Alastra estar para eclodir o mundo.
Ou, nem nebulação de massa ainda,
essa iminência de secura e luto
condensa acaso o seu rastilho estrita.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





26 julho 2017

carlos de oliveira / descida aos infernos


1
Desço
pelo cascalho interno a terra
onde o esqueleto da vida
se petrifica protestando.

Como um rio ao contrário, de águas povoadas
por alucinações mortas boiando levadas
para a alma da terra,
procuro os úberes do fogo.




carlos de oliveira
descida aos infernos
antologia poética
quasi
2001





25 julho 2017

ingeborg bachmann / invocação da ursa maior




Ursa Maior, desce noite hirsuta,
animal de pêlo de nuvens e olhos antigos,
olhos estelares;
irrompem cintilantes da espessura
as tuas patas e garras,
garras de estrelas;
atentos, vigiamos os rebanhos,
e, ainda que fascinados por ti, evitamos
os teus flancos cansados, os teus dentes aguçados
meio descobertos,
velha ursa.

Uma pinha: o vosso mundo.
Vós: as suas escamas.
Movo-o, faço-o rolar
dos pinheiros do princípio
aos pinheiros do fim:
farejo-o, tenteio com o focinho
e arrebato-o com as garras.

Que tenhais medo ou não:
deitai o vosso óbulo na caixa tilintante e dai
ao cego uma boa palavra,
para que tenha a Ursa pela trela.
E temperai bem os cordeiros.

Poderia acontecer que esta Ursa
se escapasse e já não ameaçasse
antes desse caça a todas as pinhas
caídas dos pinheiros, grandes, aladas,
despenhadas do Paraíso.




ingeborg bachmann
trad. josé lima
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







24 julho 2017

yorgos seferis / romance



II
Ainda mais um poço dentro de uma caverna.
Outrora era-nos fácil extrair ídolos e adornos
para se alegrarem os amigos que nos permaneciam
          ainda fiéis.

As cordas romperam-se; apenas sulcos na boca
          do poço
nos lembram a nossa felicidade passada:
os dedos no murete, como dizia o poeta.
Os dedos sentem a frescura da pedra um pouco
e o calor do corpo conquista-a
e a caverna joga a sua alma e perde-a
a cada momento, cheia de silêncio, sem uma gota.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993






23 julho 2017

álvaro de campos / domingo irei para as hortas na pessoa dos outros




Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Subtil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

9-8-1934


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944




22 julho 2017

tereza balté / os mitos



Os nossos gestos passam as palavras
prenunciam-lhes riscos sedimentos
partículas pensadas poluídas
sob a delicadeza com as feridas
o fio de sangue impresso nas bainhas

a erosão da voz no universo

e no entanto há arestas macias
o sal na língua o rir dos interstícios
as fórmulas que inventas na areia
arestas verosímeis que sustêm
parábolas em busca de finito




tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977







21 julho 2017

rené char / folhas de hipno




6
O esforço do poeta visa transformar velhos inimigos em leais adversários, dependendo toda a fertilidade do porvir do sucesso desse projecto, sobretudo no ponto preciso em que se lança, se enlaça, declina, é dizimada toda a variedade dos véus em que o vento dos continentes entrega o seu coração ao vento dos abismos.

         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




20 julho 2017

jorge luís borges / a prova




Do outro lado desta porta um homem
ignora a sua corrupção. À noite
elevará em vão alguma prece
ao seu curioso deus, que é três, dois, um,
e julgará que é imortal. Agora
ele ouve a profecia da sua morte
e sabe que é um animal sentado.
És esse homem, irmão. Agradeçamos
os vermes e o esquecimento.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




19 julho 2017

gil nozes de carvalho / no elevador da bica



1
O dia contrai na luz a rosa, dor
e ter um nome e perfumá-lo
sem saber porquê. Lá para o cimo
arde firme a mucosa no pátio
sujo. Cresce o cheiro, a palma
volta-se no sol esconde o rio,
um qualquer sexo, rapado
antes dos primeiros portos.


2
Doeu-lhe, esquecida uma das mãos,
na muralha, o aroma esfacelado mas
encontrou o que sempre quis
a superfície, o nome do castelo
na tensa água de uns olhos.




gil nozes de carvalho
alba
gota de água
1982




18 julho 2017

wystan hugh auden / blues fúnebres




Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com os tambores em surdina
Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre.

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das pombas
     da cidade,
Que os policias de trânsito usem luvas pretas de algodão

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha
      canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me.

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol:
Despejem o oceano e varram o bosque;
Porque agora tudo é inútil.


w. h. auden
diz-me a verdade acerca do amor
dez poemas
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
1994




17 julho 2017

pedro oom / autoficção amorosa




Construí-a
irreal
transparente
lúcida     esguia     um mar
                            interior na barriga
   correias de transmissão nos cabelos


Os anéis de Saturno são a força centrí-
      fuga centrípeta que lhe agita os braços
      no espasmo amoroso

Halley o metropolitano

75 milhões de anos-luz atravessam-na da cabeça
                                                      à cauda

deito-me com ela todas as noites na via láctea



pedro oom
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001