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24 março 2024

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores

 



 

3
 
esquecida sobre a cadeira
a escova do cabelo a que se ensarilharam
desperdícios de reflexão
e untada numa porção de sol
 
pede para tomar conta do poema
 
mas é do outro lado depois
do janelão
no flagício de ruas e telhados entre
frondes e antenas
 
que vemos formar-se a miragem deste texto
diverso de civitas solis
em que se tornou esta varanda coberta
 
mas não se sabe o que venta agora
pelo mundo nem se o que grafamos fará um dia
parte do território
 
escova, Universo
a que soaria o que nunca se dissesse?
 
 
 
miguel-manso
persianas
tinta da china
2015
 




10 fevereiro 2022

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores

 
 
13
os textos são um retrato dos dias
 
ou um salão dentro do qual repousa
uma jarra de porcelana
 
formas que resultam de frágil
consistência pedindo à violência o seu
imodesto exercício de tumulto
 
quantas gerações mais de versos
porém
 
queimarão à vez e com brandura estes
mesmsíssimos enredos
 
 
 
miguel-manso
persianas
tinta da china
2015




 

04 fevereiro 2021

miguel-manso / estoril, hotel do parque

 
(com a voz de Alexander Alekhine)
 
 
o mar vem pôr seus dedos
escuma de café
sobre a rocha e o cimento
enquanto um peixe
trépido nada por dentro de um copo
 
ouvem-se passos no corredor
uma colher sobre a toalha
reflecte um incêndio de consumadas
luminâncias
 
roda a toda a lentidão a maçaneta
e a lembrança desse abeto coberto de neve
tantos quilómetros ao fundo
amenizou o corado enxovalho deste
hesitar com o rei encurralado
 
Morte, é a tua vez de jogar
 
 
 
miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018

 




08 outubro 2018

miguel-manso / lamento londrino





passaram anos sem ter servido à poesia
porque é que agora volto ali?

Londres era, palavra, aquele mesmo nevoeiro
fastidioso, uma morrinha triste como se espera que seja
eu muito novo ainda para saber conciliar a acne
do rosto com a dolência da alma com que acudia
sobre a cama do hotel (colcha amarela, descosida, desmaiada)
a um disco insuportável do Choen: Live Songs, 1973

é fácil perceber agora o porquê de ter repetido
tantas vezes aquele Minute Prologue
dava corda à melancolia, era cedo e tarde para
tanta coisa, e naquele tempo eu tinha a convicção de ser
a pessoa menos contemporânea de mim mesmo

a noite, uma ambulância, o vidro molhado
da janela do quarto onde as imagens nebulosas do dia
nunca se fixavam

terei tentado o choro, o suicídio?
nada, nem um cigarro

viajava, que extravagância, com os meus pais
a autonomia e o inglês rudimentares
coragem nenhuma para ir socorrer sozinho



miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018







13 abril 2018

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores


  
51
um calendário sonegando o Verão
se por ele unicamente me guiasse inventaria
em segredo mais jubiloso almanaque

afastando-me do receio com que entregasse
dedicado o termo desta opereta


miguel-manso
persianas
tinta da china
2015








29 julho 2017

miguel-manso / percorrendo os antigos gozos me deparo




percorrendo os antigos gozos me deparo
com o estreito meridiano e para lá

um tempo de férias ara grandes crianças
folgando sem pé na ribeira do começo

pena que tivéssemos ceifado (não era obrigatório)
tamanha soma de rãs



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015




06 setembro 2016

miguel-manso / que dia é hoje



que dia é hoje em redor do tempo

a erva cresce acende o fogo a cada flor
é uma maneira distinta de praticar o inteiro:
antever o desfecho da cordilheira solar

montado ainda na bicicleta da manhã



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015



26 março 2016

miguel-manso / cesariny de roupão ao piano



Lisboa Rua do Sol ao Rato
chuva

correndo na direcção do Largo
quase derrubei um velho de sobretudo
que acenava de bengala
gesto ancho
para a graça de um prédio devoluto

admirei a pintura desse
obstáculo posto entre a passagem dos elefantes
Ganecha montado num
Roedor

Mário Cesariny era Surya sob influência
de um Ganges atmosférico
ainda raspei no acontecimento ainda
olhei para trás

e quando de novo me virei
já havia
entrado num veículo desaparecido num aceno
de múltiplos braços

o Sol terá despontado por cima
o rato iluminou

mudou para tarô num anagrama fácil

o bardo
finou subiu tornou enfim ourives
como quisera o pai
porém de um metal distinto agora
corpo invisível

óleo sobre cartão

queremos vê-lo hoje entre uma horda
de anjos marujos
que jamais o deixarão ir sozinho para
casa

amando-o à varanda do tempo como
na praia nortenha da infância
enxame de pirilampos dispersos sobre a água
de um poço escuro

como se de novo a irmã pousasse
sobre a mesa o bule tornasse à cozinha
raspando as pantufas

e de roupão voltasse Mário
da janela
vertesse os dedos extraordinariamente
sobre o marfim pálido

e tocasse



miguel-manso
da cegueira dos pintores
persianas
tinta da china
2015




21 abril 2015

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores


7

à noite quando a lua repousa no ombro
mais chegado à melancolia

a chávena mal se distingue no parapeito
e a peste dos meus versos alastra lá ao fundo
numa abandonada escrivaninha

sou o escravo doido que repousa do idioma
entregando-se ao inaparente ruído dos insectos
e de mãos tombadas sobre o vazio

vela o descomedido trauma terreal



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015


















06 junho 2013

miguel-manso / o diabo em alta definição



a caminho do Pátio do Salema
reparei num homem de pé, numa ruela, que assistia
à tourada por telemóvel

o pasodoble alumiava-lhe o rosto

Évora é um labirinto estranho, quase perfeito
e belo de mais para o que contém



miguel-manso
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013


18 maio 2013

miguel-manso – III wim mertens


stratégie de la rupture


  
o Pragal (evitámos sempre
peregrinações que fossem para lá
da praia mais a sul da Caparica) era
uma manhã muito branca

vindos de Lisboa e da Noite
ainda os olhos ruminavam os reflexos do rio
que havia maquinado beleza e cegueira
dentro do comboio da ponte e de nós

a sala de desenho
─ com a palavra Deleuze a giz no quadro negro
seguida de mais uma daquelas citações bastante
herméticas e, diga-se, cheia de erros ortográficos ─
era tão branca como a manhã do Pragal

alguns de nós eram os menos talentosos
artistas do Reino

eu, por exemplo, que preferia mil vezes
o almoço na cantina, a comer o coração da mãe
para entender a linguagem dos pássaros
e apreciava a chegada do bom tempo
cultivando a preguiça nos jardins
a minha produção, é verdade, caminhava já
para um lugar etéreo, ténue, um desses lugares
que podemos encontrar apenas no Dicionário de
lugares imaginários (nem deve ter sequer entrada)
limitava-me a marcar em algumas folhas
uns insuspeitos carimbos
que comprara

em  lugar das académicas vaias
havia para nós, Joana, músicas




miguel-manso
canções para joana d´ar.co
telhados de vidro nr. 12
maio 2009