31 julho 2020

paul auster / credo



As infinitas


pequenas coisas. Por uma vez respirar tão-só
na luz das infinitas


pequenas coisas
que nos rodeiam. Ou nada
pode escapar


ao encanto dessa escuridão, o olhar
descobrirá que somos apenas
o que nos fez
menos do que somos. Nada dizem. Dizer:
as nossas vidas mesmas


dependem disso.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002







30 julho 2020

rené char / férias ao vento



Nos flancos da encosta da aldeia, bivacam campos cobertos de mimosas. Na época das colheitas pode ser que, a uma certa distância, nos suceda um encontro extremamente odorífero com uma rapariga cujos braços durante o dia se afadigaram entre os frágeis ramos. Semelhante a uma lâmpada cuja auréola de claridade fosse de perfume, desaparece, de costas voltadas para o sol poente.

Seria sacrilégio dirigir-lhe a palavra.

Calcando a erva com as alparcatas, deixai que vos passe à frente. Quem sabe se não tereis a sorte de distinguir nos seus lábios a quimera da Noite?

         

rené char
furor e mistério
sós permanecem (1938-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000









29 julho 2020

manuel de freitas / prólogo



O tempo, esse pequeno escultor,
prolongou-te os gestos
até à exaustão, ao limite do escárnio,
ao inoportuno reclame daquele
que vai morrer e não morre
e fala demasiado sobre o silêncio do seu grito.

Paciência. Não poderia ter sido de outra
maneira. Há uma infância parada,
onde o cadáver de deus
nada quer dizer. Sim, tem chovido muito.
Mas que saberá destas mesmas horas
o gato negro que a tua mão já não encontra?

Deténs-te, usas palavras vãs. Despedes-te.
Sabes que foi sempre assim.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002






28 julho 2020

luís filipe parrado / teoria da narrativa familiar



Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.


luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019





27 julho 2020

david lehman / passagem escura



Ele disse que sentia a falta da cidade. Queria dizer que sentia a falta dela
E o seu hábito de cravar cigarros, aparecer tarde,
Com ar de opulência. Não admirava ele não conseguir lembrar-se
Da cara dela de manhã ou do nome do país
Onde estava ou da natureza exacta da sua missão.
Receava perdê-la se a olhasse, mas
Não conseguia evitá-lo. E ela devolvia o olhar
Com os olhos maiores e mais tristes que ele já vira.
Depois ela desaparecera, engolida por uma multidão oceânica,
Uma multidão carnavalesca cheia de carteiristas e ladrões,
A distância entre os amantes continuou a estender-se
E ele continuou a chamar por ela. O oceano lançou-a
Numa costa estranha. Algumas pessoas usavam máscaras,
Tinham todos bebido vinho de mais. Estava escuro,
No bar a cassete durava sessenta minutos,
Ele já ouvira “These Foolish Things” em Francês
Sete vezes, só que desta vez outra pessoa estava com ele,
Cuja face ele nunca consegue ver. O sono para variar
Veio rapidamente. A sua ambição era grande.
Ele disse que se referia a ele. Na verdade a qualquer um.



david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017






26 julho 2020

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido



47
Com o dedo escreves
no vidro molhado
uma palavra indecifrável

Às oito e meia da manhã
na cidade apressada
ninguém a pode ver

Mas quem ouve o segredo
desse arabesco de árvore
já não vai ao emprego

Fica tonto a olhar
enternecidamente
tudo e nada

mesmo sem entender


mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




25 julho 2020

jorge melícias / debruçado sobre a benevolência dos séculos



Debruçado sobre a benevolência dos séculos
o cronista outorga mesuras e desdouros,
intende a blandícia da cautela,
a pua retraída do orgulho.
E a história é um animal acocorado
sob a lisonja do aparo.


jorge melícias
a oratória dos manso (2017)
a oratória dos mansos
porto editora
2020












24 julho 2020

roberto juarroz / os nomes não designam as coisas:




Os nomes não designam as coisas:
envolvem-nas, sufocam-nas.


Mas as coisas rasgam
as ligaduras das palavras
e voltam a estar aí, nuas,
à espera de algo mais que os nomes.

Só pode dizê-las
a sua própria voz de coisa,
a voz que nem ela nem nós sabemos,
nessa neutralidade que pouco fala,
esse mutismo enorme onde as ondas rebentam.


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






23 julho 2020

joão almeida / sina


  
tenho poucas palavras
duas para uma caixa de fósforos
uma para lavar as mãos
nenhuma para este poema


joão almeida
canto skin
língua morta
2019













22 julho 2020

herberto helder / os ritmos


[…]

Por acidente: fui ter ao inferno.
Eu passava à hora mais movimentada, na parte baixa da
cidade.
Era a minha cidade, a cidade onde vivo, de que tão bem
conheço as ruas e as casas, os labirintos, os nomes, a secreta mate-
mática dos fluxos e refluxos, as temperaturas.
Não é preciso ser estrangeiro – tomar comboios ou aviões,
atravessar as águas.
O inferno é o último segredo do nosso conhecimento quo-
tidiano.

[…]


herberto helder
apresentação do rosto
os ritmos
porto editora
2020






21 julho 2020

fabio morábito / pedem-me sempre poemas inéditos



Pedem-me sempre poemas inéditos.
Ninguém lê poesia
mas pedem-me poemas inéditos.
Para a revista, o jornal, a performance,
o encontro, a homenagem, o sarau:
um poema, por favor, mas inédito.
Como se soubessem de cor o que escrevi.
Como se estivessem cheios da minha poesia
e precisassem agora de algo inédito.
A poesia é sempre inédita, disse o poeta num poema,
mas eles ignoram-no porque não lêem poesia,
só pedem poemas inéditos.




fabio morábito
a corja nr.º 1
março de 2020
língua morta
2020







20 julho 2020

vítor nogueira / segunda voz


I

Olha à tua volta. O que é que falta aqui?
Está uma belíssima noite, pelos padrões do Alasca,
a cidade inteira enrolada a um canto da névoa
e a sala de uma casa emprestada a transformar-se
num mecanismo adicional de solidão:
retratos e livros misturados nas estantes,
memórias alheias de que não tiras proveito.

Quem foi o tolo que disse que a ausência
Faz crescer o afecto? Guarda a tua raiva,
é um recurso precioso. Não te livras do turno
da noite, dos pensamentos neuróticos da tua cabeça,
uma espécie de monólogo das aulas de teatro. Mas
quem sabe o que o passado te reserva para esta insónia?
Pode ser whisky, ou preferes algo mais frutado?


2

Movimentos maiores e mais livres,
cobertura mínima em caso de catástrofe,
esta música tem o mesmo que este whisky:
a grande surpresa dos ossos.

Viajar assim no tempo é cansativo, com o passado
a balançar de forma horrível. Companheiro,
equilibra-te, é tudo uma questão de aprumo.
Quem faz a segunda voz? Qual de nós

presta atenção aos movimentos da terra?
Aproxima-te do espelho. Tu sabes quem sou,
o que fiz, a que pressão fui sujeito. Além do mais,
é bom ver-te. Não tenho com quem falar.


vitor nogueira
ladrador
averno
2012






19 julho 2020

rainer maria rilke / os sonetos a orfeu


XXI

Canta meu coração, jardins que não conheces;
claros, fundidos em vidro, impossíveis de alcançar.
Água e rosas de Ispahan e de Chiraz, ah! tece-
-lhes louvores, cantas sua ventura, são sem par.

Mostra, meu coração, que deles não te privas.
E que pensam em ti seus figos que já adoçam.
Que tens trato co as brisas, entre os ramos, vivas,
Como se em rosto transformar-se possam.

Evita o erro de haver falhas, lacunas,
prà decisão cumprida, e essa é: existir!
Fio de seda, entraste no tecido.

Não importa a que imagem lá por dentro te unas
(instante até, numa vida de penas), vem sentir:
só o tapete inteiro e em glória faz sentido.



rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017





18 julho 2020

sérgio pereira / apaga o cigarro na cúpula do céu



apaga o cigarro na cúpula do céu
a alegria queima como uma desgraça
não consegues ver o que te rodeia
e procuras cair
onde haja um lençol de água

governas os instantes
a partir da superfície
mas o cheiro a resina
fez da tua língua uma eira
para a aterragem dos pássaros

não cumpras o destino da argamassa
chegou a altura de ouvires o frio
e numa terra de ninguém
abraçares a alvorada


sérgio pereira
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997






17 julho 2020

s. kierkegaard / a verdadeira fruição



A verdadeira fruição não está naquilo de que se frui, mas na representação. Se tivesse ao meu serviço um espírito submisso que, quando eu pedisse um copo de água, me trouxesse os vinhos mais preciosos do mundo inteiro agradavelmente misturados numa taça, então dispensá-lo-ia, até que ele aprendesse que a fruição não está naquilo de que fruo, mas em fazer a minha vontade.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011












16 julho 2020

fabio weintraub / hotel




Voltei depois de quinze anos
Queria rever meus pais
assentar praça
arrumar marido

Arrumei um diretor
que afaguei por uma década
e ele saiu à francesa
(por um triz não meti
Uma bala na cabeça)

Já tentei me proteger
Num colar carregava
os ossos do meu avô
e uma safira em meus dentes
(o colar acabei dando, a pedra
no hospital me roubaram)

Nasci girino:
operado antes de um ano
deprimido aos cinco
dopado aos doze

Por ser gago e gay
sempre me humilharam
Tia Rana me protegia
Morreu cedo porque me amava

Não posso comer em público
mastigo como quem defeca
A conta é mamãe quem paga

Barriga de mãe
é o hotel mais caro do mundo


fabio weintraub
telhados de vidro n.º 19
maio de 2014
averno
2014







15 julho 2020

sophia de mello breyner andresen / as casas



Há sempre um deus fantástico nas casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contém todo o vento dos espaços.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999











14 julho 2020

josé carlos ary dos santos / soneto presente



Não me digam mais nada senão morro
aqui     neste lugar     dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer     eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo     os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.


ary dos santos
vinte anos de poesia
resumo 1972
círculo de leitores
1983







13 julho 2020

joaquim manuel magalhães / o aqueduto



O aqueduto,
côncavo e desafinado,
singra.

Singulares o indulto e o alqueire.
O baloiço broca a representação.
Assinalam a derrota.

Amei muita vez amei-te.
Dissimulei deriva, nocivo,
feliz a rédea da albufeira.



joaquim manuel magalhães
para comigo
traço
relógio d´água
2018






12 julho 2020

ricardo reis / a cada qual, como a estatura, é dada



A cada qual, como a estatura, é dada
        A justiça: uns faz altos
        O fado, outros felizes.
Nada é prémio: sucede o que acontece.
        Nada, Lídia, devemos
        Ao fado, senão tê-lo.

20-11-1928




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946

11 julho 2020

nuno / habituário



Tanta publicidade se fez ao nosso amor
para morrer incógnito, sem um
rectângulo no lado esquerdo dum jornal.

Com os anos, a morte torna-se um hábito.


nuno
livro de visitas
díptico
ed. do autor
2019











10 julho 2020

josé tolentino mendonça / um pequeno tremor



A sua morte não passou de um pequeno tremor
as fúrias gritavam
mas ao longe
dentro das câmaras onde esses gritos
de aranha não se escutam

A sua grandeza era uma quase indiferença
aos desastres

No cimo de si próprio
sustinha objectos improváveis
caminhava pelo fogo
sem desordem
sem desejo doutro passo
uma forma de pudor era nele
a acalmia

sem ele saber as palavras
deslizavam para um lugar sem perigos
mas também sem palavras



josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006