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13 outubro 2024

luís filipe parrado / a chuva, os trabalhos, os dias

 
 
 
Foi tudo o que aprendi: límpida e generosa é a chuva.
Molha a delicada cambraia dos senhores e os andrajos do camponês,
inunda os lábios gretados dos amantes,
lava as mãos impunes dos cobardes,
a folha caduca da perene não distingue.
Poupa ao lavrador o trabalho e a despesa de regar os pomares.
Com um pouco de sorte e de espanto
também este ano
abundarão as sacas de laranjas e de romãs
na tua arrecadação.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021
 




19 dezembro 2023

luís filipe parrado / no catálogo do mundo

 
 
 
De todos os temas à disposição no catálogo do mundo,
deste mundo, não de outro qualquer,
o que mais me arrebata é
o das flores de plástico. São todas muito doces
e muito tristes,
nos seus vasos de porcelana,
um tema sem dúvida fascinante.
Para começar,
pensem só no que seria a nossa vida se desconhecêssemos
o calor, a sede, o frio.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021
 



15 agosto 2023

luís filipe parrado / álvaro de campos revisited (2019)





 
Sim,, tenho tudo,
tudo o que preciso de ter,
as unhas sujas de terra,
a possibilidade
dos mais vastos domínios,
o cordel de enrolar o pião.
Sim, tenho tudo.
Só não tenho o pião.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021





 

16 junho 2022

luís filipe parrado / film noir

 
 
Depois das obrigações e do trabalho
a noite consente a ilusão. Agora
queria sair, ser destemido como Marlowe,
entrar num bar, desfrutar da beleza
das mulheres fatais,
gozar o prazer do fumo de múltiplos cigarros,
quem sabe arriscar e, por uma noite
– bem podia ser esta noite –, ter a sorte do meu lado
no póquer incerto das horas tardias. Só depois
regressaria a casa, exausto
mas feliz por me saber perfumado
pelo assombro profundo, maravilhoso, decadente
da madrugada. Decido
porém ficar à secretária, acender
a luz baixa do abat-jour, ler algumas páginas
de Chandler e escrever nas margens
estas palavras – pedras lançadas à água,
círculos que se expandem – cujo mérito principal
é o de mostrar, uma vez mais,
como eu não soube, ou não quis, escolher
viver a minha vida.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021




 

19 setembro 2021

luís filipe parrado / o verbo amar

 
 
Tão inútil. Conjuguei-o
na primeira pessoa tantas vezes
naquele verão e
nem assim me mostraste
os seios.
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021






08 julho 2021

luís filipe parrado / depois do amor

 
 
De mais nada posso falar:
só deste cheiro a fruta espessa, crua,
que de ti me fica nos dedos,
na polpa, entre a pele e as unhas,
mesmo depois do sabonete e da água corrente.
 
 
luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019

 






09 abril 2021

luís filipe parrado / orquídeas

 
Foi um erro substituir
por orquídeas
as flores artificiais
no centro da mesa.
Exigem luz, cuidados,
uma humidade temperada.
Bem as conheço:
flores venenosas
donas de uma beleza gratuita.
Às outras bastava passar
o pano do pó às vezes,
nem olhava para elas,
para as suas folhas baças,
para os seus ramos secos de arame;
estas ensinam-me, com esplendor, a tua morte,
a ferida com que o mundo vai acabar.
 
 
luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019





 

28 julho 2020

luís filipe parrado / teoria da narrativa familiar



Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.


luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019





20 abril 2020

luís filipe parrado / brecht no exílio



Trago um cajado, precipito um cão grego
pelas ravinas da história.
Conheço quem se dê mal com a vida
e não encontro a entrada do pomar,
a razão do vermelho da maçã.
Mas nem assim estou disposto a entregar
a minha dor à vossa trela.



luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019









03 agosto 2019

luís filipe parrado / uma lição antes de morrer




Na esplanada vazia, para além de mim,
há só uma rapariga de blusa azul
e cabelo tomado pelo sol.
Bebe um sumo de cor vermelha
e lê um livro de capa vincada e escura.
É pouco? Há também esta luz
que não existe, que já passou, que não volta mais.


luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019


22 maio 2018

luís filipe parrado / a maçã mordida





À primeira dentada,
como um daqueles peixes
escorregadios, raiados de sangue,
derramados sobre o mármore das bancadas,
a maçã foge-me
por entre os dedos e desaba
no chão sujo coberto
de escamas e água negra,
consigo vê-la a cair, a chocar,
depois, num sufoco, a rolar
até embater numa caixa de madeira
cheia de folhas de alface
apodrecidas. E ali fica, perdida,
mordida uma única
vez, longe das minhas mãos,
pardais tombados
no ar com assombro. Descubro que
no mundo não há coisa mais triste
que os olhos castanhos
da minha jovem
mãe.



luís filipe parrado
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018










21 abril 2014

luís filipe parrado / partes de um todo



Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois de jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.



luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



18 julho 2013

luís filipe parrado / natureza morta com maçãs



É triste
o espectáculo do amor
apodrecendo aos poucos,
na fruteira
as maçãs que te trouxe
têm agora a pele seca e enrugada.



luís filipe parrado
entre a carne e o osso
2012



03 julho 2012

luís filipe parrado / o que mais amo



  

Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
De todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
 com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.




luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



15 dezembro 2011

luís filipe parrado / o tempo que faz






Os velhos sentam-se neste banco
a avaliar o tempo que faz encostados a uma empena
escura, mais antiga do que eles. Também eu,
escondido na sombra, deixei para trás
a luz das dunas. A visão pinta com cores cegas
o lugar onde a alegria se desfez, uma história
de águas perdidas no coração da terra.
O fim de um amor é como um sonho.
Ainda hoje o fumo dos cigarros me sabe
melhor pelo sopro da manhã
depois de um sono sereno. As limalhas radiantes
no túnel mostram como se cai no limbo negro do horizonte,
no rio espesso após o crepúsculo.
Sim, soube tarde de mais o que podia dizer
da minha vida, com a boca fechada por correntes
e trapos estava simplesmente morto.
Como os velhos que continuam sentados neste banco
acordo a tempo de comprar algum pão
e varrer do passado o teu rosto, uma promessa estilhaçada,
um grão de juventude que me guia com uma pequena luz
que só no vento destas palavras se mantém.




luís filipe parrado
criatura
nr. 4
2009





30 janeiro 2011

luís filipe parrado / abominação






Por um momento parece-te possível
um sentido para a vida. Acordas um filho,
desces as escadas, percorres as ruas encerradas
ao trânsito da memória, as máquinas
em movimento trabalham com escasso esplendor.
E reparas que corpo e pele coincidem,
que as vértebras dos cavalos sustentam
o ar, que no copo ficou uma borra do vinho
que te trouxeram amigos que já não estão contigo.
Mas nesse rasgo de luz logo regressa a abominação
do costume, e tu sentes o gelo dos sonhos,
a ferrugem dos livros cheios de saliva, o asco
e a suspeita pregados com chumbo ao peitoril
dos teus olhos negros que não compreenderão
jamais como, alguma vez, pudeste escrever
a palavra vida a seguir à palavra sentido.





luís filipe parrado
criatura
nr. 5 outubro
2010