31 maio 2021

marcel mariën / a catedral

  
 
Era no tempo das damas muito pudicas e muito imaginativas.
 
Quando iam passear para o cemitério, caminhavam a passos curtos, e diz-se que apertavam maximamente as saias com receio de poderem perturbar os mortos ao devolver-lhes o desejo de existir ou até mesmo a nostalgia da vida. Uma ou outra coisa vêm praticamente dar ao mesmo.
 

 
marcel mariën
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





30 maio 2021

lisel mueller / triagem

 
 
Bertolt Brecht lamentava ter vivido numa época em que era quase um crime falar de árvores, porque isso significava ficar calado em relação a tanto mal existente. Caminhando numa zona cheia de ulmeiros enormes, ainda saudáveis, junto ao lago de Chicago, penso no que Brecht disse. Eu quero celebrar estes ulmeiros poupados às pragas, estes sobreviventes de uma tribo outrora florescente e comemorada por todas as Elm Streets da América. Mas celebrá-los significa ficar em silêncio em relação às pessoas que se sentaram e dormiram debaixo deles, aos pobres sem-abrigo que foram arrastados para fora da cidade como lixo, com a diferença de que não havia sítio para os despejar. Pois falar de uma coisa implica omitir outra. Quando falo de mim própria não posso falar de ti. E tu apercebes-te disso enquanto me escutas, a desilusão estampada no rosto.
 

 
lisel mueller
trocando dólares por cêntimos
alguma poesia norte-americana
trad. luís filipe parrado
contracapa
2020





29 maio 2021

joaquim manuel magalhães / a vida traz alguma dor

 
 
 
A vida traz alguma dor. Ludibrio-me.
A dor traz alguma vida. Ontem acarinhei-te tanto
queria andar hoje desacompanhado, na amurada
uma vaga de crude, um malte de ablação anal.
Acordamos a látego na alcatifa,
imundo dossel, flâmula, flagelo,
a caneca de sidra entornei-a.
 
A madeira maciça na hierática mobília
desornada. Na lupa, o monturo.
Num talo uma corola de açafrão.
Retomo o reflexo. Modifico-o
num rimance guarnecido e errático
em débito de alonjamento. O porvir
delicado brandia o borboto e a pureza
que no cofre rilhavam aparas em aluvião.
Se a labuta manietou o teu impropério, o adelo
provocará o carimbo, a rédea
e o local onde te coloquei a adelfa.
 
A melodia um relato a laborar
o mensageiro de um sonho.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
canoagem
relógio d´água
2021





28 maio 2021

eunice de souza / contemplar as estrelas

 
 
A luz que vi em ti
amor
veio de uma estrela morta.
 
A culpa é minha:
na minha idade contemplar as estrelas
é uma arte ambígua.
 
 
 
eunice de souza
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020
 



27 maio 2021

antonia pozzi / mais uma pausa

 
 
 
                          a L. B
 
 
Apoia-me a cabeça nos ombros:
que eu te acaricie com um gesto lento,
como se a minha mão acompanhasse
uma longa, invisível agulhada.
Não só sobre a tua cabeça: sobre cada face
que sofra de tormento e de cansaço
descem estas minhas carícias cegas,
como as folhas amarelecidas do Outono
numa poça que reflecte o céu.
 
 
 
antonia pozzi
um pouco do meu sangue
antologia de poesia italiana
trad. joão coles
contracapa
2020





 

26 maio 2021

peter levitt / uma centena de borboletas

 
 
8
O meu robe pendurado no jardim
pinga como uma árvore.
Um dia saio
do meu corpo
exactamente assim.
 
 
 
peter levitt
uma centena de borboletas
trad. sérgio ninguém
edições eufeme
2020






25 maio 2021

yves bonnefoy / trata-se mesmo deste objecto

 
 
Trata-se mesmo deste objecto: cabeça de cavalo descomunal onde se incrusta toda uma cidade, com suas ruas e muralhas a correr entre os olhos, colando ao meandro e ao alongamento do focinho. Um homem soube construir com madeira e papelão esta cidade, e iluminá-la lateralmente com uma verdadeira lua, trata-se mesmo deste objecto: a cabeça de cera duma mulher a girar, descabelada, no prato dum fonógrafo.
 
Tudo coisas daqui, terra do vime, do vestido, da pedra, isto é: terra da água nos vimes e nas pedras, terra dos vestidos manchados. Este riso coberto de sangue, é o que vos digo, traficantes de eterno, rostos simétricos, ausência do olhar, pesa mais na cabeça do homem do que as perfeitas Ideias, que só sabem desbotar sobre a sua boca.
 
Que sentido atribuir a isso: um homem fabrica com cera e cores o simulacro duma mulher, adorna-a com todas as parecenças, obriga-a a viver, dá-lhe, graças a um sábio jogo de luzes, essa hesitação no limiar do movimento que o sorriso também exprime.
 
A seguir, munido dum archote, abandona o corpo inteiro aos caprichos da chama, assiste à deformação, às rupturas da carne, projecta no instante mil figuras possíveis, ilumina-se à custa de inúmeros monstros, sente como uma faca essa dialéctica fúnebre em que a estátua de sangue renasce e se divide, na paixão da cera, das cores?
 
 
 
 
yves bonnefoy
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 
 





 

24 maio 2021

cesare pavese / the night you slept

 
 
Também a noite se parece contigo,
a noite longínqua que chora,
muda, no fundo do coração,
e as estrelas passam cansadas.
Uma face aflora uma face –
é um tremor frio, alguém
se agita e te suplica, só,
perdido em ti, na tua febre.
 
A noite sofre e anseia pelo amanhecer,
pobre coração que estremeces.
Ó rosto fechado, negra angústia,
febre que afliges as estrelas,
os que esperam como tu o amanhecer
sondam o teu rosto em silêncio.
Estendes-te sob a capa da noite
como um horizonte morto e fechado.
Pobre coração que estremeces,
num dia distante foste o amanhecer.
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021






 

23 maio 2021

miguel cardoso / aqui jaz o velho mundo

 
 
Aqui jaz o velho mundo
como cabelo incuspível sob a língua
 
e perto a curva que porá fim à vista
 
e no entanto não é tempo
para lamentações dizem-me
 
que também o sussurro levanta
a poeira atiça os cantos dos mosaicos
 
a terra em longo pousio a tona da água
algumas flores delicadas altas e domésticas
 
e senão dar à manivela da voz
e por uma vez dar pela fadiga
dos tendões mais subtis
 
e rirmo-nos de um dia morno
em casa dar para tantos fins de verso
 
e em seguida janta-se
 
 
 
miguel cardoso
fruta feia
douda correria
2014





22 maio 2021

jorge m. telhas / ninguém ficou

 
 
Ninguém ficou,
apenas um sossego inócuo e rochoso.
Sem falas, sem frases.
O silêncio ficou para sempre diferente
estranho como um veneno cruel,
quase sombra,
quase luz.
 
 
jorge m. telhas
inane
edições eufeme
2020





21 maio 2021

luca argel / smoothie




 
ela cresceu numa favela de Bagdá
na primeira década deste século.
 
pelo menos uma vez por semana
era acordada em plena madrugada
pelo som ensurdecedor dos rotores
de um enorme helicóptero americano
dando voos rasantes sobre sua casa
sem objetivo
para além
da intimidação.
 
hoje vive num subúrbio de Lisboa
traduzindo para o árabe novelas brasileiras.
 
quase morre de susto
toda vez que eu uso o liquidificador.
 
 
 
luca argel
volta para tua terra:
uma antologia antirracista/antifascista de
poetas estrangeiros em portugal
editora urutau
2021




 

20 maio 2021

louise glück / o cavalo e o cavaleiro

 
 
Era uma vez um cavalo, e sobre o cavalo um cavaleiro. Que elegantes pareciam no sol do Outono, aproximando-se de uma estranha cidade! As pessoas apinhavam-se nas ruas ou chamavam de altas janelas. As velhas sentavam-se entre vasos de flores. Mas quem olhasse em volta em busca de outro cavalo ou outro cavaleiro, olharia em vão. Meu amigo, disse o animal, porque não me abandonas? Sozinho, podes orientar-te por aqui. Mas abandonar-te, disse o outro, seria deixar para trás uma parte de mim, e como posso fazê-lo se não sei que parte és?
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021





19 maio 2021

billy collins / as cadeiras em que ninguém se senta

 
 
 
Vêem-se em varandas e em relvados
mesmo à beira do lago,
geralmente dispostas em pares indicando que um casal
 
se poderá sentar ali e olhar para
a água ou para as grandes árvores frondosas.
O problema é que nunca se vê ninguém
 
sentado nessas cadeiras abandonadas
embora a dada altura deva ter parecido
um bom lugar para parar e não fazer nada por um momento.
 
Às vezes há uma pequena mesa
entre as cadeiras onde ninguém
deixou um copo pousado ou um livro com a capa para baixo.
 
Posso não ter nada com isso,
mas suponhamos haver um dia
em que todos os que colocaram essas cadeiras vagas
 
numa varanda ou num cais se sentariam nelas
nem que fosse para se lembrarem
daquilo que achavam que valia a pena
 
ser contemplado das duas cadeiras
lado a lado com uma mesa pelo meio.
As nuvens estariam altas e imponentes nesse dia.
 
A mulher descola o olhar do seu livro.
O homem toma um gole da sua bebida.
E ouve-se apenas o som do seu olhar,
 
o marulhar da água do lago, e o canto de um pássaro
depois de outro, gritos de alegria ou de aflição —
o tempo vai passando enquanto se percebe qual.
 
 
 
billy collins
amor universal
trad. ricardo marques
averno
2014





18 maio 2021

antón garcia / todas as coisas são duas

 



 
Quando deixávamos que o silêncio
deslizasse sobre nós nada tínhamos.
Era nossa a manhã
aberta ao sol e à luz do verão.
Não nos custava nada
sentarmo-nos à beira do caminho
à espera de que outra noite,
com o seu passo tranquilo, viesse buscar-nos.
Como já disse, nada tínhamos.
Nem pressa, nem calma, nem sequer recordações.
Éramos só (juntos e desconhecidos)
a memória que agora temos,
ou estas palavras.
 
 
 
 
 
antón garcia
trad. luís filipe parrado
nervo/11
colectivo de poesia
maio/agosto 2021





 

 


17 maio 2021

yvette k. centeno / ouvindo satie, em paris

 
 
 
Saudades de Paris.
Para mim nunca choveu,
nevava
pequenos flocos de nuvens
na janela.
 
Fui feliz,
nesse tempo,
amava
e nada me apressava.
 
 
 
yvette k. centeno
dizer
edições eufeme
2021



 

16 maio 2021

manuel resende / epigrama

 
 
Não não foi pela usura que veio o Duce
Nem por casa de pedra fresca nem pelo fresco na pedra
Foi pela ganância pelo árduo
Exercício espiritual das transferências de fundos
Foi pelas costas da Etiópia, suor destilado no norte d’ áfrica
Por um exército de diarreias e palavrões nas camaratas
Não o Duce não veio pela usura
Mas pelo medo das províncias
Mas para que os escravos digerissem
Diligentemente a fome pois a fome
É o pão mais duro de roer.
 
 
manuel resende
natureza morta com desodorizante
poesia reunida
edições cotovia
2018





15 maio 2021

antónio ferra / estrada de cinza




 

 

O vinho não existe sem veneno
gramática sem verbos para conjugar o medo
na estrada de cinza
 
 
 

antónio ferra
estrada de cinza
edições eufeme
2021

 



 

14 maio 2021

albano martins / assim são as algas

 
 
Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 




13 maio 2021

josé pascoal / vou tentar sair desta




Vou tentar sair desta
Pelos meus próprios meios,
Um pé à frente do outro
As mãos atrás das costas.
 
Deixarei livros e discos
Se for preciso,
Se não derem pela minha falta,
Se não quiserem saber de mim.
 
Percorrerei vias-sacras,
Vias sinuosas,
Vias subterrâneas,
Vias de facto.
 
Chegarei ao fim da linha
Como uma locomotiva velha
Cansada de puxar carruagens
Vazias.
 
 
 
 
josé pascoal
excertos excertos
editorial minerva
2018




 

12 maio 2021

konstantinos kaváfis / prazer

 
 
Alegria e bálsamo da minha vida, recordar as horas
em que achei e retive o prazer como o qu’ria.
Alegria e bálsamo da minha vida, ter rejeitado
todo o prazer de amores rotineiros.
 
 
1917
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017







11 maio 2021

wislawa szymborska / admiração

 
 
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui?
Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?
Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?
Porquê pessoalmente só uma vez?
E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?
Depois de estar ausente tantas eras?
Para além de todos os tempos e algas?
Para lá do pólipo e da medusa?
E logo agora? Para o sangue e os ossos?
Só comigo em mim? Por que
não mas além ou a cem milhas daqui,
ou ontem ou há um século
sentada e olhando o canto escuro
– tal como de focinho erguido de repente
olha um que rosna e a que chamam cão?
 
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





 

10 maio 2021

katarina frostenson / fogos verdes

 


 

O caminho está limitado por espelhos cobertos
o campo resplandece apagado:
 
Três remendos negros, e um verde
uma pegada fresca na minha alma
 
Paragem de distância O desejo
é o meu pensamento
 
O céu estende o seu lenço cinzento
arde um fogo junto ao meu joelho
 
movimentam-se umas lebres entre as espigas
 
I det gula, 1985
 
 


katarina frostenson
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021




 






09 maio 2021

judith teixeira / maus presagios

 
 
Azas agoirentas, pretas.
veem sobre mim poisar,
de sombrias borboletas
em redor a voltejar…
 
Tristes como violetas!...
Trouxeram-me a soluçar
nas azas negras, inquietas,
um mau presagio, de azar!
 
Meu pobre coração chora
em ânsia que me apavora…
– Que estará p’ra acontecer?...
 
E uma voz entrecortada
Diz-me ao longe desgarrada:
– Adeus!... Partir!... Esquecer!
 
Outono-Hora Inquieta - 1921
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923





 

08 maio 2021

ana paula tavares / somos aquelas antiquíssimas pessoas

 
 
Somos aquelas antiquíssimas pessoas
que ainda movem os lábios em latim
não só para dizer ave maria mas canis canis
ou carpe diem mais desejo que processo
sabemos os tempos dos verbos
 
 
 
ana paula tavares
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019





07 maio 2021

joan margarit / não há milagres

 
 
Chovia desleixadamente.
Dezanove de Outubro, nove da noite.
A Joana chegava assustada à cirurgia
por nós cercada, que ficámos
na sala mal iluminada junto aos elevadores.
Dizem que ela, numa desesperada tentativa
de salvar-se, disse amo-te ao cirurgião.
Esperávamos a fada que nos devolvesse
a Joana tranquila, como sempre,
os seus olhos cintilantes de confiança.
Às onze horas, olhando pela janela,
as gotas da chuva resvalavam
pelo vidro como se fosse pela noite.
A noite era uma lâmina de gadanha.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




06 maio 2021

david lehman / objectivo

 
 
“Qual é o objectivo dos seus poemas?”
Fico contente por me terem perguntado isso
aqui de pé na aula de Inglês do décimo primeiro ano de Mr. Ferry
na Lake Forest High School
tenho pensado muito sobre “objectivo”
Caminhar com ar determinado em Nova Iorque
tem vantagens óbvias no frio da noite ventosa
e é ainda melhor quando não se trata de fingimento
sabe-se para onde se está a ir
de dia para dia
e sabe-se quando termina
é pois como uma história com princípio meio e fim
não podiam contudo dizer-me o objectivo
da humilhação no ensino secundário e eu não podia dizer-lhes
a finalidade deste sonho em que nos levantamos destas carteiras,
vamos para a universidade de onde saímos advogados, fracassos ou
                                                                                               [donas de casa
e quando acordamos não temos recordação alguma
deste encontro às escuras mas todavia persistirá
e trará repouso à nossa alma
 
 
david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




05 maio 2021

maria f. roldão / pequeno sangue

 


Dou sangue ao vestido.
Abro-o com o coração desabotoado
e enfio-me na primeira trégua do linho.
 
Desço o vestido pela cabeça, ombros,
abro-o nas ancas onde fica a levitar
com a pele das fibras e beijar a pele.
 
Fotografo o vestido
e tu transforma-lo em fumo de catarse
e oferece-lo aos deuses do silêncio.
 
Desenhas uma casa com
o meu corpo. Dispo-me.
 
Engomas o sangue que despi.
 
 
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021




 




04 maio 2021

sophia de mello breyner andresen / sequência

 
 
I
 
Como esquecida voz de um amor muito antigo
Desgarram-se no ar as pancadas de um sino
A casa onde moro não fica rente às águas da laguna
Mas a parede é branca e vê-se o rio
E embora hydras e fúrias nos desfiem
A diversidade de coisas como Ponge diz
Não constrói
 
 
II
 
A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas tomar em minha voz a veemência das coisas
Fazer do mundo exterior substância da minha mente
Semelhante ao que devora o coração do leão
 
Vê o que viste
Atenta para a caçada no quarto penumbroso
 
 
III
 
Mimesis
E vós Musas filhas da memória
De leves passos no cimo do Parnaso
Suave a brisa a fonte impetuosa
– Princípio fundamento rosto-início
Espelho para sempre os olhos verdes
As longas mãos as azuladas veias
 
1989
  
 
 
sophia de mello breyner andresen
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





03 maio 2021

vicente valero / de um diário de bordo

 
 
Durante muitos anos viajei.
A minha juventude foi o mar, as ilhas
estrangeiras, a noite, os álcoois
amigos na coberta, as lembranças.
Fugia. E encontrava-me no vaivém
cativo dos dias e dos anos.
Conheço o suor frio nas manhãs
nubladas do outono, no naufrágio
perpétuo do desejo e das palavras.
Mas também aquele outro mais frio
na humildade de um porto, ao chegarem
lentamente os barcos e descobrirem,
ao sol, qual uma chaga na memória,
a pátria quebrada, o coração cansado
de povos milenários que não acabam
nunca de derrotar o implacável
monstro da paixão e da pobreza,
senhor das lendas mais antigas.
Depois este mar – ah, quem poderá esgotá-lo –,
lenta herança de sal, de impuros sonhos,
sempre este mar, o mesmo sempre, o único,
abraçando tudo com suas fábulas
belas de facas, fome e deuses.
Fugia. E encontrava-me sempre em cada porto.
Durante muitos anos viajei
e não saí nunca de mim mesmo.
 
 
 
 
vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000