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26 novembro 2023

joan margarit / o primeiro frio

 

Miguel Blay Fàbregas, The First Cold 1892



Acompanhei-te ao museu do parque.
Era uma manhã de Inverno. Parámos
diante d’O primeiro frio, uma escultura
de mármore cinzento: um velho que, despido,
enquanto o vento arrasta folhas mortas,
fita à distância.
Não são diferentes, a arte e a vida, disseste.
Mas eu via apenas um mármore frio,
e até retórico, e pensava em raparigas.
Entre aquele dia e agora, como um mar,
alastrou a minha vida.
E vêm, sulcando este mar cinzento,
as minhas memórias, cascos negros de navios.
Volto ao museu nesta manhã de Inverno,
e penso em ti ao atravessar o parque,
fitando a distância e cercado
de folhas mortas arrastadas pelo vento.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020



03 maio 2023

joan margarit / depois de jantar

 
 
 
Oiço tocar à porta e vou abrir
mas não é ninguém.
Penso naqueles que amo e não virão.
Não fecho a porta e insisto em dar as boas-vindas.
Com a mão no puxador, espero.
A vida vai-se ancorando na dor
como as casas sobre os alicerces.
E sei por quem me demoro lançando o feixe
de luz familiar na rua deserta.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




01 março 2023

joan margarit / fascinante inverno

 



 

As papoilas vão desaparecendo,
eliminadas como ervas daninhas.
Em breve já se não prolongarão
as rubras pinceladas do vento pelos campos de trigo.
Quem poderá entender um dia
os quadros de Van Gogh?
Habito ainda um mundo familiar,
embora subtis mudanças já me avisem:
não voltará a ser o meu.
Não é nenhum inferno: permite compreender.
Vem o esquecimento, tranquiliza.
E volta, volta sempre, a alegria.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




09 setembro 2022

joan margarit / a rapariga do semáforo

 
 
Tens a mesma idade que eu tinha
quando comecei a sonhar com encontrar-te.
Então não sabia, tal como tu
não aprendeste ainda, que um dia
o amor seria esta arma carregada
de solidão e de melancolia
que agora aponta para ti desde os meus olhos.
És a rapariga que procurei
tanto tempo quando ainda não existias.
E eu sou aquele homem para o qual
quererás um dia dirigir os teus passos.
Mas então estarei tão longe de ti
como agora tu de mim neste semáforo.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




18 fevereiro 2022

joan margarit / mulher da primavera

 
 
Depois das palavras só te tenho a ti.
Triste é quem não perdeu nunca
por amor uma casa.
Triste o que morre rodeado de respeito e de prestígio.
Importa-me tudo o que acontece na noite
estrelada de um verso.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




28 setembro 2021

joan margarit / perde-se o sinal

 
 
Não tenhas piedade do que foste,
porque a piedade é demasiado breve:
não dá tempo para construir nada.
De noite, num pequeno aeroporto,
vês um avião que vai subindo.
Vai-se perdendo o sinal.
E convences-te de que vives
uma época que, sem esperança,
é já a mais feliz da tua vida.
Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há uma outra música.
A de Beethoven surdo. Quando se perde o sinal.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020






07 maio 2021

joan margarit / não há milagres

 
 
Chovia desleixadamente.
Dezanove de Outubro, nove da noite.
A Joana chegava assustada à cirurgia
por nós cercada, que ficámos
na sala mal iluminada junto aos elevadores.
Dizem que ela, numa desesperada tentativa
de salvar-se, disse amo-te ao cirurgião.
Esperávamos a fada que nos devolvesse
a Joana tranquila, como sempre,
os seus olhos cintilantes de confiança.
Às onze horas, olhando pela janela,
as gotas da chuva resvalavam
pelo vidro como se fosse pela noite.
A noite era uma lâmina de gadanha.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




29 março 2021

joan margarit / passeando

 
 
Gosto de caminhar sozinho pelas ruas,
com as mãos atrás das costas, sem pressa,
entre as pessoas e os carros matinais.
Cumpridor, aquele rapaz
foi obediente toda a vida.
Hoje sai de trás daquele
que, durante tantos anos, foi o seu disfarce de homem.
Há algumas coisas que não mudaram,
coisas breves e suaves, como as ausências
que as primeiras luzes acendem no crepúsculo.
Recorda quando ao rapaz que hoje regressa
lhe explicavam que os mortos estavam no céu.
Este céu que é às vezes tão azul,
que é tão frio quando se afasta da terra,
tão negro quando se acendem as estrelas.
O rapaz regressa e agarra-o pela mão.
Os dois vão-se afastando
até serem um ponto no céu. Aves que passam.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




05 março 2021

joan margarit / não deites fora as cartas de amor

 
 
Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
– essa flecha de sombra –
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo de um espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua ultima literatura.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




27 março 2011

joan margarit / primeiro amor





Na Gerona triste dos meus sete anos
onde as vitrinas do pós-guerra
tinham uma cor cinzenta de penúria
a cutelaria era um estalido
de luz nos pequenos espelhos de aço.
Com a fronte descansando no vidro
olhava uma navalha longa e fina
bela como uma estátua de mármore.
Como não queriam armas em minha casa
comprei-a em segredo e no bolso
batia-me, ao caminhar, na coxa.
Por vezes abria-a devagar
e aparecia a folha fina e direita
com a conventual frialdade da arma.
Silenciosa presença do perigo:
nos trinta primeiros anos escondi-a
atrás de livros de versos e depois
numa gaveta entre as tuas cuecas
e entre as tuas meias.
Agora, prestes a fazer os cinquenta e quatro
volto a vê-la aberta na palma da mão
tão perigosa como na infância.
Sensual, fria. Mais perto do pescoço.




joan margarit
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994