29 outubro 2008

blaise cendrars / prosa do transiberiano e da joaninha de frança







(...)

Do fundo do coração brotam-me lágrimas
Se penso, Amor, na minha amada;
Não passa duma criança, que encontrei
Pálida, imaculada, no fundo dum bordel,
É uma criança, loura, risonha e triste,
Não sorri nem chora;
Mas no fundo dos seus olhos, quando vos deixa beber
Treme um delicado lírio de prata, a flor do poeta.

É meiga e calada, sem nada a apontar,
Estremece à vossa aproximação;
Mas quando eu volto, daqui, dali, da festa,
Ela dá um passo, depois fecha os olhos -
e dá um passo.
Porque ela é o meu amor, e as outras mulheres
Só têm vestidos de ouro sobre grandes corpos
de chamas,
A minha pobre amiga está tão desamparada
Está toda nua, não tem corpo - é demasiado pobre.
É uma flor cândida, delgada,
A flor do poeta, um pobre lírio de prata,
Muito frio, muito só, e já tão seco
Que as lágrimas brotam se penso no seu coração.








blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança, excerto
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974






28 outubro 2008

albert camus /cadernos















Peste… «E de cada vez que li uma história de peste, do fundo de um coração envenenado pelas suas próprias revoltas e pelas violências dos outros, um grito claro se ergueu dizendo que no entanto havia nos homens mais coisas para admirar do que para desprezar.»
… «E a peste cada um a traz consigo, porque ninguém, sim, ninguém no mundo, está imune. E é necessário vigiarmo-nos constantemente para não sermos levados num minuto de distracção a respirar na cara de alguém e a pegar-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se preferirem, é um efeito da vontade, e de uma vontade que nunca deve deixar de exercer-se. O homem honesto, o que não infecta ninguém, é aquele que se distrai o menos possível.
Sim, é frequente ser-se um patife. Mas é ainda mais fatigante não querer ser um patife. É por isso que toda a gente está fatigada porque toda a gente o é um pouco. Mas é por isso também que alguns conhecem tão fundo cansaço que só a morte os poderá libertar dele.»




albert camus
cadernos III
(caderno nr. 5 1948/1951)

trad. antónio ramos rosa
livros do brasil
1966




27 outubro 2008

werther damien sevahc / nunca faço a barba de sapatos






Nunca faço a barba calçado
porque a água escorre-me pelos
cotovelos e molha-me sempre os sapatos.
Todos os meus sapatos são de camurça
cinzentos, castanhos e beges
(ah! excepto os pretos)
e a camurça lavada
fica feia e surrada o que me irrita
profundamente ou me desgosta
simplesmente
tendo eu que percorrer quase 300 km
para os comprar, o que é cansativo
mesmo não indo a pé.
Enfim…
Achei que gostariam de saber.

É oficial: andam fusíveis rebentados.







werther damien sevahc








22 outubro 2008

fiama hasse pais brandão / do outono II






Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.


Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num país.






fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





20 outubro 2008

isidore ducasse / poesias









Substitui a melancolia pela coragem, a dúvida pela certeza, o desespero
pela esperança, a maldade pelo bem, as queixas pelo dever, o cepticis-
mo pela fé, os sofismas pela frieza da calma e o orgulho pela modéstia.






OS GEMIDOS POÉTICOS deste século não passam de sofismas.
Os primeiros princípios devem estar fora de discussão.
Aceito Eurípedes e Sófocles; mas não aceito Ésquilo.
Com o criador não falteis às conveniências mais elementares, nada de mau gosto.
Rejeitai a incredulidade, que me dareis prazer.
Não há dois géneros de poesias; há uma só.
Existe uma convenção pouco tácita entre o autor e o leitor, pela qual o primeiro se intitula doente e aceita o segundo como enfermeiro. É o poeta que consola a humanidade. Os papéis estão invertidos arbitrariamente.
Não quero ser manchado pela qualificação de presumido.
Não vou deixar Memórias.
A poesia não é tempestade, nem mesmo ciclone. É um rio majestoso e fértil.
(…)








isidore ducasse
conde de lautréamont

cantos de maldoror
poesias
trad. pedro tamen
fenda
1988



18 outubro 2008

luís miguel nava / a saída




Havia no seu corpo uma saída.
Podia através dela ir até onde quisesse, de momento que a porta não ficasse a bater com um ruído que a maior parte das pessoas confundia com o bater do coração. Não consta que o sangue o perseguisse senão muito raramente e mesmo assim não para além da beira-mar.
Trazia há algum tempo na memória um espelho onde quem quer que se abeirasse dele podia contemplar-se. Pelo espelho era possível ver os poços através dos quais a pele desaparece, as ondas momentaneamente imóveis, as areias a assaltar-lhe o coração.





luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




13 outubro 2008

herberto helder / estende a tua mão...







estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo






herberto helder
a faca não corta o fogo
assírio & alvim
2008







09 outubro 2008

cruzeiro seixas / poema







Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.

Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.

Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.

Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.

Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.

Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.








cruzeiro seixas
em "áfricas", 1950,
poema integrado no 1º caderno do centro de estudos do surrealismo,
da fundação cupertino de miranda, de vila nova de famalicão
in público, sábado, 2 de dezembro de 2000






05 outubro 2008

laurie anderson / estranhos anjos







Dizem que o Paraíso é como a TV
Um mundo pequeno e perfeito
Que não precisa de nós para nada
E lá tudo é feito de luz
E os dias vão-se sucedendo
Aí vêm eles aí vêm eles
Aí vêm eles.


Foi um daqueles dias
Maiores que a própria vida
Quando os amigos vêm para jantar
E vão ficando a noite toda
Limpam o frigorífico
Comem tudo o que encontram
Vão-se deixando ficar pela sala
A chorar a noite inteira.


Estranhos anjos – cantando só para mim
Histórias velhas que me assombram
Afinal nada é como eu pensava.


Ia eu no meu carro de quatro portas
Com a capota descida
Olhei e ali estavam elas:
Milhões de minúsculas lágrimas
Por ali apenas suspensas
Não sabia se rir ou chorar
E disse para comigo:
E agora, céu imenso, que se segue?


Estranhos anjos – cantando só para mim
Os meus trocos caindo sobre mim
A chuva caindo caindo sobre mim
Toda sobre mim
Estranhos anjos – cantando só para mim
Velhas histórias – que me assombram
Vêm aí grandes mudanças
Aí vêm elas
Aí vêm elas.











laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997







02 outubro 2008

m. fernanda silva / um ar de qualquer coisa







depois um ar de qualquer coisa
qualquer
um nada de nada
intrincado
uma gota em goteiras de
nervosos rastos de gotas

uma andorinha que desenha guinchos
nos papeis das nuvens por abrir








m.f.s.