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02 agosto 2024

artur do cruzeiro seixas / esta pedra é uma casa

 



 

Esta pedra é uma casa
tão cega
como aquele céu lá no mais alto
que afinal precisa o mar
para se saber azul.
 
Sobre a mesa estrelas e uvas sempre renovadas
e a lisa parede branca        para as sombras
independentes
esquecerem a morte ali
onde sobra sombra sempre.
Onde a sombra assombra
suportando todo o peso do ar.
 
E lembro ainda o luar como uma areia muito fina
argamassa desta espessura que nos separa do poema perdido
subitamente tornado insecto
por intersecção do teu olhar.
 
Áfricas 65
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002
 




28 outubro 2023

artur do cruzeiro seixas / há uma espécie de flor

 




 
Há uma espécie de flor
que vejo naquela rua.
 
Por isso por ali passo
como se isso fosse necessário
à salvação do mundo.
 
De tanto olhar a flor
um dia
soube enfim o seu nome.
 
Olhou-me
e disse:
sou o António…
 
África, 60
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 




21 março 2022

artur do cruzeiro seixas / as paisagens vieram de muito longe

 
 
As paisagens vieram de muito longe
para nos receber
e é ver na copa das árvores
barcos que se debatem
no momento do naufrágio.
No museu das tuas unhas fundas
o sonho desperto
arrasta-nos para o subterrâneo azul.
Eficientes são essas tuas asas nocturnas
indiferentes aos grupos antagónicos arrastando chaves
que se cruzam com outros          conduzindo espelhos
com em cada cérebro um idioma fremente.
É a vitória do fragmento que passa e repassa
enquanto a mão repousa ainda
sobre a torneira do dilúvio.
Da ilusão da morte
dizem-nos os viajantes que
dirigindo uma petição às formigas
encontraremos a maneira mais eficaz
de jamais compreender este sonho de bronze vermelho
quando aninhado nos nossos ouvidos.
 
Áfricas 67
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002




 

20 janeiro 2021

artur do cruzeiro seixas / andam descalços os peixes

 
 
Andam descalços os peixes
circulam dentro do seu mar interior
vestidos de brocados
agitando no ar campainhas de oiro.
 
Não mais haverá teatro
quando os guindastes
descobrirem o seu próprio sexo
de aço.
 
Atravessem embora os namorados os aquedutos,
sejam ainda cinzentas as nuvens no ventre das águias
navios líquidos se reproduzirão
por toda a parte.
E por sobre as tempestades
navegarão
rumo ao porto mais distante
indestrutíveis palavras sem nexo.
  
 
Áfricas 60
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002



 

26 novembro 2020

artur do cruzeiro seixas / não são cabelos


 

Não são cabelos
nem algas
nem o vento
o que prende estas mãos
no rio barrento
 
Tu estás
onde te sustento.
 
Áfricas, 57
 
 

cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 


 




23 março 2018

artur do cruzeiro seixas / para vos dizer a verdade




Para vos dizer a verdade
o meu sexo é uma cadeira
uma torrente verde
um retrato de Cézanne
uma baixela de prata no fundo do mar
o sonho de um osso
a imitação de uma cidade.

Abro uma janela
no sítio onde estava um navio
mas cínica a pedra vem – revém
e completa o ciclo
das loucas exigências.

Aceno aos meus sonhos
que estão do outro lado
enquanto passa uma
qualquer Nova Iorque
a cada passo
tropeçando nos seus próprios cabelos.


Áfricas 70



artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002








24 janeiro 2016

artur do cruzeiro seixas / as mãos escrevem nas pálpebras



As mãos escrevem nas pálpebras
a palavra astro
neste fim de tarde solitário.
A morte é a mais lúbrica das criaturas
e vem e vai
e pendura nas paredes
mil e uma fórmulas secretas
em que são iguais as quantidades de realidade
e do que a ela se opõe.
O Vento está visivelmente cansado
arranhou-se num espinheiro
e corre-lhe pelo peito quente
um fio de sangue.
Qualquer coisa como música
advém do seu silêncio
e o olhar é uma ponte nitidíssima
entre duas realidades que não há.



artur do cruzeiro seixas
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




24 abril 2015

cruzeiro seixas / no silêncio sem pudor da luz e das engrenagens



No silêncio sem pudor da luz e das engrenagens
apavorado e demente
separo a noite do dia
misturo as recordações amarelecidas
com o cinzento do amanhã.

As mãos ficaram esquecidas nas tuas mãos
e como que adormecidas
fazem e desfazem a longuíssima trança dos sonhos
até que as nuvens vêm enfim
reconhecer a pederastia do Mar.

Ao crepúsculo
avançam as cavernas mais profundas
exibindo estalactites de lágrimas
descendo na profundidade de tinteiros de prata e ametista.

Galopam vertiginosamente as cadeiras pela imensa planície
e trémulos escutamos a espuma imaculada
o espaço das axilas ainda analfabeto
a coluna e as pálpebras ao fundo
tudo o que naufraga
arde       tomba
anónimo ilumina
e no interior mais recôndito das casas
sob o peso esverdeado das máquinas
se retira e liquefaz.

  

artur do cruzeiro seixas
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




31 janeiro 2014

cruzeiro seixas / tu és meu



Tu és meu
pássaro do deserto
cinzento com mil portas
silenciosas e translúcidas.

Tu és meu
a todo o comprimento
do sol
e afogas-me como um oceano.




artur do cruzeiro seixas
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




19 outubro 2012

cruzeiro seixas / no silêncio das tapeçarias





No silêncio das tapeçarias
há a memória
das terríveis batalhas
do imaginário.
Mas são ternas
as cartas que trocam entre si
os seus heróis.
É certo que as árvores cantam por toda a parte
a sua música
e que há enfim leões e elefantes
no centro de Londres
de Paris ou de New York.
Agora a tua face está cravejada de ponteiros
e a manhã que acaba de nascer
regressa ao ventre materno.
Lisboa cobre-se de gaivotas.
Um gravíssimo excesso de grandeza
anuncia o Nada.


áfrica 69




artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002


01 outubro 2012

cruzeiro seixas / anos e anos esperou impaciente




Anos e anos esperou impaciente
no lago de folhas mortas.

Impaciente foi abrindo os olhos seus
e também os dos cardos companheiros
anos e anos.

Aprendeu a ler com finos dentes
e escreveu na carne das montanhas mais distantes
o mistério dos monstros
emparedados atrás do sol.

Quando chegaram os anjos
oscilava no espaço branca
uma nuvem de navios naufragados
e de milhões de criaturas em chamas.

Depois o lago fechou-se sob o prado azul
fechado sob o sonho do viajante infernal.




cruzeiro seixas
o que a luz oculta
galeria arte & manifesto
porto, 30 de setembro de 2000



11 novembro 2010

cruzeiro seixas / ao que encontrei tanto e tanto



Ao que encontrei tanto e tanto
acrescentei.

Recordo essas horas esses dias.

Tudo o que era morto ressuscitava
os animais encontravam-se
e altos monumentos brancos cresciam em cada praça.

O nosso sangue circulava livre nas montanhas e no mar
e os músculos erguiam árvores
que nos cobriam com a sua ilimitada confiança.

Nós todos éramos dois.

Um dia queimamos o fundo do mar
e o incêndio alastrou às vagas absurdas
ao sangue misterioso.

Estavas pálido como a água
jamais alguém empalideceu assim.


Que horas eram meu amor distante?

Ao que encontrei tanto acrescentei
nesta tarde exageradamente tranquila.







cruzeiro seixas
o que a luz oculta
arte e manifesto, galeria
porto
2000





09 outubro 2008

cruzeiro seixas / poema







Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.

Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.

Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.

Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.

Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.

Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.








cruzeiro seixas
em "áfricas", 1950,
poema integrado no 1º caderno do centro de estudos do surrealismo,
da fundação cupertino de miranda, de vila nova de famalicão
in público, sábado, 2 de dezembro de 2000






28 novembro 2006

ternura

cruzeiro seixas



Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume. Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida tia Mizé! Preparei um gin.
Josela ainda não chegara. Estava atrasada, talvez as compras, quem sabe.
Foi quando ouvi abrir a porta. Fui ver. Josela chegava, empurrando o carrinho antigo que servira para o nosso filho agora com dezoito anos como sabem, e com um bom lugar de Viet qualquer coisa, lá não estou bem certo onde; lugar seguro e de futuro, foi o que me disseram. Bom rapaz, o nosso garoto.
Olhei o carrinho. Trazia um bebé dentro. Josela sorria. Vi o preço. Razoável. Do talho do senhor Esteves. Manias da Josela.
Olhei Josela.
Tinha os olhos brilhantes, havia urna ternura inesperada que a envolvia, uma tristeza distante nas mãos.
— Achas que podemos ficar com ele? — perguntou-me, afirmando.
Concordei. Josela manda.
Arrumei o carrinho.
Era um bebé ainda em muito bom estado. Durou cinco dias até apodrecer, calculem!





mário-henrique leiria
“casos de direito galático / o mundo inquietante de josela (fragmentos)”
ilustrações de cruzeiro seixas
editorial república
1975