30 junho 2017

r. lino / nove instantâneos do sul



.primeiro.

as manhãs caem no intervalo dos panos,
normalmente rectangulares;
as listas descem até às sombras
penduradas nas varandas,
nos mercados,
como se compridas vestes
por entre tectos de cana



r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016





29 junho 2017

paul éluard / já que não é uma questão de força



Tudo a mais frágil palavra quebra
Sombra de ideia ideia da sombra morte feliz
O fogo torna-se água tépida e o pão migalha
O sangue mascara um sorriso e o raio uma
                                                                    [lágrima
O chumbo que o ouro esconde pesa sobre as
                                                                    [vitórias
Nada semeámos que não tivesse sido destruído
Pelo minucioso bico das delícias íntimas
As asas penetram no pássaro para o fixarem.




paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




28 junho 2017

rui knopfli / telegrama



Ao longo destes anos todos
nada temos dito – meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
       Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.



rui knopfli
o dente do siso
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional - casa da moeda
1982








27 junho 2017

jorge de sena / vita brevis




A vida é breve mas o que a faz mais breve
não é morrer-se nem morrer quem foi
connosco nela espaço forma e tempo.
Que mais que a morte a humanidade encurta
e torna mais estreita a nossa vida.
Só brevemente e por um breve instante
seu corpo nos concede. E brevemente
é que pensar deseja que existimos.
Antes de mortos, antes de sozinhos
e apenas visitados de memórias,
já todos somos um jornal antigo
deitado fora sem sequer ser lido,
ou somos uma imagem desenhada
a borda do passeio em que se exibem
pisando-a com os pés com que desenham
seus mesmos rostos que outros pés já pisam.
A vida é breve, breve, mas mais breve
quanto a quer breve a estupidez humana
fiel ao tempo ainda em que de espaço
o tempo se fazia e a pouco espaço
na terra imensa a todos não chegava.



jorge de sena
exorcismos  (1972)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




26 junho 2017

luís miguel nava / como alguém disse



Não é que eu seja sábio, como entre as de mármore alguém disse
ser sempre uma coluna de madeira,
mas creio já ter visto um livro brilhar como
se fosse o mar quem nele ao rebentar depositasse o texto.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982







25 junho 2017

bernardo soares / a tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias



A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas misérias em um corpo só.

Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objectos próximos que no-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira — este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas...

Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.

E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!

Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil!

Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras: «Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!» Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.

E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida (...), absurda como um relógio público parado.

Aquela sensibilidade ténue, mas firme, o sonho longo mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






24 junho 2017

eugénio de andrade / estribilhos de um dia de verão



1.
Um nó de luz ou uma lágrima
nada mais era quando despertava.

2.
Sabor de água, puro sabor
de ser matinal até doer.

3.
Sabor de ser
ardor de florir
rumor de amanhecer.

4.
Ser
de neve ao fogo um só ardor.

5.
Um só fluir, um só fulgor.




eugénio de andrade
ostinato rigore 1963-1965
poemas
edit. inova
1971





23 junho 2017

rené char / folhas de hipno



49
O que pode seduzir no nada eterno é o facto de nele o dia mais belo ser indiferentemente este ou aqueleoutro.

(Cortemos este ramo. Nenhum enxame se há-de pendurar nele.)


         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000





22 junho 2017

carlos de oliveira / as marés em redor da tua ilha



As marés em redor da tua ilha;
o pequeno arquipélago na paz
da solidão marinha; a maravilha
do jeito da onda eu o teu corpo faz.

Sobre o pálido estuque da parede,
como um espelho da minha própria imagem,
uma seara de Van Gogh morre à sede
no óleo espesso e fulvo da estiagem.

Ao calor do céu de tela passa,
arrancando pedaços de céu velho,
um bando de aves que pressente a ameaça
no horizonte de cor, raso vermelho.

E de repente dou comigo absorto,
as mãos entre papéis de antigos versos,
soprando um lume que supunha morto
e aquece ainda os dias já submersos.

Ó mãos inquietas, porque não parais?
Mais do que penso, sonho: donde vim?
e as pupilas do tempo, azuis, mortais,
acordam a chorar dentro de mim.




carlos de oliveira
a noite inquieta
antologia poética
quasi
2001





21 junho 2017

al berto / cinco fotografias para alexandre da macedónia



1

apesar de Alexandre ter um olho de cada cor
a fotografia tinha o rigor das imagens a preto e branco
a noite desabara sobre os corpos estendidos
a lua surgia como um tentáculo de gelo
apercebíamos mãos voláteis por ente as estátuas
um de nós teimava em esconder-se no interior de uma delas

os répteis temiam a pedra
com seus inalcançáveis corações de quartzo
pulsando
uma cabeça azulada pousa docemente sobre os joelhos
a noite era um estuário de dedos emaranhados
na memória húmida das bocas… alguém contou:
a lebre é capaz de mudar de sexo em plena correria
eu não acreditei
os olhos vigiavam o exterior do corpo
quando te curvaste para colher um medronho

pelas fendas da janela entrava uma fragrância rubra
e a luz espessa deitava-se
sobre as areias cobertas de lodo
pouco sabíamos acerca do ciúme
deambulávamos à procura de um deus fogoso e terno
ou dalgum poço onde nos debruçarmos

depois tocámo-nos como crianças desajeitadas
enumerámos as terras que dali se avistavam



al berto
cinco fotografias para alexandre da macedónia
1981






20 junho 2017

herberto helder / fonte


IV
Mal se empina a cabra com suas patas traseiras
na lua, e o cheiro a trevo
no focinho puro, e os cornos no ar
arremetendo aos astros. E sobre a solidão das casas,
entre o sono e o vinho derramado,
curvam-se os cascos de demónio –
ágeis, frágeis.
E o sonâmbulo desejo do nosso coração
tudo absorve ao alto, como uma tenebrosa
vertigem

E quando o esplendor invade as bagas
Venenosas – patético , o silêncio dos dedos
docemente o procura.
Então as veias, suspensas,  mudam a conjunção
do sangue que ascende e que mergulha.
Uma estrela tremenda queima a fronte de apoIo.
E a mandíbula, os pés, a invenção, a loucura e o sono
secreto:
 – terrível, a beleza espalha sobre nós
a branca luz violenta.

Um dia começa a alma, e um caçador atinge
a cabra ao alto, fremente, no flanco
com uma flecha casta.
Lentamente cantamos o espírito dos livros.
E brilha toda a noite, no sangue espesso
e maduro do bicho
maravilhoso,
o dardo do caçador.
Um dia começa o nosso amor – ardente, infeliz,
misterioso. Porque a cabra
é qualquer coisa de materno e antigo –
e o nosso coração a rodeia,
e bate. Durante a noite irrompe da terra o trigo.

 – Subtil, a sombra das flautas subindo pelas mãos.
E sob a nossa boca roda a imagem do mundo, rosácea
abstracta, ou rosa aglomerada
e quente. Na penumbra das casas,  as mulheres
respiram – surdas, cegas e loucas
de beleza. E no sono aberto as palavras são
mortalmente confusas.

– Mal se levanta a cabra sobre as letras puras, sobre
a forma árdua e amarga da melancolia.


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





19 junho 2017

eugenio montale / a poesia (em itália)




Desde os alvores do século se discute
se a poesia existe dentro ou fora.
Primeiro venceu o dentro, depois contra-atacou
duramente o fora
e desde há anos se assiste a um empate
que não poderá durar visto que o fora
está armado até aos dentes.



eugenio montale
«La poesia (In Italia), Quaderno di quatro anni (1977)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
2003



18 junho 2017

álvaro de campos / mas eu não tenho problemas tenho só mistérios




Mas eu não tenho problemas tenho só mistérios.
Todos choram as minhas lágrimas, porque as minhas lágrimas são todos.
Todos sofrem no meu coração, porque o meu coração é tudo.

s.d.


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




17 junho 2017

antónio pedro / se houve engano de olhos



Se houve engano de olhos,
Nunca esta alma minha
Se levou dos olhos,
Bem amada minha.

Olhos de alma, claros
Pela tua graça
E onde o teu sorriso
Namorado passa.

- Meu sorriso, aberto,
Porque é derradeiro,
Este foi, decerto,
Meu amor primeiro.




antónio pedro







16 junho 2017

ana hatherly / 463 tisanas



135

Convém cultivar com coragem a intrepidez na raiz do pensamento: que cada um se coloque diante de si energicamente como diante dum estrangeiro e quando atingir o limite do suportável, o momento em que é preciso tomar uma decisão total, então compreenderá que a situação limite que conduz ao crime é a insuportabilidade da traição. Dormitam em todo o homem estas faculdades.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006





15 junho 2017

josé carlos ary dos santos / o relógio

(adereço conceptual para usar no pulso)



Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.


ary dos santos
vinte anos de poesia
adereços, endereços 1965
círculo de leitores
1983




14 junho 2017

daniel faria / a mão aberta já não liga



A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água



daniel faria
explicação das árvores e outros animais
fundação manuel leão
1998




13 junho 2017

adolfo casais monteiro / a vida inteira



Entrega o teu coração ao dia de hoje
como se ele fosse em si a vida inteira.
Entrega o teu destino de olhos cegos:
amanhã é água profunda a cuja espelho
risos e lágrimas de hoje não toldaram.

O coração verdadeiro não tem guia.


adolfo casais monteiro
simples canções da terra
1949



12 junho 2017

andré breton / improcedente




Arte dos dias arte das noites
A balança das feridas que se chama Perdoa
Balança vermelha e sensível ao peso de um voo de ave
Quando as amazonas de gola de neve de mãos vazias
Empurram os seus carros de vapor por cima dos prados
Essa balança incessantemente enlouquecida eu a vejo
Vejo a íbis com belas maneiras que regressa do tanque laçado no meu coração
As rodas do sonho enfeitiçam os esplêndidos trilhos
Que se levantam muito alto sobre as conchas dos seus vestidos
E o pasmo salta daqui dali por sobre o mar
Parte minha querida aurora não esqueças nada da minha vida
Toma estas rosas que trepam no poço dos espelhos
Toma as palpitações de todas as pestanas
Toma até mesmo os fios eu sustêm os passos dos funâmbulos e das gotas
                                                                                                                      de água
Arte dos dias arte das noites
Estou à janela muito longe numa cidade cheia de pavor
Lá fora homens de cartola seguem-se a intervalos regulares
Semelhantes às chuvas que eu amava
Quando precisamente o tempo estava tão bom
«Na raiva de Deus» é o nome de um cabaré onde eu ontem entrei
Está escrito na frontaria branca em letras mais pálidas
Mas as mulheres-marinheiros que deslizam por detrás das vidraças
São demasiado felizes para serem medrosas
Aqui jamais corpos sempre o assassinato sem provas
Jamais o céu sempre o silêncio
Jamais a liberdade a não ser pela liberdade.



andré breton
«Non-lieu», Le Revolver à cheveux blancs (1932)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
2003