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25 junho 2024

rené char / os primeiros instantes

 
 
 
Víamos correr diante de nós a água que aumentava. Apagava de repente a montanha, expelindo-se dos seus flancos maternais. Não era uma torrente que se oferecia ao seu destino, mas um animal inefável, em cuja palavra e substância nos tornávamos. Retinha-nos apaixonados sob o arco todo-poderoso da sua imaginação. Que intervenção teria podido constranger-nos? Já não se fazia sentir a exiguidade quotidiana, o sangue derramado fora restituído ao seu calor. Adoptados pelo espaço aberto, desbastados até ao invisível, éramos uma vitória que jamais teria fim.
 
 
 
         
rené char
a fonte narrativa (1947)
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




18 março 2024

rené char / devolvei-lhes…

 
 
Devolvei-lhes o que neles já não se acha presente,
Tornarão a ver o grão da ceifa encerrar-se na espiga e
     agitar-se sobre a erva.
Ensinai-lhes, desde a queda ao voo, os doze meses do seu
     rosto,
Hão-de acalentar o vazio do seu coração até ao desejo seguinte,
Pois não há nada que naufrague ou se compraza nas cinzas,
E quem sabe ver a terra terminar em frutos
não se comove com o fracasso, ainda que tudo tenha perdido.
 
 
 
rené char
furor e mistério
os leais adversários
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000



08 setembro 2023

rené char / argumento

 



 

Como viver sem desconhecido diante de nós?
 
Os homens de hoje em dia querem que o poema seja à imagem das suas vidas, com tão poucas considerações, tão pouco espaço, consumidas de intolerância.
 
Porque já não lhes é permitido agir supremamente, nessa preocupação fatal com a auto-destruição através dos seus semelhantes, porque a sua riqueza inerte os refreia e s amarra, os homens de hoje em dia, debilitado o instinto, perdem, muito embora se conservem vivos, a própria poeira do sue nome.
 
Nascido do chamamento do porvir e da angústia da retenção, o poema, elevando-se do seu poço de lama e de estrelas, testemunhará, quase silenciosamente, que nada havia nele que não existisse verdadeiramente noutro sítio, neste rebelde e solitário mundo de contradições.
 
 
  
rené char
furor e mistério
o poema pulverizado (1945-1947)
trad. margarida vale de gato
relógio d’água
2000



15 julho 2022

rené char / folhas de hipno

 
 
132
Parece que a imaginação, que em graus diversos assombra o espírito de cada criatura, é constrangida a separar-se dela quando não lhe propõe menos do que o «impossível» e o «inacessível» por missão extrema. Há que admitir que a poesia não é soberana em toda a parte.
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




18 dezembro 2021

rené char / folhas de hipno

 
135

Não era preciso amar os homens para os socorrer eficazmente. Apenas desejar melhorar essa expressão do seu olhar quando este recai sobre qualquer coisa mais miserável do que eles, prolongar por um segundo um certo minuto agradável da sua vida. Dado esse passo e tratadas todas as raízes, a sua respiração tornar-se-ia mais serena. Sobretudo, não lhes suprimir inteiramente esses caminhos penosos, a cujo esforço se sucede a evidência da verdade por entre lágrimas e frutos.
 
 
    
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




06 abril 2021

rené char / artine

 
 
Na cama que me tinham preparado havia: um animal ferido e sanguinolento, do tamanho de um brioche, um cano de chumbo, uma rajada de vento, uma concha gelada, um cartucho de bala disparada, dois dedos de uma luva, uma mancha de óleo; não havia porta de prisão, havia o sabor da amargura, um diamante de vidraceiro, um cabelo, um dia, uma cadeira partida, um bicho da seda, o objecto roubado, uma corrente de gabardine, uma mosca verde domesticada, um ramo de coral, um prego de sapateiro, uma roda de autocarro.
(…)
 
 
rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
martelo sem dono (1930)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995



19 janeiro 2021

rené char / folhas de hipno

 
 
29
Este tempo, devido ao seu aleitamento muito especial, acelera a prosperidade dos canalhas que transpõem facilmente as barreiras outrora erguidas pela sociedade contra eles. Quem sabe se, despedaçando-se, essa mesma mecânica que os estimula não os despedaçará também a eles, quando se esgotarem as suas hediondas provisões?
 
(E o menos possível de sobreviventes do alto mal.)
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




24 setembro 2020

rené char / folhas de hipno

 
 
55
Jamais modelado em definitivo, o homem encobre o seu contrário. Os seus ciclos descrevem diferentes órbitas consoante a sua exposição a determinada situação. E as depressões misteriosas, as inspirações absurdas, surgidas do grande externato crematório, como constranger-se a ignorá-las? Ah, circular generosamente sobre as épocas da casca do fruto, enquanto a amêndoa palpita, livre…
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000



30 julho 2020

rené char / férias ao vento



Nos flancos da encosta da aldeia, bivacam campos cobertos de mimosas. Na época das colheitas pode ser que, a uma certa distância, nos suceda um encontro extremamente odorífero com uma rapariga cujos braços durante o dia se afadigaram entre os frágeis ramos. Semelhante a uma lâmpada cuja auréola de claridade fosse de perfume, desaparece, de costas voltadas para o sol poente.

Seria sacrilégio dirigir-lhe a palavra.

Calcando a erva com as alparcatas, deixai que vos passe à frente. Quem sabe se não tereis a sorte de distinguir nos seus lábios a quimera da Noite?

         

rené char
furor e mistério
sós permanecem (1938-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000









10 outubro 2019

rené char / folhas de hipno




38
Deixam-se cair com toda a massa dos seus preconceitos, ou ébrios com o ardor dos seus falsos princípios. Associá-los, exorcizá-los, aliviá-los, muscula-los, amortece-los, depois convencê-los que a partir de certa altura a importância das ideias feitas é extremamente relativa e que, no fim de contas, o «assunto» é um assunto de vida e de morte e não das nuances a fazer prevalecer no seio de uma civilização cujo naufrágio se arrisca a não deixar marca sobre o oceano do destino, é isso que me esforço por fazer aprovar à minha volta.


         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000





23 outubro 2018

rené char / rasto negro




Ao compilar do pôr-do-sol sonoro
A cada andar de nuvens
A noite reencontra, esquece o seu nome

Não há similitude
Há apenas solidão
Que se abandona, uivo e lobo

O amor que tinha adormecido
Como o mar sob uma vaga
Guarda um rosto de múmia
E fala uma língua de areia.

1926





rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
o pau de roseira (1983)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995







24 setembro 2018

rené char / violências




Acendia-se a lanterna, imediatamente cercada por um pátio prisional. Os pescadores de enguias iam lá escavar ervas raras com o seu ferro, na esperança de delas extraírem qualquer coisa para cevar as suas linhas. Toda a quadrilha das escumas tinha aí o seu refúgio ao abrigo da necessidade. E todos os dias se repetiam as mesmas manobras de que eu era a vítima e a testemunha anónima. Optei pela obscuridade e pela reclusão.

Estrela do destino. Entreabro a porta do jardim dos mortos. As flores servis retraem-se. Companheiras do homem. Ouvidos do Criador.

         
rené char
furor e mistério
o ante-mundo
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000








21 junho 2018

rené char / esse fumo que nos levava…




Esse fumo que nos levava era irmão do pau que perturba a pedra e da nuvem que abre o céu. Não nos desprezava, acolhia-nos tal como éramos, delgados regatos alimentados de confusão e esperança, com um ferrolho nas mandíbulas e uma montanha no olhar.



         
rené char
furor e mistério
os leais adversários
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000












16 abril 2018

rené char / evadne




O estio e a nossa vida éramos uma só coisa
O campo devorava a cor da tua saia perfumada
A avidez e o constrangimento tinham-se reconciliado
O castelo de Maubec enterrava-se na argila
Em breve soçobrariam os vaivéns da sua lira
A violência das plantas fazia-nos vacilar
Um corvo remador sombrio desviando-se da esquadra
Sobre o sílex mudo do meio-dia esquartejado
Acompanhava o nosso idílio com ternos movimentos
Em toda a parte a foice acedia ao repouso
A nossa raridade iniciava um reino
(O vento insone que nos enruga a pálpebra
Voltando noite após noite a página consentida
Quer que cada tua parte que eu retenho
Se estenda numa terra de idade faminta e de lacrimal gigante)

Era no início dos anos adoráveis
Lembro-me de que a terra nos amava um pouco.

         
rené char
furor e mistério
o rosto nupcial
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000







22 janeiro 2018

rené char / folhas de hipno



123
Nestes jovens, uma comovente fome de consciência. Nenhum vestígio dos degraus tantas vezes subidos e descidos pelos seus pais. Ah! poder metê-los no caminho direito da condição humana, sem temer que um dia seja preciso reabilitá-la. Mas, visto que Deus se mantém afastado das nossas querelas e o torno das origens sente escaparem-se-lhe os seus poderes, será preciso exigir dos novos peritos uma amplitude de pensamento e uma minúcia de aplicação cujos presságios eu não alcanço.


         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000







26 dezembro 2017

rené char / calendário




Juntei as minhas convicções umas às outras e dilatei a tua Presença. Outorguei aos meus dias um novo curso, sustentando-os nessa força imensa. Expulsei a violência que me limitava o ascendente. Agarrei sem ruído o pulso do equinócio. O oráculo deixou de avassalar-me.   Penetro: sinto-me ou não em estado de graça.

A ameaça é agora mais polida. A praia que todos os Invernos ficava atravancada de lendas regressivas, de sibilas com os braços pesados de ortigas, apresta-se agora ao socorro das criaturas. Sei que a consciência que se arrisca nada tem que temer da plaina.


         
rené char
furor e mistério
sós permanecem (1938-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000






06 outubro 2017

rené char / folhas de hipno



155
Amo estes seres de tal modo enamorados por aquilo que o seu coração imagina ser a liberdade que se imolam para evitar a morte do poucochinho de liberdade. Maravilhoso mérito do povo. (Crê-se que não existe o livre arbítrio e que o ser se define relativamente às suas células, à sua hereditariedade, ao decurso breve ou prolongado do seu destino… Todavia, entre tudo isso e o Homem existe um enclave de inesperados e de metamorfoses cujo acesso deve ser proibido e a manutenção assegurada.)


         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




06 setembro 2017

rené char / folhas de hipno




8
Há pessoas razoáveis que, quando o seu instinto de preservação soçobra sob as exigências do instinto de propriedade, chegam a perder a noção da provável duração da sua vida e do seu equilíbrio quotidiano. Tornam-se hostis aos estremecimentos da atmosfera e submetem-se sem reservas às instâncias da mentira e do mal. É sob uma magnífica saraivada de granizo que em pó se desfaz a sua miserável condição.

         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000





21 julho 2017

rené char / folhas de hipno




6
O esforço do poeta visa transformar velhos inimigos em leais adversários, dependendo toda a fertilidade do porvir do sucesso desse projecto, sobretudo no ponto preciso em que se lança, se enlaça, declina, é dizimada toda a variedade dos véus em que o vento dos continentes entrega o seu coração ao vento dos abismos.

         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




23 junho 2017

rené char / folhas de hipno



49
O que pode seduzir no nada eterno é o facto de nele o dia mais belo ser indiferentemente este ou aqueleoutro.

(Cortemos este ramo. Nenhum enxame se há-de pendurar nele.)


         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000