31 março 2018

vasco graça moura / o mês de dezembro




I
continuamente, escuta, me destruo
e as longas águas sem sossego fogem
e os ossos de dezembro coincidem
e são do inverno estas metamorfoses

não falarei da vida porque a vida
perdidamente triste se sustenta
de surdos pensamentos e desastres
e devagar a luz se lhe estrangula

sempre assim foi esta periferia
da escrita a desfazer-se e é no inverno
que nos olhamos com ferocidade
antes que o tempo devore outros discursos


vasco da graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007







30 março 2018

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]




4
Nas grandes linhas que partem para os horizontes
onde tu caminhas à tarde agitando os braços
nas noites nas nossas noites de derradeiro amor
o meu cabelo em chamas anuncia no teu rosto
a noite que abandona as montanhas duma certa idade
e nos desfiladeiros onde se projecta até ao desespero
é o cantar duma ave estranha
no crepúsculo é a prostituída flor vermelha
oculta nas vielas escuras da cidade
onde as pontes cruzam as ruas em movimento
e a tua imagem acompanha a sombra dos veículos
nas vitrines o manequim bem vestido ou abandonado
que as aves adoram ao amanhecer
quando ainda adormecida nos areais
os teus seios incandescem os meus múltiplos abraços
nas casas a janela sempre fechada
nos jardins o banco em ruínas
e eu
o mago extra-mundo
mago fascinador e sempre mutilado
a estudar quiromância nas noites de desespero
e chamar a tua imagem
para a posse em que o acto sexual é a troca de um cabelo.
Não a deusa ou o embrião
não o homem civilizado mas sim a mosca
dizendo que flor renasce quando surges
nas rotas nas longas muralhas
nas pedras onde o tempo grava os poemas
que os meus dedos tentam perfurar
na necessidade mítica dum desejo plausível
nos leitos onde todo o nosso amor for vivido
nas noites que as estrelas encaminham
nas águas da praia onde adormecemos
o teu ombro no meu rosto
as tuas mãos penetrando a areia
como o ventos penetra os triângulos petrificados
os teus cabelos descendo até ao mar.



carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998










29 março 2018

konstandinos kavafis / jura





Jura muitas vezes     começar uma vida melhor.
Mas quando vem a noite     com os seus próprios conselhos,
com os seus compromissos,     e com as suas promessas;
mas quando vem a noite     com a sua própria força
do corpo que quer e pede, para a mesma
alegria fatal, perdido, vai de novo.



konstandinos kavafis
os poemas
I (1905-1915)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005









28 março 2018

valter hugo mãe / quantas vezes te inventei ao pé das águas do lago




quantas vezes te inventei ao pé das águas do lago
e imaginei que me empurravas ladeira
abaixo para enfim
morrer de amor

sozinho lentamente
como só lentamente se deve morrer de amor



valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
quarto livro
o resto da minha alegria
assírio & alvim
2018






27 março 2018

manuel cintra / levas-me inteiro


  


                Levas-me inteiro
                Mais longe nos tecidos
                Algures a germinar
                Um ovo
                Em estado de promessa.

Choro, talvez
Chore ainda mas ainda mais talvez

Lavas-me, escorro
De ti para as ruas ainda mais de ti

                Seria simples imaginar
                Uma das tuas mãos
                Com os ossos da minha.
                A  outra, a carne.

Mas eu não gosto de coisas simples.



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981







26 março 2018

eloy sánchez rosillo / a janela




                Nas tardes de março, quando nada
resta em minha cidade que recorde o inverno
e uma doce moleza invade o ânimo
disposto à indolência,
é belo olhar pela janela
enquanto se ouve música,
ver as horas passar, ver como o tempo
flui e vai declinando pouco a pouco
a luz crepuscular. Nenhum cuidado
nos turba o coração e ocupam-nos
pensamentos amáveis acaso vagamente
melancólicos.
                      Chegam
sombras às ruas e ao aposento
onde, em paz, sozinhos, nos sentimos
talvez quase felizes. No céu
o sol apaga-se e, depois, devagar,
a noite vai acendendo as estrelas.



eloy sánchez rosillo
as coisas como foram
trad. josé bento
assírio & alvim
2004








25 março 2018

alberto caeiro / vai alta no céu a lua da primavera




Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.

6-7-1914


alberto caeiro
o pastor amoroso
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946







24 março 2018

eugénio de andrade / foz do douro




É outra vez abril
– e tão perfeito é o azul
que o estendo
ao longo do meu corpo.
Não sei de ninguém tão bem vestido!




eugénio de andrade
escrita da terra
poesia
fundação eugénio de andrade
2000














23 março 2018

artur do cruzeiro seixas / para vos dizer a verdade




Para vos dizer a verdade
o meu sexo é uma cadeira
uma torrente verde
um retrato de Cézanne
uma baixela de prata no fundo do mar
o sonho de um osso
a imitação de uma cidade.

Abro uma janela
no sítio onde estava um navio
mas cínica a pedra vem – revém
e completa o ciclo
das loucas exigências.

Aceno aos meus sonhos
que estão do outro lado
enquanto passa uma
qualquer Nova Iorque
a cada passo
tropeçando nos seus próprios cabelos.


Áfricas 70



artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002








22 março 2018

antonio gamoneda / teu cabelo encanece entre minhas mãos e




Teu cabelo encanece entre minhas mãos e, como
águas silenciosas, as recordações abandonam-nos.
Sinto a frialdade da existência mas teu cheiro espa-
lha-se nos quartos e tua lascívia vive em meu coração
e meu pensamentos penetra em tuas feridas.



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999











21 março 2018

antónio franco alexandre / ao humano desprezo bem queria




Ao humano desprezo bem queria
responder com um rasgo de heroísmo
ou de bem calculada fantasia;
encaminhar algum pedestre implume
perdido nos meandros do destino,
vencer um monstro em singular combate,
ou descobrir as máquinas da luz.
Dava-me já, porém, por satisfeito
se a minha arte fosse acompanhada
por discreto rumor de élitros e asas,
e eu mesmo, amoris causa, recebido
na academia eterna dos insectos.
Nem eu nasci da sua impura raça,
nem sei de nenhum rito que me faça
ser digno do seu sumo sacerdócio;
menos feliz do que o mosquito e a traça,
não sou, por mera herança, dos eleitos;
e por muito que estude e em livros leia
a história toda dos seus reis e magos,
ao fim do dia volto, magoado, à teia
sem ver o meu labor recompensado.
Assim hei-de ficar até ao fim dos dias,
objecto de temor e fria troça,
sujeito à condição que não alcanço.



antónio franco alexandre
aracne
assírio & alvim
2004









20 março 2018

alejandra pizarnik / quarto somente




Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede
e as suas fissuras, escaras,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
seguramente virá
uma presença para a tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.




alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002







19 março 2018

antónio ramos rosa / escrevo sobre um muro



J'ecris sur un mur au fond du noir

Guillevic



Escrevo e as portas não se abrem.
Os rios existem, e o mar da rua
existe. Escrevo. E o que espero?
Escrevo em apagados muros, na branca
superfície do muro. Escrevo.


São palavras, palavras. São
palavras.
Não respiram. Não falam.
São desertas.
Não rodam, não batem nos meus pulsos.
E escrevo. Como se esperasse.


Como. Se desertas abrissem.
Para. Para.
Uma vida outra aberta.
Esta e mais nenhuma, a que só temos
sem nunca tê-la, a que seria vida
o que é, e nós sem ela.


Escrevo no muro palavras,
para respirar, quando não posso,
quando o desejo de viver se tornou ténue,
que não sinto senão na ténue página,
na brancura rara que me tenta,
na água sem jardins ao rés da página
ó sede à beira de nascer, ó água!


Escrevo palavras neste muro. Um muro.
Umas palavras. O mar da rua existe.
As portas não se abrem. E não espero.
Escrevo sobre o muro. Umas palavras.
São as palavras que escrevem esse muro.
São as palavras que escrevem esse muro.
O muro existe. Resiste É bem um muro.
As palavras saltam além do muro.



antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001







18 março 2018

fernando pessoa / nada há de menos latino que um português.




Nada há de menos latino que um português. Somos muito mais helénicos — capazes, como os Gregos, só de obter a proporção fora da lei, na liberdade, na ânsia, livres da pressão do Estado e da Sociedade. Não é uma blague geográfica o ficarem Lisboa e Atenas quase na mesma latitude.

s.d.



fernando pessoa
sobre portugal - introdução ao problema nacional
ática
1979










17 março 2018

joão esteves / pequenas marcas




que fora dos livros
se escreva
o que fora do que se escreve
não se diz
e que fora do que se diz
se diga
o que fora do que se pensa
não se pensa.

e que dentro da alma
exista
o que fora dela não existe
para que por dentro
se realize
tudo aquilo que não se verbalize.

que portanto
estando fora estando dentro
se sobreviva
à tentação de querer estar no centro
e apenas mais um se seja
sabendo-se pequena esta marca que se deixa.



joão esteves









16 março 2018

eduardo moga / que dentro há um sol




Que dentro há um sol. Como germina no ataúde
invisível do corpo. Como arreigadamente
brilha, com que penumbra de assombrado meteoro,
com que óptima quietude. Alamedas suspensas
esperam, junto do músculo, que se esvazie o fogo
que impregna a noite. É a teia, cerrada,
que regressa; é o raio inverso que revela
com a sua voz seminal as possibilidades
do gelo. A cinza dessangra-se. O cereal,
aproximando-se, procura gargantas onde furtar-se
às ardentes chuvas, fundamentos para a ponte
que só os vivos hão-de pisar, os inermes,
os que se curaram. Touros que respiram como arcos
tensos: ainda não. Acérrimos cavalos
que optam pelo sismo: não. Água que se vertebra,
como um súbito pescoço, ou cravos que a ferem:
ainda não. Terra sem sexo que oferece
o seu voo, a sua lentíssima energia, ás árvores
impacientes; penínsulas faltas de sol e omoplatas,
onde vertiginosos peixes, inacabados
ainda, ignoram o fluir dos sudários.
É demasiado cedo para o tempo.

                […]




eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







15 março 2018

al berto / salsugem




3
era um barco
onde os homens regressavam como um lamento
tinham saudades de ilhas… embebedavam-se
no receio de nunca chegar
deitados nas tábuas de sarro do porão
com o cio da noite pegando-se aos membros húmidos
esperavam que se avistasse terra
onde pudessem enfim reabastecer-se de alimentos
água fresca… e quem sabe se uma carta não bastava
para saciar as sedes e as fontes do irrequieto coração

assim se quedavam paralisados
os ventos roçando as cordas… as vagas contra o casco
suspirando mansos olhavam depois
a baba acetinada dos peixes voando

era um barco
uma sombra do mar com o sol tatuado à proa… avançava
como avançam as vozes aquáticas pelos sonhos adentro
perturbando a navegação da memória
era um barco
com o velame cansado e as mãos calejadas
pelas tempestades das sete partidas do mundo

chegava ao porto
descarregava palavras dialectos estilhaços de concha
espinhas pedaços de corda que na incerteza dos dias
alinhava pelo cais vislumbrado doutro corpo
e voltava a partir
evitando o silencioso plâncton dos espelhos
acostando somente à memória dalgum distante lugar
onde o amor largou sobre o corpo-amante
uma esteira de conhecidas e sangrentas mercadorias




al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997