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19 abril 2024

carlos eurico da costa / a forma e o tempo




 
II
Eis-nos não porque houvesse necessidade de estar
Mas porque temos connosco a maturidade lúcida do espaço
E se quero dizer-vos que há uma paragem
Para pressentir a minha nublada redoma
Chega do mais profundo das montanhas
Um ruído de passos agitando-se um ruído que cresce
E com frascos de sombras ladeia-nos a garganta
E vozes dizendo eles passam eles passam.
Recordo-me da jornada das mais inacessíveis
Uma mulher que até à porta me persegue
Deixando na rua o último sangue.
Vejo-me afagando-lhe os cabelos
Dominando-a do mais alto quando diz maldito.
 
 
 
carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965




 

17 março 2021

carlos eurico da costa / a forma e o tempo

 
 
Para a Magda
 
 
 
I
Sobe pela noite como profundo grito
Para ver uma concha de falso fumo
Caminha nas trevas em coloridos braços
Para ver as mais ligeiras asas voltando o mundo
Sobe pela noite como arma inútil
Como insecto astro dilúvio ou fantasma
Para ver a imagem de outro dia.
 
Sim para reconhecer-te
Vem com nuvens nas espáduas
– Um rosto de ondas quentes
Rosto dos habitantes de um país que te arruína
Busto de mulher invisível pelos férteis campos.
Envolta nas colchas rubras da tua raça e rosas grenat
Surge respondendo aos gritos dos cantoneiros
Vem. Traz o branco curso lunar das tuas mãos
Para este quadro vazio onde docemente luto contra mim.
 
 
 
carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965

 



04 outubro 2019

carlos eurico da costa / parábola quotidiana



Não quero as tuas hossanas prováveis
A tua face ou a Sodoma dos gritos
A tua presença o teu destino
De alquimista que descreve
Um santuário de neve
E do teu perfil irisado – eu falo
Na propícia penumbra ausente de olhares
Fixando o rumo dos navios que dispersos
Ajustam contrapõem e encobrem
O fulcro temporal das luzes nocturnas.
Não falo das cinzas dos cirurgiões ou dos cegos
Falo desta terra da corrente desobediente
Do estilhaço que à superfície das águas corre
Quando a maré vem e os barqueiros dormitam
Golpeando as gargantas deixando adivinhar
A língua de fogo o seu astro maldito.
Não falo desta oportuna parcimoniosa lamentação
Do que vem ou foge regressando no vento – os perfumes acres
O cheiro animal
Do homem que no cais fita a lua
Destes homens e mulheres de pastoril juventude
                dormitando vivendo gravitando vivendo  
Ah eu falo-te meu amor eu falo-te
E a tua imagem surge até na mais disforme poeira
Nos braços que lanço sobre o muro
Do que procuras antevês
E sempre distante entre a porta que rodeias
E o meu fantasma
Solta o grito o animal tresloucado.
Temos um vago desenhar de circunstância
Que não nos aproxima mas adivinha-nos
A parábola activa talvez a verdadeira força
O sangue que aflui
E a criança que vagarosamente sobe a escada
E em silêncio precipita-se no vácuo.



carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965





30 março 2018

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]




4
Nas grandes linhas que partem para os horizontes
onde tu caminhas à tarde agitando os braços
nas noites nas nossas noites de derradeiro amor
o meu cabelo em chamas anuncia no teu rosto
a noite que abandona as montanhas duma certa idade
e nos desfiladeiros onde se projecta até ao desespero
é o cantar duma ave estranha
no crepúsculo é a prostituída flor vermelha
oculta nas vielas escuras da cidade
onde as pontes cruzam as ruas em movimento
e a tua imagem acompanha a sombra dos veículos
nas vitrines o manequim bem vestido ou abandonado
que as aves adoram ao amanhecer
quando ainda adormecida nos areais
os teus seios incandescem os meus múltiplos abraços
nas casas a janela sempre fechada
nos jardins o banco em ruínas
e eu
o mago extra-mundo
mago fascinador e sempre mutilado
a estudar quiromância nas noites de desespero
e chamar a tua imagem
para a posse em que o acto sexual é a troca de um cabelo.
Não a deusa ou o embrião
não o homem civilizado mas sim a mosca
dizendo que flor renasce quando surges
nas rotas nas longas muralhas
nas pedras onde o tempo grava os poemas
que os meus dedos tentam perfurar
na necessidade mítica dum desejo plausível
nos leitos onde todo o nosso amor for vivido
nas noites que as estrelas encaminham
nas águas da praia onde adormecemos
o teu ombro no meu rosto
as tuas mãos penetrando a areia
como o ventos penetra os triângulos petrificados
os teus cabelos descendo até ao mar.



carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998










13 maio 2015

carlos eurico da costa / primeiro poema da solenidade



A labareda ascendente superando as auroras desvendadas: um altar iluminado onde crepitam
sons leves, um rio correndo há milhares de anos para nós, alheios da nossa validade, mortificados, lúcidos, exaltados, extáticos, senhores dos melhores ácidos corrosivos, sábios do amanhecer nos arquipélagos, manipuladores das artes ocultas e raras, povoando ora os mais altos cumes ora o leito purificador das enseadas

exuberantes de todo o álcool das palavras, espectadores do próprio olhar nocturno, do ínfimo traço de vida que resta nos museus paleontológicos

Nisto consistirá a nossa tradição e tudo o que de nós for ausente bastará um calmo gesto para o petrificar

E bem dentro de nós um calor cósmico, opaco, tão íntimo que será o perfil arroxeado, pleno
e sombras das montanhas no Outono, as belas montanhas que nos centralizam como se fôssemos navios transparentes sem destino e sem ódios.

E o medo do desfilar de perfis adversos que nos afugentam da nossa verdadeira imagem como entes malditos

e toda esta prova de fogo, imutável, tão necessária a nós, errantes, esta meia-luz que cega mas também ilumina

Hoje, decorrido o tempo sobre a sucessão de múltiplos actos, esquecidos da profética lucidez
das visões, soerguemo-nos num último alento como as maiores aves aquáticas que, feridas, vão morrer silenciosamente nas planícies

Mas nunca será tarde para obter a dureza que cria o hábito de elevarmos em grandes gestos as nossas mãos tão pobres, tão despovoadas que nos queimam a carne

Estará bem longe de nós o quarto acto da purificação. Cedo será para distinguirmos as
silhuetas das sombras, o ponto médio dos precipícios, a água e a noite

Esperemos conforme os verdadeiros mantendo este mundo interior que nos define até que vejamos outra luz mais quente, até que ante os nossos olhos se descerre todo o conjunto de vendas espessas, todo o duplo movimento inverso da definição

A hora capital surgirá aparatosamente com todas as dependências inerentes à sua qualidade,
polarizando e enfrentando toda a substância – o pacto sinistro, misterioso, a fúria que nos qualifica

Os nossos dedos alongados e penetrantes terão o dinamismo da sua potência primária; os nossos actos serão como longos cabos aéreos, elásticos e transportadores; a palavra será leve, insuportável para os mortos, de som agudo, penetrante e insuspeito

O nosso gesto terminará quando se estiolar a última luz e após a queda no mar dum animal ainda não existente, belo e translúcido, para os olhos conseguirem um brilho extraordinário idêntico ao que se avista no centro das mais belas tempestades

Os habitantes das grandes cidades deslocar-se-ão lentamente na direcção assinalada
 inquirindo temerosamente, uns dos outros, qual o planeta escolhido




carlos eurico da costa
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992




01 setembro 2014

carlos eurico da costa / a cidade de palaguin




            Será pelo simples facto de uma criança loira
  desfilar por um corredor sombrio - olhos brilhantes
  a ver um rio na sua mais alta profundidade;
  será pelo facto de haver uma espinha dorsal
  de montanhas arroxeadas, assombradas à noite
  pelo meu fantasma nu a vaguear
  em procura do grande silêncio que eu,
  simultânea e homogeneamente a cidade de Palaguin,
  a biciclete de pano verde, o planeta Uclon
  e Tu meu supremo mito,
  flor molhada de lágrimas violentas,
  acaricio duas silhuetas esguias e grito.


            porque beijo na rua a mulher que quero,
  porque passo para assustar, a todas as horas,
  rodeado pelo meu séquito de loucos


            porque a minha fúria é única e eu o único ser vivo
  em paisagem povoada de animais indefinidos,
  brancos e vorazes - para me divertirem
  correm velozmente até um bloco de granito negro
  onde se esfacelam, transformando-se numa massa informe
  a crescer e a acumular-se


            espero a aniquilação,
  trespassa-me de lado a lado um estilete de vidro
  paralelo ao solo


            aguardo há vários minutos,
  porque os milénios passaram
  e já percorri o cosmos de lés-a-lés;
  porque o tempo foi uma bola de areia vinda comigo,
  envolta em algas e garrafas de Rheno


            em todas as noites nas sebes das linhas férreas
  um comboio trucida-me
  no momento em que te consigo nos meus braços
  e te encontro por todos os lados, à minha volta,
  no centro da luz que irradio,
  possuído


            nas casas altas e brancas surges na única janela
  para me apontares e fugir, olho a rua deserta, grito
  e lanças-te de cem metros para os meus braços,
  durante a queda o teu corpo torna-se amorfo,
  em poalha de neve chegas a meus pés


            olho: na mão esquerda comprimo um aro de estanho
  e junto a ele as formas de animais brancos vão crescendo




carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




24 outubro 2011

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]




2


Os grandes barcos de granito azul avançam
marcando a sua época.
No mar
as velhas canções de música
petrificadas por estrelas velocíssimas
são a origem dos ciclones
(os jornais asseguram-nos a sua existência)
e nestas montanhas conscientes da sua fragilidade
os cegos rosados
lutam no bar das estátuas mitológicas
esgrimindo agilmente as facas.

Hoje repousaremos na rua deserta
os pequenos maquinismos de anulação do tempo
bem firmes entre os dedos
como anéis circunvolutórios
até que um sulco de areia penetre o mar e tinja as águas
e neste pequeno café da praia
outros homens povoem a fúria das ondas
e dos rochedos que são a nossa maneira
de descobrir veículos de amor.


          A subtil invenção da tua epiderme
          a fragilidade obscura das tuas mãos
          será apunhalada ao amanhecer
          quando a nossa lucidez se fundir no horizonte
          e toda a turba rolando pelas colinas
          se suicidar com uma pétala sobre as pálpebras.


E a janela indicando-nos os signos de certos templos
os murais de agulhas oxidadas
a tua espantosa e inconsciente pureza
de ser boreal
presente em todos os viadutos dos meus gestos
presente nas pedras desta antiga e odiosa cidade.

E toda a minha angústia para ti
como os prédios em derrocada
que são a tua permanente ausência
o desespero de uma voz disseminada
pelos clarões do tempo que teremos de viver.

Longe futuramente longe
nas fugas geométricas dos museus
na misteriosa cadeira lavrada dos contos policiais
na erosão da cama ainda quente do teu corpo
as luzes extinguem-se lentas.

Creiamos.
Mas o frio desta geada de actos convenientes
acorda a hora do universo
a hora imperturbável de toda a fixação dos actos
quando os rios apagarem o sangue desta geração
das pa1avras de medo que não pronunciamos
no banho de cinzas da nossa existência.





carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




15 novembro 2010

carlos eurico da costa / de vermelho a morte






«o rosto anseia pelo canto»

juan barea, cantaor




I

Se vejo o meu ser compelido — gemo. E oro aum deus de coragem e destino. A terra oferece-me o que quero — o seu corpo, os seus rios, e tenho de encerrar o meu destino, aquele destino, empurrar o braço no gesto que o alcance, dizê-lo.
Rainha do céu, minha terra em ti me contenho, tu limitas-me, és um mundo, esfera que brilha no rosário, semente de consolação. Não me alonges, leva-me (chega-me) ao teu seio, deixa, deixa contaminar-te do meu suor, queria renegar mas volto de novo a habitar-te.

II
Que morte apetecida, que boca soluçante pela manhã. Flores a corolar a caveira de cristal e azul. Flores de laranja e metal. Garganta golpeada no canto. Leque de madeira rara e marfim flamejando na cabeça negra, branco, cinza.
O acto de dizer, de não querer a minha vergonha. Trago o meu destino — um sal que me consome — em invenções de mal, sentado no meu trono, despedaçando o reino.
Anavalhe-se o que sobra, em fenda alastrada pelos tecidos, cante-se com coragem e sangue contraindo a vocalidade, os destinos mais estranhos da nossa condição: o que nasce no corpo, o que amamenta a imaginação, célula cerebral, leite da terra — logo, um minério hoje descoberto, a aberração da memória. A morte.








carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973







22 junho 2009

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]






7


Neste dia meu amor
os meus dedos são o candelabro que te ilumina
o único existente.

E o homem
sua esfera perdida em mãos alheias
é o objecto de malabarismo
o insecto
voltejando cega a luz que lhe irradiam
o límpido cristal corrompido
o defunto.

E este patíbulo onde o próprio carrasco se enforcará
eu o digo
será erguido como símbolo de todos os homens.

Aqui a hora vai sendo longínqua meu amor e solene.
O caminho é grande o tempo tão pouco
tenhamos muita esperança e muito ódio
e vítreas flores a ornar o teu cabelo
porque serei o homem para as transportar
e tu a última mulher que as aceitará.

E enquanto assim for
erguer-se-á a nuvem de múltiplas estrelas
a nebulosa
que dizem estar a milhões de anos-luz
mas não acreditemos bem o sabes
porque a verdade a temos em nossas próprias mãos
oculta para a contemplarmos agora.







carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







26 maio 2008

pela tua natureza discorro




Como renasces ao amar. Que corpo te possui? Dimanam (crescem) de ti forças que ignoro ao transtornar-te, ao abateres nesta ondulação envolvente que é o acto de amarmos, uma guilhotina ascendente partindo do corpo para o espaço, contrariando a gravidade e por isso mesmo fixar-se como um olho severo e ciclópico, um sexo assexuado, pénis-vagina, hermafrodita florestal, animal vegetal, a longa experiência dos equinodermes, a solidão dos ciclóstomos, os primitivos placentários de corpo minúsculo.

Mas que imensidão quando emerge nos teus olhos esta recriação do procriar, a grandeza do prazer, a ferocidade da morte-viva, a imitação da vida, o desflorar da atmosfera dos pulmões que nos respiram, o sorvo cataléptico do teu orgasmo plasmado no meu, trevas e luzes que escorrem em denso liquido, um sangue contaminado e bebível no seu jorro ovariano, uma natureza que se contraria pura para te ter, agarrar com dedos enclavinhados os tecidos mais secretos do teu ser, fundir a matéria espermática do que sou e, construção escultórica de mãos, explodir no magma, crestar para enobrecer enobrecido, dissolver os contornos, transcender seus átomos.

Madrid, Janeiro de 1972







carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973