A labareda ascendente superando as auroras
desvendadas: um altar iluminado onde crepitam
sons
leves, um rio correndo há milhares de anos para nós, alheios da nossa validade,
mortificados, lúcidos, exaltados, extáticos, senhores dos melhores ácidos
corrosivos, sábios do amanhecer nos arquipélagos, manipuladores das artes
ocultas e raras, povoando ora os mais altos cumes ora o leito purificador das
enseadas
exuberantes
de todo o álcool das palavras, espectadores do próprio olhar nocturno, do
ínfimo traço de vida que resta nos museus paleontológicos
Nisto
consistirá a nossa tradição e tudo o que de nós for ausente bastará um calmo
gesto para o petrificar
E bem dentro de nós um calor cósmico, opaco, tão
íntimo que será o perfil arroxeado, pleno
e
sombras das montanhas no Outono, as belas montanhas que nos centralizam como se
fôssemos navios transparentes sem destino e sem ódios.
E
o medo do desfilar de perfis adversos que nos afugentam da nossa verdadeira
imagem como entes malditos
e
toda esta prova de fogo, imutável, tão necessária a nós, errantes, esta
meia-luz que cega mas também ilumina
Hoje, decorrido o tempo sobre a sucessão de
múltiplos actos, esquecidos da profética lucidez
das
visões, soerguemo-nos num último alento como as maiores aves aquáticas que,
feridas, vão morrer silenciosamente nas planícies
Mas
nunca será tarde para obter a dureza que cria o hábito de elevarmos em grandes
gestos as nossas mãos tão pobres, tão despovoadas que nos queimam a carne
Estará bem longe de nós o quarto acto da
purificação. Cedo será para distinguirmos as
silhuetas
das sombras, o ponto médio dos precipícios, a água e a noite
Esperemos
conforme os verdadeiros mantendo este mundo interior que nos define até que
vejamos outra luz mais quente, até que ante os nossos olhos se descerre todo o
conjunto de vendas espessas, todo o duplo movimento inverso da definição
A hora capital surgirá aparatosamente com todas as
dependências inerentes à sua qualidade,
polarizando
e enfrentando toda a substância – o pacto sinistro, misterioso, a fúria que nos
qualifica
Os
nossos dedos alongados e penetrantes terão o dinamismo da sua potência
primária; os nossos actos serão como longos cabos aéreos, elásticos e
transportadores; a palavra será leve, insuportável para os mortos, de som
agudo, penetrante e insuspeito
O
nosso gesto terminará quando se estiolar a última luz e após a queda no mar dum
animal ainda não existente, belo e translúcido, para os olhos conseguirem um
brilho extraordinário idêntico ao que se avista no centro das mais belas
tempestades
Os habitantes das grandes cidades deslocar-se-ão
lentamente na direcção assinalada
inquirindo temerosamente, uns dos outros, qual
o planeta escolhido
carlos
eurico da costa
surrealismo
abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992