Será pelo simples facto de uma
criança loira
desfilar por um corredor sombrio - olhos brilhantes
a ver um rio na sua mais alta profundidade;
será pelo facto de haver uma espinha dorsal
de montanhas arroxeadas, assombradas à noite
pelo meu fantasma nu a vaguear
em procura do grande silêncio que eu,
simultânea e homogeneamente a cidade de Palaguin,
a biciclete de pano verde, o planeta Uclon
e Tu meu supremo mito,
flor molhada de lágrimas violentas,
acaricio duas silhuetas esguias e grito.
porque beijo na rua a mulher que
quero,
porque passo para assustar, a todas as horas,
rodeado pelo meu séquito de loucos
porque a minha fúria é única e eu o
único ser vivo
em paisagem povoada de animais indefinidos,
brancos e vorazes - para me divertirem
correm velozmente até um bloco de granito negro
onde se esfacelam, transformando-se numa massa informe
a crescer e a acumular-se
espero a aniquilação,
trespassa-me de lado a lado um estilete de vidro
paralelo ao solo
aguardo há vários minutos,
porque os milénios passaram
e já percorri o cosmos de lés-a-lés;
porque o tempo foi uma bola de areia vinda comigo,
envolta em algas e garrafas de Rheno
em todas as noites nas sebes das
linhas férreas
um comboio trucida-me
no momento em que te consigo nos meus braços
e te encontro por todos os lados, à minha volta,
no centro da luz que irradio,
possuído
nas casas altas e brancas surges na
única janela
para me apontares e fugir, olho a rua deserta, grito
e lanças-te de cem metros para os meus braços,
durante a queda o teu corpo torna-se amorfo,
em poalha de neve chegas a meus pés
olho: na mão esquerda comprimo um
aro de estanho
e junto a ele as formas de animais brancos vão crescendo
carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998
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