01 setembro 2014

carlos eurico da costa / a cidade de palaguin




            Será pelo simples facto de uma criança loira
  desfilar por um corredor sombrio - olhos brilhantes
  a ver um rio na sua mais alta profundidade;
  será pelo facto de haver uma espinha dorsal
  de montanhas arroxeadas, assombradas à noite
  pelo meu fantasma nu a vaguear
  em procura do grande silêncio que eu,
  simultânea e homogeneamente a cidade de Palaguin,
  a biciclete de pano verde, o planeta Uclon
  e Tu meu supremo mito,
  flor molhada de lágrimas violentas,
  acaricio duas silhuetas esguias e grito.


            porque beijo na rua a mulher que quero,
  porque passo para assustar, a todas as horas,
  rodeado pelo meu séquito de loucos


            porque a minha fúria é única e eu o único ser vivo
  em paisagem povoada de animais indefinidos,
  brancos e vorazes - para me divertirem
  correm velozmente até um bloco de granito negro
  onde se esfacelam, transformando-se numa massa informe
  a crescer e a acumular-se


            espero a aniquilação,
  trespassa-me de lado a lado um estilete de vidro
  paralelo ao solo


            aguardo há vários minutos,
  porque os milénios passaram
  e já percorri o cosmos de lés-a-lés;
  porque o tempo foi uma bola de areia vinda comigo,
  envolta em algas e garrafas de Rheno


            em todas as noites nas sebes das linhas férreas
  um comboio trucida-me
  no momento em que te consigo nos meus braços
  e te encontro por todos os lados, à minha volta,
  no centro da luz que irradio,
  possuído


            nas casas altas e brancas surges na única janela
  para me apontares e fugir, olho a rua deserta, grito
  e lanças-te de cem metros para os meus braços,
  durante a queda o teu corpo torna-se amorfo,
  em poalha de neve chegas a meus pés


            olho: na mão esquerda comprimo um aro de estanho
  e junto a ele as formas de animais brancos vão crescendo




carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




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