29 fevereiro 2012

andre breton / as atitudes espectrais







Não dou nenhuma importância à vida
Não pego com alfinetes na importância a mais ínfima borboleta de vida
Não importo à vida
Mas os veios do sal os veios brancos
Todas as bolhas de sombra
E as anémonas do mar
Descem e respiram dentro do meu pensamento
Vêm das lágrimas que não verto
Dos passos que não dou passos duas vezes passos -
Na memória da areia ao encher da maré
As grades estão no interior da gaiola
E os pássaros vêm das maiores a1turas cantar diante delas
Uma passagem subterrânea une todos os perfumes
A mulher que lá entrou um dia
Tornou-se tão brilhante que não a vi
Com estes olhos que a mim mesmo viram arder
Tinha já a idade que hoje tenho
E vigiava-me vigiava o meu pensamento como um guarda-nocturno numa fábrica sem fim
Só eu vigiava
A praça continuava a encantar os mesmos eléctricos
As figuras de gesso nada haviam perdido da sua expressão
Mordiam a figa do sorriso
Sei de um tecido numa cidade perdida
Se me apetecesse aparecer-vos vestido desse pano
Imaginariam chegado o vosso fim
E o meu
Enfim as fontes saberiam que não se deve dizer Fontaine
Atraem-se os lobos com espelhos de neve
Tenho uma barca solta de todos os climas
Sou arrastado por um banco de gelo de dentes flamejantes
Corto e racho a lenha desta árvore sempre verde
Um músico ata-se às cordas do seu instrumento
O Pavilhão Negro do tempo de nenhuma história de infância
Aborda um navio que não passa do fantasma do seu
Há talvez uma bainha para esta espada
Mas nesta bainha existe já um duelo
Em que os dois adversários se desarmam
o morto é o menos ofendido
o futuro não é nunca

As cortinas jamais corridas
Tremulam nas janelas por construir
As camas feitas de todas as flores-de-lis
Resvalam sob os candeeiros de orvalho
Uma noite virá
As pepitas de luz imobilizam-se no musgo azulado
As mãos que fazem e desfazem os nós do amor e do ar
Mantêm a transparência para quem vê
As palmas sobre as mãos
As auréolas nos olhos
Mas o braseiro das auréolas e das palmas
Acende-se começa a arder no ermo da floresta
Lá onde os cervos inclinam a cabeça para ver passar os anos
Ainda só se ouve uma fraca pulsação
A gerar mil rumores mais leves ou mais surdos
E esta pulsação perpetua-se
Há vestidos vibrantes
Vibração em uníssono com a pulsação
Mas quando quero ver as caras das que os vestem
Uma grande névoa levanta-se da terra
Por baixo do campanário atrás dos mais elegantes reservatórios de vida e de riqueza
Nas gargantas que escurecem entre duas montanhas
No mar à hora de arrefecer o sol
As estrelas separam os seres que me acenam
Mas o carro lançado a toda a desfilada
Leva-me as hesitações até à última
Que me espera lá longe na cidade onde as estátuas de bronze e de pedra trocam de lugar com as estátuas de cera
Banians banians


Le Revolver à cheveux blancs (1932)





andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994



28 fevereiro 2012

al berto / eras novo ainda





procuro-te no meio dos papéis escritos
atirados para o fundo do armário de vidrinhos
comias uvas no meio da página

a seguir era como se fosse noite
havia olhares que se cruzavam corpos
deambulações pela praia
era noite e alguém se aproximava

eu estava passeando os dedos
pelas nódoas frescas do vinho sobre a mesa o caderno
onde de quando em quando rabiscava um rosto
e listas de nomes que não queria esquecer

paguei o pão o vinho o queijo
levantei-me
tu cortaste-me a fuga vagarosamente preparada
pediste-me um cigarro

na outra página estávamos rindo
estendidos no pobre embarcadouro de madeira
planeávamos atravessar a noite mágica do rio

a página seguinte está em branco
mas lembro-me que te agarrei a mão e disse:
todos os cigarros do mundo são para ti
  



al berto
salsugem
contexto
1984




27 fevereiro 2012

helga moreira / canta, embebeda-se pelos bares

  



Canta, embebeda-se pelos bares
ou não se embebeda e só o luar
guarda na mala

ou não canta e tece
pequenos vestígios de fogo.

Recorda macieiras, papoilas,
alguma poeira imperceptível,
febres de verão.





helga moreira
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



25 fevereiro 2012

anaïs nin / a casa do incesto




Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projectar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.

Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.

Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projectada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.





anaïs nin
a casa do incesto
trad. isabel hub faria
assírio & alvim
1993




24 fevereiro 2012

antonio gamoneda / sábado






Meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.


Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente nos
suicidas; está a criar a velhice:


ontem e hoje são já o mesmo dia no meu coração.





antonio gamoneda
livro do frio
(sábado)
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999


23 fevereiro 2012

josé luis garcía martin / ruas





Ruas de uma cidade que não conheço
com pouca gente e vento e chuva cinza.
Espero por quem não chega enquanto altas
se acendem luzes em janelas sós
e uma mulher passeia numa esquina.
Há olhos que me fitam um instante
e não sabem ler palavras que não digo:
«Dá-me outro nome, muda o meu destino.»




josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998


22 fevereiro 2012

sophia de mello breyner andresen / o poeta trágico




No princípio era o Labirinto
O secreto palácio do terror calado
Ele trouxe para o exterior o medo
Disse-o na lisura dos pátios no quadrado
De sol de nudez e de confronto
Expôs o medo como um toiro debelado





sophia de mello breyner andresen
arquipélago
dual
caminho
2004




21 fevereiro 2012

ana luísa amaral / outras vozes





Fechar os olhos e por dentro ecoar em passado.
Pensar «podia ter outra cor de pele, outra pelagem»
E o tempo virar-se do avesso, e entrar-se ali,
em vórtice, pelo tempo dentro.
Escolher.

Trazer cota de malha e de salitre,
ter chorado quando o porto ao longe se afastara,
milhares de milhas antes,
meses em sobressalto para trás.

As febres e tremuras durante a travessia,
 a água amarga, as noites
carregadas de estrelas,
 junto ao balanço do navio, um astrolábio.

Numa manhã de sol, do porto de vigia,
ver muito ao fundo, em doce oval,
a linha, quase tão longínqua como constelação.
Gritar «terra», gritar aos companheiros
ao fundo do navio, do fundo dos pulmões gritar,
e o bote depois, os remos largos,
a cama de areia e o arvoredo.

Ou trazer na cabeça penas coloridas,
conhecer só a fundo a areia branca
e o mar sem fundo, peixes pescados ao sabor dos dias,
uma língua a servir de subir a palmeiras,
a servir de caçar e contar histórias.

Moldar um arpão, começar por um osso
ou pedra e madeira,
entrelaçar o corpo da madeira, e o afiado da extremidade.
Contemplar devagar o resultado do trabalho
e da espera.
Ou a beleza. Escolher.

Trazer o fogo na mão, escondido pela pólvora,
fazer o fogo na orla da floresta.
Os risos das crianças, tocar a areia branca, tocar
a outra pele. Cruel,
o medo, vacilar entre a fome e o medo.
Ou não esco1her.

As penas coloridas sobre um elmo,
a cota de malha lançada pelo ar como uma seta,
os sons dos pássaros sobre a cabeça,
imitar os seus sons,
num lago de água doce limpar corpo e
pecados de imaginação,
sentir a noite dentro da noite,
a pele junto da pele,
imaginar um sítio sem idade.

Trocar o fogo escondido pelo fogo alerta,
o arpão pelo braço que se estende,
gritar «eis-me, vida»,
sem ouro ou pratas.
Com a prata moldar um anel
e uma bola de fogo a fingir,
e do fogo desperto fazer uma ponte a estender-se
à palmeira mais alta.

Esquecer-se do estandarte no navio,
depois partir da areia branca, nadar até ao navio,
as penas coloridas junto a si,
trazer de novo o estandarte e desmembrá-lo.
Fazer uma vela, enfeitá-la de penas,
derretidos que foram, entretanto,
sob a fogueira a1ta e várias noites,
elmo e cota de malha.

Serão eles a dar firmeza ao suporte da vela,
um barco novo habitado de peixes
brilhantes como estrelas.

Não eleger nem mar, nem horizonte.
E embarcar sem mapa até ao fim
do escuro.





ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011


20 fevereiro 2012

manuel de freitas / 1685-1750




II


São dias de extermínio, agora.
O punhal das horas já não
cede ao alaúde nem ao cravo torturado
pela mudez. Repugnam-me simplesmente
estes dias devagar e não sei com que letras
se escreve nunca mais o nome do amor
(deixei de confiar a alma a um celeiro podre).

Quando a música de um homem assim
não consegue demover-nos da angústia,
percebemos que a vida é morte
— impossíveis os gestos, as fugas, os desejos.

Amanhece e eu não. O sono deixou-se
pousar ao lado do livro que não pude ler
e mesmo o que escrevi sobre a morte,
embora exacto, era afinal aproximativo.
Sou agora plenamente o meu cadáver.
Ofereço-lhe um cigarro, o que sobra
de cerveja, a memória das cantatas
que me sa1varam do tédio, do suicídio
e de mim próprio. Talvez seja um sentido,
uma ânsia de dissipação que encontrou
o seu termo moral, espiritua1, orgânico.
Não sei.

Todas as palavras se tornaram para o sangue
uma mesma mentira, entre o exorcismo
e a ameaça. No fundo, a dizer havia apenas
isto: a luz que explode na janela
já não encontra nem corpo nem vontade.


  


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002

19 fevereiro 2012

magda szabó / a porta



RARAMENTE sonho. Se acontece, acordo sobressaltada, banhada em suor. Então, estico-me, espero que o coração serene, e devaneio sobre o poder mágico, irresistível, da noite. Na infância ou na juventude, não tinha nem bons, nem maus sonhos, só a velhice arrasta os aluviões do passado em massa cada vez mais compacta, num terror petrificado e tanto mais alarmante quanto mais tenso e trágico, como jamais vivi, pois, na realidade, acordar assim a gritar, isso comigo nunca aconteceu.
Os meus sonhos são visões que retornam, absolutamente idênticas: eu tenho sempre o mesmo sonho. Estou à entrada do nosso prédio, ao fundo das escadas, atrás do portão, em vidro armado inexpugnável, reforçado por uma armação de ferro, e tento abrir a fechadura. Fora, na rua, há uma ambulância, e, através dos vidros, são fluidas as silhuetas dos enfermeiros, de um tamanho sobrenatural, seus rostos inchados rodeiam-se de um halo, como a Lua. A chave roda. Mas debato-me em vão, não consigo abrir a porta, e, contudo, tenho de fazer entrar as ambulâncias, ou vão chegar tarde ao doente. Claro, a fechadura nem dá de si, e assim fica a porta, como se estivesse soldada à armação de ferro. Grito por socorro, mas nenhum morador dos três pisos me presta atenção, nem sequer poderia, pois — dou-me conta — limito-me a mexer os lábios, sem um som, como um peixe, e o pânico atinge o auge quando percebo que não somente não posso abrir a porta aos socorristas, como ainda fiquei muda. É nesse instante que o meu grito de terror me acorda, acendo a luz, procuro combater a asfixia que se apodera de mim após este sonho, rodeada pela mobília, conhecida, do quarto, e, por cima da nossa cama, a iconografia familiar, os meus antepassados parricidas, com dólmanes bordados, à maneira do barroco húngaro, ou Biedermeier, os meus avós, que tudo vêem, e tudo compreendem, únicos que sabem quantas vezes corri, de noite, a abrir a porta aos primeiros-socorros, às ambulâncias, quantas vezes imaginei o que aconteceria, enquanto, através da porta fechada, se ouvia o frufrulhar da ramagem ou os passos silenciosos dos gatos, em vez do ruído conhecido das ruas silenciosas, durante o dia, se, alguma vez, lutasse em vão com uma chave, e não desse a volta.
Os retratos sabem tudo, sobretudo, o que prefiro esquecer, o que já não é sonho. Pois só uma vez, na minha vida, uma única vez, na realidade, e não no estado de fraqueza cerebral devida ao sono, uma porta se abriu diante de mim, que não deveria ter aberto quem se resguardava na sua solidão e na sua miséria impotente, mesmo se o tecto ardente crepitava já sobre a sua cabeça. Só eu tinha poder para fazer funcionar essa fechadura: quem rodava a chave confiava mais em mim do que em Deus, e eu, nesse instante fatal, julgava ser Deus, sábia, ponderada, boa e racional. Estávamos ambas erradas, ela, porque acreditava em mim, e eu, porque tinha fé excessiva em mim. Agora, também já não importava, porque não se podia reparar o que acontecera. Pois que venham, de tempos a tempos, essas Eríneas de alto coturno em sapatos confortáveis, máscara trágica sob a touca de enfermeiras, e rodeiem a minha cama, brandindo as espadas de duplo fio que são meus sonhos. Eu espero-as, todas as noites, ao apagar a luz, e preparo-me para, no meu sono, ouvir retinir a campainha que faz avançar horror inominável para a porta que não abrirá jamais.
A minha religião não conhece a confissão individual, são as palavras do nosso pastor que nos asseveram sermos pecadores, votados à condenação, porque pecámos, de todos os modos, contra os mandamentos. Recebemos, assim, a absolvição, sem que Deus exija de nós explicações ou pormenores.
Dou-os eu, agora.
Não redigi este livro para Deus, que conhece as minhas entranhas, nem para as sombras, testemunhas que são de tudo, e me vigiam a cada instante, nas horas acordadas e dormindo, mas para os homens. Vivi, até hoje, corajosamente, e assim espero morrer, corajosamente e sem mentir, mas, por isso mesmo, na condição de dizer: eu matei Emerence. E pouco muda que eu não quisesse destruí-la, mas salvá-la.






magda szabó
a porta
tradução do húngaro ernesto rodrigues
dom quixote
2006




18 fevereiro 2012

aurora maria amaral / correm graves os tempos






Correm graves os tempos
de manhãs sombrias e suadas
é tanta a solidão e a dor antiga
acordamos os bolsos vazios
os sorrisos plenos enlutados
pelo tempo de espera
à porta do amor
Gira que gira a minha bola de cristal
ousada
Roda que roda o meu poema breve
alado
Tragam-me luzes
cor e movimento
acendam-me o palco vazio
tombará por fim a lágrima oprimida
e o tempo seguirá sombrio e certo
na sua austeridade




aurora maria amaral








17 fevereiro 2012

gil t. sousa / um caminho

  


46

um caminho
que perfeito abrigasse
o chão
que nos sustém

e um céu
que se abrisse
ao morrer do medo
num longínquo ponto
sem luz

e que esta paixão
fosse um deserto
sem sede

este amor
o sono do tempo




gil t. sousa
falso lugar
2004





16 fevereiro 2012

rené char / declarar o seu nome




Eu tinha dez anos. O rio Sorgue prendia-me. O sol cantava as horas no sábio mostrador das águas. A despreocupação e a dor tinham selado o galo de ferro ao tecto das casas e suportavam-se mutuamente. Mas que roda no coração da criança expectante girava mais depressa, com mais força, que a do moinho no seu incêndio branco?



rené char
este fanático das nuvens
acima do vento
tradução y. k. centeno
cotovia
1995



15 fevereiro 2012

hristós valavanídis /estátua





Feita roda de gesso
só os pés de ouro;
como pô-la erecta
se te derrete nas mãos,
os olhos de vidro prestes a rolarem?
Deixa-a ficar de joelhos
e esquece-a.
Não quero ver-te levantar de novo
para segurá-la.





hristós valavanídis
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001





14 fevereiro 2012

mário cesariny / corpo visível





A esta hora entre os blocos de prédios enevoados
     a bela mancha
diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos
     braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina      extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que
     lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentando seguido pelas aves que acordam a duzentos e
     mais metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
                 não são
                                 quem sabe


Dentro do grande túnel digo-te a vida
esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada
     como a proa de um barco
bateira que me trás os dados e a roleta onde no branco
     ou no preto devo jogar
jogando-me contigo
bem-me-quer
malmequer
ou muito     ou pouco
                                    ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito


Dentro do grande túnel digo-te a vida
o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros
o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada
sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do
     outro lado da praça
ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto im-
     pertinente e desde logo
minha
segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana
     tende a reduzir o indivíduo receptor ao estado de
     serpente fascinada
sem que daí advenha a petrificação estrela cadente
ou qualquer outra espécie de perturbação durável
Eu digo que há tambores
mapa louco riscado sobre a areia
há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra
há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira
     da porta – a tua porta
quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu, da
     viagem ─
e no vitral de tudo o que eu mais adoro
─ a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa
     avança sem deixar qualquer rasto
há o campo selvagem dos teus ombros
espreitando contra a luz      na orla do rio      a nuvem
     de corsários
que sou eu
vestido de andaluz para o baile em chamas ─  digo: o
     grande baile do século na ilha


O havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos
     perdidos
é o que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa
     dos meus dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo
     o fio da meada sem que é engraçado hajam batido
     à porta entrado ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar
Livres
digo livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única
     perfeita silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais
     espectaculares ─  aí a memória é fácil ─
mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela      tu que disseste:
                              “vai haver uma grande guerra”
                              “nenhum de nós eu sei escapará vivo”
vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha
     da china onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze
enterrada na areia
o écran que floresce
como tu      como eu      nos tubos que dissemos
fizemos
faremos      acordar
                                                e até quando?


Amor
            amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cin─
     tilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu
     preto as suas hastes mudas


Começa a ouvir-se o canto da cigarra
sinal de que foi pisado o botão entre os limos
estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre esses
     aqueles que nos foram queridos
na maré límpida que nos impede sabe o polvo dos mares
     até onde e se haverá regresso
em qualquer lado      a última janela fotográfica
as mãos do faroleiro
como a locomotiva no seu túnel
mas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto ainda
     e sempre o teu rosto
como é fácil      como é belo
A Vida inteira      Meu amor
                                                                 SOMOS NÓS


O cigarro do anúncio luminoso adoeceu deveras
     já não fuma o espaço
a uma certa velocidade calma
o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas
diz-nos que amanheceu
na sua torre de londres o relógio da estação do rossio adquire
     decidida importância
amanheceu      é óbvio      amanheceu
da nossa viagem ao país dos amantes já não resta senão
     esse penacho de fumo
que ameaça evoluir de acordo com a paisagem
uma fábrica      ou antes      na janela entreaberta
a mensagem do pássaro-extra-programa
que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo Conhecido
e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões
Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço
     com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se
     pareça


O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade
     carfológica
verdadeiro sinal-emblema destes tempos
em que a evidência necessita de envólucro
para não morrer na estrada
junto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção
     espantosa masculina da morte
ou nos carros do clube As Mãos no Sexo
junto ao qual      admira-te      vivemos
O problema não passa da sua fase primária:
um ─  o crocodilo
e dois ─  o clou do arame
se bem que esta velha raça de acrobatas anões
devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia
     sobre a cúpula em chamas
dividir o homem
pôr-lha à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à
     esquerda a sombra a assistência treme
de tal modo que a meio da operação cabalística
em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem
     atinja bravo bravo bravo a imobilidade do sepulcro
após o que rocegagem do arlequim de plumas
e iluminação de todos os fósseis mais antigos


Convenhamos meu amor convenhamos
em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo de-
     vido à miséria deste tempo
e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que
     seja o último existir DESFIGURADO
não haverá Figura Humana sobre a terra
─  Aa ensombração maligna de certas lágrimas quando a
     alegria é mais resplandecente
não deve ter outra origem
no centro do diamante o pequenino carvão venenoso é
     quanto basta para perder a vida
e no entanto nós meu amor partimos
livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos
mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não
     o está na sua rocha
e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono solto
     uma flor especiosa
decor para a estrada pela esquerda alta da figura do
     Homem Sufocado
o homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu
     cinzento rosto impermeável
impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até
     aos confins da terra


Contra ele meu amor a invenção do teu sexo
único arco de todas as cores dos triunfos humanos
contra ele meu amor a invenção dos teus braços
maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de
     água por todos os lados estéreis
contra ele meu amor a sombra que fazemos
no aqueduto grande do meu peito      O MAR




mário cesariny
lisboa
1950





assírio & alvim
fundação cupertino de miranda
2010