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06 outubro 2020

josé luis garcía martin / o assédio

 
 
Sei que firme e fugaz aguarda sempre
junto do meu coração desabitado;
sei que um mínimo gesto bastaria
para o deixar entrar e não estar só.
 
Mas eu reforço paredes, vidros, portas;
peço ajuda a filósofos antigos:
«O que nada tem nunca perde nada;
tem todas as coisas quem nada deseja.»
 
Ouço os seus passos, seu rondar contínuo;
perto da minha janela canta e ri:
«Abre um momento, abre, quero dar-te
rosas vermelhas embriagadoras.»
 
Estou pronto para resistir, pronto
para longo assédio, fome, desamparo:
«Vai-te embora, amor, deixa-me em paz;
a ventura que me trazes dá-a aos cães.»
 
 
 
josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998



 

14 agosto 2020

josé luis garcía martin / a chuva



A chuva é um soldado triste,
uma sentinela sem sono. Espias
sua firme juventude. Ardem os lábios
em negra chama de melancolia.

Ruas lascivas sobem pelas suas pernas,
distante e firme não sorri.
Ávidas mãos pelo rosto imberbe,
mãos de névoa putrefactas insistem.

Silencioso acerca-se um cavalo
da água escura e fresca do desejo.
Ilumina-se a cara do soldado
num instante de lua, leve, longe.

Envolto em negra chama chamas
ao plural sentinela minucioso.
Imóvel, mudo, segue seu destino
noutro mundo, noutro tempo, noutro.


josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






19 fevereiro 2018

josé luis garcía martin / o último convidado




Os amigos foram-se despedindo
e antes que pudesses dar-te conta
estás de novo a beber sozinho.
Também tu queres ir a qualquer lado
onde sem fim a festa continue.
Porém não podes. Há um convidado
ainda por chegar. Abres a porta,
sentas-te à sua espera, olhas ao longe
as lentas luzes de barcos na noite.
Um último convidado. Tens medo
de que afinal decida que não vem.
Os teus olhos fecham-se. Não te importes.
Podes ao vê-lo chorar como criança.
Mais vale que chegue contigo adormecido.


josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998







23 fevereiro 2012

josé luis garcía martin / ruas





Ruas de uma cidade que não conheço
com pouca gente e vento e chuva cinza.
Espero por quem não chega enquanto altas
se acendem luzes em janelas sós
e uma mulher passeia numa esquina.
Há olhos que me fitam um instante
e não sabem ler palavras que não digo:
«Dá-me outro nome, muda o meu destino.»




josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998


01 agosto 2011

josé luís garcia martin / santa maria novella


.
.
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Ganho a vida por aqui,
entre os comboios, disseste, e sorrias
apenas com os olhos, esplêndidos, de ouro.
Apagar-se-ão os bronzes, os mármores, o Arno,
sujo por detrás da loggia dos Uffizi,
a magia de pincéis e de cinzéis,
a cúpula, as pontes e as pombas,
os putti despidos e cantores,
S. Jorge firme face ao desconsolo,
o som dos sinos róseos do crepúsculo
entre os ciprestes e o loureiro de Fisole.
Perdurará a graça venal de um sorriso
e o gesto das tuas mãos,
delicado e canalha.
 




josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998
.
.
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20 agosto 2010

josé luis garcía martin / aqueles dias de verão








Estava de verdade
muito só naqueles dias
de verão. Á noite
sentava-se à janela comigo,
desgrenhada, descalça, suada
à espera de um fresco amanhecer
que não chegava nunca.

Chegaste, porém, tu,
arcanjo de trevas, sanguinário e belo,
portador de uma cega sentença.
Com o punho batias
ao portão incapaz de dormir. Aqui
não vive ninguém.
Cavernosa a voz
e com susto a noite, as estrelas
aziagas. É um morto quem vive
nesta casa. Que Deus o ampare,
irmão.

E amparaste-me tu
no fundo de um poço
sem ar e sem ninguém.








josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998