31 maio 2012

jovan hristic / na grande biblioteca





Na grande biblioteca os sábios sentam-se e lêem livros.
Eu sento-me no meio deles, mas não sei porquê.

De tempos a tempos um deles passa pelas brasas
E depois levanta-se para ir beber um café.

Eu deixo-me estar visto que sou o único entre eles que não sabe
Por que lê os livros empilhados à sua frente na secretária.

Lá fora o sol brilha, os esquilos saltitam no relvado
E trepam pelas árvores. Eu sento-me e leio.

Todos temos que fazer alguma coisa. As pessoas passam na rua.
Têm coisas para fazer. Eu leio e leio
visto que não tenho mais nada para fazer, e o tempo passa devagar.



jovan hristic
versão de luís filipe parrado


30 maio 2012

manuel de freitas / pressa de viver

                  


                      [para o Zé, que nunca lerá este poema]



Negro, trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
─ e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI - que ele decerto
interpretou como um partido de 'tugas
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.

Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-Io
─  «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era «pressa de viver», garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos é
às evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico acaso amamos
─  quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.

Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.

Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
─  e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.





manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002


29 maio 2012

luís miguel nava / ao acordar






Ainda mal tinha acordado, veio-lhe à memória
de súbito o rapaz que era costume
pagar na leitaria um copo a todos os amigos.

O dinheiro acendia-se-lhe
nas mãos antes de o pôr sobre o balcão.



  

luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002





28 maio 2012

gil t. sousa / as três comadres




(sobre um quadro da alice loureiro)



2

no fim dum caminho antigo,
por entre as pedras e o céu,
há vozes que anunciam um outro tempo.


um tempo escondido no segredo das mentes,
como as almas se escondem
nas pedras das cidades que pecaram.

é a maldade simples da terra,
a intriga das ervas,
a sentença do que vive.

não há aqui eternidade,
nem morte,
e só os olhos levam o que lá diz;
em molhos de cor a lembrar cereais maduros,

mel guardado como um tesouro
para um amanhã esperado.
tudo acaba ali,

no precipício que divide o real
e anuncia o infinito com uma força nua de sinais.
e é nesse acabar

que uma outra realidade ganha forma,
tranquila como as coisas eternas,
enigmática como as coisas que, não sendo vivas,

obedecem a um outro sangue,
a um pulsar de que nunca saberemos o nome....




gil t. sousa
água forte
2005

27 maio 2012

amélia pinto pais (1943-2012)




Morreu um dos nossos, verdadeiramente alguém do mundo da poesia.

Adeus Amélia

giacomo leopardi / o infinito






Sempre cara me foi esta erma altura
Com esta sebe que por tanta parte
Do último horizonte a visão exclui.
Sentado aqui, e olhando, intermináveis
Espaços para além, e sobre-humanos
Silêncios, e profunda quietude,
Eu no pensar evoco; onde por pouco
O coração não treme. E como o vento
Ouço gemer nas ervas, eu àquele
Infinito silêncio esta voz
Vou comparando: e sobrevem-me o eterno,
E as idades já mortas, e a presente
E viva, e seu ruído... Assim, por esta
Imensidade a minha ideia desce:
E o naufragar me é doce neste mar.




giacomo leopardi
poesia de 26 séculos
2º volume / de bashô a nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972


26 maio 2012

camilo pessanha / água morrente


  


Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.



camilo pessanha
clepsidra



25 maio 2012

jonathan griffin / o credo agnóstico





Meu timbre a dúvida. Acredito
no credo agnóstico - duvidar até estar morto
e contudo viver para acolher
não fugir ao dar-se do acto da fé,
não fugir a desconfiar dele, até que a morte
aqui está, alisou a fé e a dúvida.




jonathan griffin



24 maio 2012

gabriel celaya / biografia





Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.

Extraia a raiz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.

Parece-lhe decente que um engenheiro faça versos?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.

Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.
Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Aí, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer.





gabriel celaya
espanha (1911-1991)


23 maio 2012

felipe benitez reyes / a idade de ouro






O que o tempo leve
que seja tanto
quanto o tempo nos deu,
prenda imerecida,
deixando a memória na inocência
da vida gasta, porque nada
fere mais e mais fundo que a lembrança:
enquanto subsista uma noite na memória,
essa noite é a Noite
e essa intensa memória a Memória.

Leve o tempo tudo
o que queira levar,
porque tudo foi seu desde sempre.

Que o tempo desvaneça
o ouro delinquente do amor
e a imagem hermética daquilo
que chamavas passado
- e era apenas
ontem: a fugitiva idade
de não ter idade para o passado.

Idade de Baudelaire e de raparigas
que adquiriam noções da vida
nas últimas filas dos cinemas
e nesses velhos cinemas do pós-guerra
convertidos em lugares para dançar que fechavam
quando o céu queria amanhecer,
amanheceres de domingo,
voltando para casa com
um copo ainda na mão
e tabaco de outros no bolso,
a essa hora em que abriam os cafés
e as senhoras de caridade montavam mesas
com cartazes de meninos moribundos.

E era a morta luz que amanhecia
a metáfora gelada e a ilusão exacta de estar queimando
as naves da eterna juventude.

Mas no seu carro fúnebre
O tempo ia admitindo passageiros.

E as naves queimadas são cinza
e muito pouco de eterno
teve a minha juventude.

Mal arraste tudo, o tempo
que leve na sua vertigem a memória,
deixando
um vazio perfeito no passado.

Porque toda a recordação
acaba corrompendo-se no presente
e este presente já
de pouco vai servir-nos.

De pouco vai servir-nos
saber que houve um tempo em que a vida
valia o seu peso em ouro.

Porque a vida monta
a sua casa no passado.

E esta casa sombria não parece a nossa.





felipe benitez reyes
espanha




22 maio 2012

fernanda de castro / a ilha da grande solidão (excerto)






(Violetas...
Alguém mandou-me violetas,
e as longas horas de Outono,
de roxas, ficaram pretas...)

Assim, de olhos fechados,
ainda vejo, no tanque, os peixes encarnados,
ainda sinto o perfume dos lilases,
ainda ouço os rapazes:
(e tu, Jardim, também os ouves?)
— «P’ra que servem as flores? Plantem couves».
Mas não plantei,
amei
cada pequena flor
e nenhuma secou,
nem o tempo as murchou,
nem a Dor..

Pequena flor…
Petite fleur.
A trompette do Sidney Bechet
dilacera-me ouvidos
e sentidos.
Magoa-me a estridência
da música obcecante.
Enerva-me a violência
dos sons,
dos desejos incontidos.
Dói-me a culpa,
a inocência
de uns braços estendidos.



fernanda de castro
poezz
almedina
2004



21 maio 2012

hans-ulrich treichel / como joyce em trieste






Desço de carro pela margem do Arno,
com o livro de alemão sobre os joelhos, como
Joyce em Trieste, atravesso distraído
zonas de peões, vejo os meus ombros
em todas as montras, e é tudo, nem
danças nas praças, nem raparigas
com vestidos de seda, nos arbustos, Ulisses,
com ar de parvo, sorri embaraçado,
de que me servem as palavras?, tusso,
agradeço, isto não vale um chocolate,
e entro num café para morrer.




hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



20 maio 2012

emilio adolfo westphalen / tristemente…






Tristemente deixei descansar a minha cabeça
Na sombra que cai do ruído dos teus passos
Voltando à outra margem
Imponente como a noite para te negar
Abandonei as manhãs e as árvores cravadas na minha garganta
Deixei até a estrela que galopava entre os meus ossos
Larguei mesmo o meu corpo
Como o náufrago as barcas
Ou as lembranças quando as marés se vão
E espalham estranhos olhos sobre as orlas do mar
Abandonei o corpo
Como um cobertor para com a mão liberta
Apertar o cerne de uma estrela molhada
Não me ouves sou mais leve que as folhas
Porque me livrei de toda a ramaria
E o ar não consegue aprisionar-me
Nem as águas tampouco me detêm
Não me ouves chegar mais poderoso que a noite
E as portas que ao meu sopro não resistem
E as cidades quietas para que não note as suas presenças
E o bosque entreaberto como a madrugada
Que busca apertar o mundo entre os seus braços
Ave belíssima que no paraíso irá cair
A tua fuga derribou todas as tendas
E eis que os meus braços fecharam as muralhas
E até os ramos se inclinam para te impedir a passagem
Frágil corça deves temer a terra
E o ruído dos teus passos em cima do meu peito
Já se cerraram os cercos
E o peso da minha ansiedade far-te-á cair
Os teus olhos irão fechar-se sobre os meus
E a tua doçura brotará como os chifres novos
E a tua meiguice crescerá como a sombra que me envolve
A cabeça deixei que rodasse
O coração deixei que caísse
Já nada tenho que me assegure que irei alcançar-te
Pois que tens pressa e tremes como a noite
Talvez eu não atinja a outra margem
Porque não tenho mãos que abarquem o espaço
Entre o que está desperto e o que vai morrendo
Nem pés que pesem sobre o esquecimento
De tantos ossos e tantas flores mortas
Talvez eu não alcance a outra margem
Se a última folha já foi por nós lida
E a música entreteceu a luz em que hás-de cair
E os rios te impedem o caminho
E as flores te chamam mas com a minha voz
Rosa imensa chegou a hora de deter-te
O estio ressoa como degelo para os corações
E as madrugadas tremem como árvores ao acordar

Todas as saídas estão guardadas
Rosa imensa não irás tombar?





emilio adolfo westphalen
abolición de la muerte
1935
tradução de nicolau saião




19 maio 2012

rui costa / a nuvem prateada das pessoas graves


   


Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo
dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés
e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias
quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas
pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo
que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no
chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas
pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.

  



rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005


18 maio 2012

gonzalo sánchez- terán / correndo atrás dos antílopes






Traz o vinho e as flautas, vai chover,
o nosso ofício não é a vitória, irmão,
não apagues a candeia, entre esta noite
e a tua velhice só medeia o tempo,
usa as bandeiras como mantas
e recolhe os nomes sem as suas coisas
que os naufrágios deixam nos areais,
a nossa ocupação é a derrota,
vagueia despojado nas avenidas
como um diabo tentado pela luz,
desenha-te no corpo de uma fêmea
como uma blusa molhada e demora
a tua carroça longe do mercado
enquanto choram as virgens de gesso
porque a nossa tarefa é escrever
os poemas inúteis, irmão.
Mas caia-te o sal sobre as terras,
estabeleça-se a dor à tua porta,
prosperem os traidores na tua ruína,
precedam-te os filhos na morte,
perde o gado e a tua companheira
e supliques piedade a quem te odeia
e reclames amor de quem te teme
e formes no pelotão dos tristes
e revolva a enxaqueca o teu cérebro
e os juízes injustos te persigam
se escreveres um poema desnecessário.





gonzalo sánchez-terán
desvivirse
tradução de manuel rodrigues
colección visor de poesía
madrid


17 maio 2012

àlex susanna / esgotos





Este rio poluído
onde se despejam tantos resíduos
bem se parece com a nossa alma,
com a ligeira cambiante
de que cada um é o único a saber
a massa enorme de dejectos
que tal corrente em nós transporta.




àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




16 maio 2012

elmer diktonius / pressentimento




Uma semente germina no meu cérebro,
sugando a medula da vida e o seu fluxo.
O meu barril terá a cor do sangue, eu sei
que acabarei por enlouquecer.


O meu túmulo não terá coroa de flores,
não terá uma cruz cristã com palavras de luz.
Vento do norte. Uma noite de Inverno.
Mas debaixo do gelo a seiva há-de ferver.




elmer diktonius
(finlândia, 1896-1961)
tradução de josé agostinho baptista


15 maio 2012

antoni clapés / era a luz, era a forma de uma luz





Era a luz, era a forma de uma luz
Interior, um rumor como um véu
que cobria o silêncio e as palavras.
Era um (espaço) deserto
dilacerado em infinitos sinais fragmentados.
Era o tempo que volvia, fulgor do relâmpago
no vazio, no próprio relâmpago.
Era o poema, era o poeta do poeta.

Era a poesia habitada




antoni  clapés
poemas                                      
tradução de egito gonçalves




14 maio 2012

guy goffette / fica se vens para ficar





(...)
Não fales ainda. Escuta o que foi
lâmina na minha carne: cada passo, um riso ao longe,
o latir do cachorro, o bater da portada
e este comboio que não acaba de passar

sobre os meus ossos. Fica sem palavras: não há nada
a dizer. Deixa a chuva tornar a ser a chuva
e o vento esta maré sob as telhas, deixa

o cão gritar o seu nome na noite, a portada
bater, ir-se embora o desconhecido neste lugar nenhum
onde morro. Fica se vens para ficar.






guy goffette
l'attente
la vie promise
paris
2000



12 maio 2012

manuel antónio pina / It's allright, ma...









Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.
 
Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanto existência).

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão



manuel antónio pina




11 maio 2012

yehuda amichai / a escola onde estudei



  


Passei pela escola onde estudei enquanto rapaz
e disse do fundo do coração: aqui aprendi certas coisas
e não aprendi outras. Toda a minha vida amei em vão
as coisas que não aprendi. Estou coberto de conhecimento,
sei tudo sobre o crescimento da árvore do conhecimento,
a forma das suas folhas, a função do seu sistema de raízes, os seus insectos parasitas.
Sou um especialista na botânica do bem e do mal,
e ainda estou a estudá-la, e continuarei a estudá-la até ao dia em que morrer.
De frente para o edifício, olhei para o seu interior. Esta é a sala
onde nos sentámos e aprendemos. As janelas de uma sala de aulas sempre
abertas
para o futuro, mas na nossa inocência pensávamos que era apenas paisagem aquilo que víamos da janela.
O recreio era estreito, pavimentado com pedras largas.
Relembro o breve tumulto de nós os dois
junto dos frágeis degraus, o tumulto
que era o início de um primeiro grande amor.
Agora ele existe para além de nós, como num museu,
como tudo o resto em Jerusalém.




yehuda amichai
(alemanha, 1924 – israel, 2000)
tradução de miguel gonçalves